Se a gente não disser, quem vai dizer?
“Tudo precisa ser dito, ainda mais se for verdade”, solta o Xari já na primeira pergunta. E é com esse peso no peito que nasce O Que Eu Não Disse Antes, nova mixtape de Xari & Rojão — um duo que já não é mais promessa: é papo reto, é memória viva, é BXD!
No som deles, a Baixada Fluminense não é cenário — é personagem principal, é ferida aberta, é ninho e campo de guerra. Como contar esse território sem cair no clichê? Como cantar dor sem virar fetiche? Como rimar a realidade sem romantizar o corre? Simples: contando história.
“Foi natural abordar o real deixando o imaginário pro ouvinte”, lembra Rojão. O resultado é um som que rasga, mas também costura. Que derruba, mas estende a mão.
Por isso a Menó lança essa entrevista no Dia da Baixada Fluminense — esse 30 de abril que o calendário oficial tenta esquecer, mas que pulsa forte no underground, no palco, na favela, no estúdio improvisado e no faça por você mesmo.
Porque se ninguém fala por nós, a gente grita junto. E gritamos mesmo — com beat, com revolta, com carinho. Porque, como eu escrevi lá em 2021 — quatro anos já, olha nós ficando velhos — sobre o EP 5x1 do Rojão: “Baixada tem violência, mas também tem cultura, educação, poder, glória e, o principal, tem história”. E essas histórias precisam ser reforçadas, porque denunciam os descasos e alimentam a esperança. Porque os contadores de hoje estão reescrevendo, todo dia, a lógica desse ciclo de dor.
A história que eles contam agora é sobre não deixar mais nada atravessado. Tem crítica, tem perda, mas também tem afeto — aquele que mora no papo reto, no desabafo pós-corre, no estúdio compartilhado onde cada um colabora do jeito que dá. Como diz Xari em “Ruas Vazias”, som do EP Cordas (2024), que já passou aqui na Resenha do Pivete com texto brabo do Pedro Santos: “Labirinto nunca é o problema se tu não quer ver a saída”.
O que não foi dito antes
A mixtape começa como um papo reto que alguém resolveu meter no meio da roda: são sete faixas com participações de cria — Mustache, Grande e Marcão Baixada, que assina uma continuação de Rap Sem Refrões e Ponte, um dos sons mais pesados do disco
Repertório (2022), também já resenhado aqui. Mas agora, essa ponte que ele sempre construiu entre a favela e o mundo ganha reforço de Xari & Rojão. É a velha guarda se conectando com a nova geração. A presença do Marcão, como diz o Rojão, “é a Baixada sendo a Baixada”.
Ter Marcão Baixada na faixa não é só feat — é pacto. É reconhecer ali uma referência gigante da cultura fluminense. Desde os tempos de Baixada in Cena — som de 11 anos atrás! — ele já anunciava o que agora tá todo mundo vendo: esse território tem potência pra caralho, mesmo que neguem isso o tempo todo.
Campeão da Copa do Mundo do Hip Hop (Take Back the Mic), com mais de 10 anos de caminhada, Marcão é um dos nomes mais afiados do rap fora do eixo. Seja rimando ou gerindo carreiras musicais, ele ocupa espaço e abre caminho. Sua importância é fato.
A mixtape é tipo mapa afetivo da margem: tem rima que fere, tem rima que cuida. Fala de perdas, de ausências, mas também de ternura, de parcerias, de amores que não cabem em fórmula.
Coletivo ou nada
“Sem outras pessoas colaborando, esse projeto nem saía do papel”, lembra Xari.
E é isso: o som deles é feito em rede. A Baixada é terra de quem se fortalece, mesmo sem edital, sem hype. Produtores como Onda Pesa, primotrs, Valdetaro e João Passeri tão construindo um ecossistema onde o ruído vira linguagem, a falta vira estilo, e o amor sustenta a parada. Talentos do audiovisual como Emanuel Sant, JomBoh e Higor Cabral transformam música em imagem, enriquecendo ainda mais esses trampos.
O coletivo aqui não é só nome nos créditos — é a razão do som existir.
“Hip hop é união, certo?”, resume Xari.
E na Baixada, onde quase tudo falta, o que não pode faltar é quem acredita junto.
O Que Eu Não Disse Antes não é só mixtape — é manifesto. Essa obra é espelho e farol. Espelho de uma quebrada ignorada. Farol de um futuro sendo moldado no verso, no beat, na raça. A arte da Baixada não é só resistência: é proposta, é projeto, é porvir.
A gente nunca teve estrutura decente. Nunca veio incentivo fácil. Mas a gente aprendeu a fazer na unha. Porque aqui, o coletivo não é estética: é necessidade.
A potência da margem
Num país que ainda chama nossas cidades de “dormitório”, Xari e Rojão tão acordadíssimos. Cantando, denunciando, celebrando. E cada batida da mixtape é um soco nos ouvidos moucos do Brasil.
No fim das contas, O Que Eu Não Disse Antes é sobre o direito de contar a própria versão da história, com todos os ruídos, silêncios, caos e beleza que isso carrega. Não é só disco — é gesto.
Xari & Rojão rimam com a precisão de quem viveu. Falam da violência não como tema, mas como vivência. Cada faixa é um retrato cru de quem teve que atravessar tudo isso. Mas também é um gesto de amor: pelos que ficaram, pelos que se foram, pela memória que vira força.
Não é só denúncia. É também afirmação. De si, da quebrada, dos amores e das alianças que sustentam esse fazer artístico no meio do caos. É sobre tudo que não deu pra falar antes — e que agora precisa ser escutado.
E se o Brasil insiste em esquecer a Baixada, a gente insiste em lembrar: 30 de abril não é só uma data. É um grito. E aqui, ninguém solta o mic sozinho.
Trocamos essa ideia com Xari e Rojão — nossos Bebeto e Romário do rap fluminense — pra entender o que ficou atravessado na garganta e agora ganhou microfone.
Entrevista:
Pivete: “O Que Eu Não Disse Antes” soa como um desabafo potente. Que verdades vocês precisavam soltar agora, e por que esse momento?
Xari: Na real, tudