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Ser negro no Brasil é no mínimo insalubre.



Sempre tive medo de morrer prematuramente; ser negro e viver na Baixada Fluminense sempre foi, em minha perspectiva, um terreno propício para não ultrapassar os 20 anos. Chegar aos 27 foi uma surpresa. Não estou exagerando; em muitos momentos, pensei que minha vida seria interrompida por uma bala perdida ou por circunstâncias violentas. Durante os inúmeros tiroteios que testemunhei em Belford Roxo, várias vezes pensei que aquele seria meu último dia nesta existência.


Kendrick Lamar, rapper norte-americano considerado por mim e por muitos um dos melhores e maiores artistas vivos, aborda o medo que permeia a vida de um jovem negro nos EUA ou aqui no Brasil em sua música "Fear", do álbum "DAMN" (2017). Kendrick descreve três momentos distintos de terror que ocorreram aos seus 7, 17 e 27 anos de idade, desde o medo de fazer algo errado e levar uma surra da mãe aos 7 anos, até o medo de morrer jovem pelas mãos da violência em Compton, cidade onde o rapper nasceu e que enfrenta altos índices de violência. Incluindo o medo de perder a vida que conquistou aos 27, o medo de perder seu talento e o medo do fracasso. A violência e o medo são presenças constantes na vida do negro.


Poverty's paradise
I don't think I could find a way to make it on this earth
(I've been hungry all my life)

O paraíso da pobreza
Eu não acho que possa encontrar um jeito de sobreviver nessa terra
(Tive fome a minha vida inteira)

Fear. Kendrick Lamar



Não precisamos ir tão longe para compreender como a violência, em suas diversas formas, impacta a vida dos jovens negros. Canções que ouço com frequência, como "Rubi pt 2" do artista da Baixada Fluminense, Mauí, abordam o contexto violento da região. Através de suas experiências, percebemos como a carne negra é a mais barata do mercado.

“E que o som da AK de madeira pra nós é tipo um sax
Eu tento expulsar de mim, mas essa dor não sai
Desde pequeninin, acho que é porque eu cresci sem pai
Sangue é ódio purim, sem amor até demais”

Rubi pt 2 - Mauí



VND, em seu primeiro álbum intitulado "EU TAMBÉM SOU UM ANJO" (2021), aborda temas como a violência policial e o preconceito enfrentado pela sociedade, contribuindo para construir um imaginário social sobre estar à margem de uma sociedade que busca invisibilizar, muitas vezes através da morte. No single "Da Silva", lançado pelo projeto "Retrato" do azn.studio, o rapper apresenta uma espécie de remake de "Rap da Silva" de Mc Bob Rum, mas desta vez sob a perspectiva de um jovem que encontra refúgio na violência, uma realidade comum nas favelas do nosso país.


“E você não entende o quanto isso fere, nego
Fede, nego
Merdas com cheiro de flor vem pra confundir vagabundo
Seu sobrenome Da Silva não serviu de nada a polícia passou do ponto
Problemas estruturais esse nego tá em falta nunca mais rezou pro santo…”

VND - Da Silva



A arte é uma das formas mais eficazes de denunciar a violência que os corpos negros enfrentam diariamente nos becos e vielas do Brasil. Deus é um ser bastante irônico, nos colocou em uma realidade onde nós nos tornamos os inimigos, os marginalizados, os excluídos e invisíveis. No terceiro mundo, jovens negros são mortos freneticamente, tantos que para muitos isso se torna natural. Os jornais policialescos que transbordam sangue diariamente retratam-nos como descartáveis, pois, para eles, somos todos iguais: pretos, pobres e potenciais marginais.



Recentemente, retomei o hábito de consumir os jornais que passam diariamente na televisão aberta de nosso país, especialmente os da cidade maravilhosa, onde moro. Com surpresa, o âncora do programa jornalístico relata uma pesquisa recente que aponta que "no Rio de Janeiro, uma pessoa negra é morta a cada 8 horas e 24 minutos" por agentes de segurança, conforme o boletim "Pele Alvo: a bala não erra o negro", divulgado pela Rede de Observatórios nesta quinta-feira (16). A notícia chocante, no entanto, não causa espanto a ninguém. Eu até achei o boletim bastante otimista; somente a cada oito horas? Na minha concepção, seria a cada minuto, no máximo a cada hora, já que somos exterminados em um processo estruturado de limpeza social que persiste desde que fomos sequestrados e escravizados por mãos brancas. Agora, essas mesmas mãos brancas, de maneira indireta, buscam exterminar o povo que trouxeram à força para cá. A certeza da morte é universal, mas para nós negros, é mais tangível.



Presenciamos um jovem negro sendo perseguido por um homem armado ao lado de uma policial militar "de folga" que se recusa a intervir, pois, obviamente, acreditam que se alguém está apontando uma arma para um negro, é porque ele fez algo errado. Como o roteiro da distopia tropical brasileira é escrito por um destino irônico e sádico, foi revelado por um levantamento da Uneafro Brasil que o homem armado que perseguia o jovem negro era um policial civil chamado Paulo Hyun Bae Kim, que havia sido alvo de inquérito policial por agredir a mãe com um disparo de arma de fogo em 2014 e que também foi denunciado por sua irmã.



Recentemente, assisti ao documentário "Rio de Medo" (2018), dirigido por Ernesto Rodrigues, que apresenta o contexto da segurança pública carioca através do olhar dos policiais. No filme, é evidente o processo tóxico de construção desses agentes, muitos deles pobres e negros, que adotam um discurso de guerra, onde seus iguais são vistos como inimigos a serem exterminados. Esse processo violento e doutrinário transforma essas pessoas, muitas vezes, em indivíduos sádicos e apáticos, que temem corpos negros, acreditando que a violência emana dessas pessoas. Um dado apresentado no documentário que particularmente me assustou foi o fato de que a "PM do RJ tem 16 mil militares afastados das ruas, sendo metade por licença médica", muitos deles devido a questões mentais. Não buscando justificar nada, mas é crucial examinar nossa realidade com profundidade.



O Relatório "Pele Alvo: a bala não erra o negro" (2022) da Rede de Observatórios da Segurança explicita o genocídio que nosso povo sofre; os números de pessoas pretas e pardas mortas devido à intervenção do Estado em 2022 representam mais da metade dos casos. Ao todo, 2.770 negros foram vítimas, dentre as 4.219 mortes registradas. No Rio de Janeiro, a situação é alarmante e, infelizmente, não difere do restante do país, com 1.042 pessoas negras mortas entre as 1.330 vítimas da violência nas terras fluminenses. Bahia e Rio de Janeiro respondem por 66,23% do total de óbitos. Torna-se evidente que ser negro no Brasil é, no mínimo, insalubre, com um grau extremamente alto de periculosidade.



Assim, Kendrick, Mauí e VND utilizam a música como uma poderosa arma de denúncia e libertação. Esses três homens negros, provenientes de contextos violentos e origens precárias, poderiam facilmente ter se juntado às fileiras do crime organizado ou terem se tornado mais uma vítima após roubar em busca de subsistência. No entanto, optaram por se tornar resistência, transformando-se em artistas que utilizam sua arte para conscientizar e denunciar as tragédias que ocorrem diariamente em nossas favelas, periferias, vielas, guetos, etc. Essa opção não está disponível para todos; muitos se encontram desamparados, sem estrutura, na luta pela sua sobrevivência. No final das contas, ser negro, de Belford Roxo, ter concluído a graduação, estar no mestrado e ter alcançado os 27 anos é um privilégio. No entanto, ainda é cedo para comemorar. O maquinário do genocídio segue a todo vapor.



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Iago Menezes aka Visualbypivete



Penso em um dia buscar saber um pouco mais sobre minhas raízes. Ser negro é um processo contínuo de esquecimento. Me encontro aqui, não sei de onde vim, quem sou, quem posso ser e quem serei. Não tenho nem um sobrenome para começar, uma pista sequer. Tenho que lutar para não me encontrar como uma árvore oca, seca, pronta para desabar. Temos que nos apegar às raízes, mesmo que desconhecemos a sua profundidade.


“O Marinheiro das Montanhas” (2021) é um documentário bastante íntimo do diretor cearense Karim Aïnouz, que curiosamente tive o primeiro contato nas linhas do rapper também cearense Don L e seus álbuns “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3 e 2”, uma trilogia que começou em 2017 com o lançamento do terceiro volume. O rapper, ao falar do porquê de homenagear o diretor que é seu conterrâneo de Fortaleza, explica que a trilogia é uma observação do Brasil, que também fala de si, de suas experiências, mas buscando sempre a dialética entre o concreto e o abstrato. Um álbum que fala sobre ideias, que projeta ideais, mas que sempre reflete a partir das mãos e dos pés do povo.


Assista na Globo Play: https://globoplay.globo.com/v/12066479/


Uma busca pelas suas origens, uma carta para sua falecida mãe e uma investigação e resgate à memória do pai. Karim, em uma película poética, nos leva em uma busca por uma parte de suas raízes que se originam na Argélia, tendo as Montanhas Atlas em Kabylia como a base da árvore, que o fez atravessar o Mar Mediterrâneo.


No volume dois do seu "Roteiro pra Aïnouz", Don L traça a “trilha sonora da revolução brasileira”, seguindo um contexto linear histórico que lembra nosso querido velhinho vermelho, e não, não é o Papai Noel. O rapper faz o marxismo de cada dia e não busca só falar do mundo que vê, mas pensa no além, busca a sua transformação. Somos convocados para sua guerrilha, levados pelos tempos históricos, entre a colonização, a contemporaneidade e o futuro revolucionário.



O nosso documentarista cearense, que atravessa o globo em busca de suas raízes argelinas em seu poema cinematográfico, não se prende somente ao presente. Ele investiga o passado, reflete sobre o presente e idealiza o futuro, se vê ali através de pessoas que parecem tanto com ele, que carregam o seu sangue, mas também tantas barreiras os separam.



São diversas histórias até que chegue a nossa. São gerações, um tempo que não para, e um destino que traça e escreve novos capítulos de um enredo baseado no acaso. Mas não é tão simples assim; somos nós e nossos iguais que, através de suas idealizações e ações, interferem diretamente no passado, presente e futuro. Alguns só reafirmam a tragédia, outros buscam a salvação.



Em suas jornadas pela Argélia, Aïnouz encontra diversos jovens argelinos em seu caminho. Em sua maioria, eles têm poucas perspectivas de futuro, muitos buscando escapar de seu país de origem. Esse desejo de fuga é algo que, no final das contas, o próprio diretor também compartilha, temendo ficar demasiadamente preso ao passado. Um povo que travou uma intensa luta pela liberdade contra a colonização francesa agora se vê ouvindo, de seu próprio futuro, a frase: "preferiria que a França nunca tivesse deixado o país". Jovens que tiveram sua cultura totalmente "afrancesada", são abandonados pelo colonizador e impedidos de viver na França que os forçou a assimilar também uma identidade francesa.



Karim, com uma câmera digital na mão e uma voz em off, mostra que o passado tem que ser observado com cautela; não podemos esquecer do presente e menosprezar o futuro. Don L, com suas rimas, apresenta um Brasil em suas diversas dimensões, mostra a doença, mas também busca a cura.


“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.” (MARX, 1974, p. 136)"



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Derxan lançou a mixtape "Eu Mermo" (2023) pela Pineapple Storm Records e está sensacional. Penso na frase "eu mermo" como uma afirmação, um atestado de identidade. "Eu sou isso mesmo e sei que vocês vão me renegar, tentar me matar."


Cantando suas vivências em uma estética periférica, com um flow contundente, ele dá rosto para aqueles que vivem à margem da sociedade e encontram no crime, na arte ou no futebol as poucas oportunidades de sair dessa situação.


Derxan, “o próprio”, é diferente daqueles que oprimem, mas semelhante à maioria da juventude periférica que luta diariamente contra a violência de uma elite e de um Estado que não os aceita.


Suas letras são cirúrgicas, violentas, incisivas e diretas. Suas rimas fluem sobre as batidas de Ávila, Pedro Apoema, Babidi, R.Muñoz e Gshao como rajadas cortando o céu, narrando suas vivências, medos, desejos e seu ódio.



Derxan é ousado, com seu “reflexo de bolinha”, fumando um “balão” na laje de alguma casa em uma das muitas favelas do Rio. O audiovisual do projeto também está incrível, com direção do ACEITOTUDONORMAL que criou uma estética que enriqueceu muito a experiência da mixtape.


Derxan em suas músicas expressa seu ódio em relação à polícia, um sentimento compartilhado por muitos jovens negros favelados que sofrem diariamente a perseguição dos policiais. A revolta que sente daqueles que só oferecem temor e preconceito.



Ser negro e manter uma estética periférica é como colocar um alvo nas costas. As letras de Derxan carregam toda essa constante luta pela sobrevivência. Seu som é um grito de muitos que são esquecidos e marginalizados, um ódio de revolta, com toda a sagacidade dos crias.


Fotos: @_nataliaelmor e @vevemilk


Com participações de Sant, Pior Versão de Mim, Big Bllakk e MG CDD, o artista exalta o cria, o favelado, que convive com a violência diária carioca, com o caos de uma cidade que para muitos se resume apenas ao cartão postal. Um jovem que tem ódio do sistema, tem ódio da polícia e mais empatia com os "trafica", pois são seus antigos amigos de escola. Ele sabe pouco do Estado, que se mantém ausente, mas sabe bastante da firma, pois eles sim estão presentes.



"Los Pollos" com Sant, "Maçã" e "Menorzao" com Pior Versão de Mim são minhas preferidas. Mas a mixtape inteira é sensacional, e considero um dos melhores lançamentos deste ano. Tenha fé em Deus e ouça Derxan.




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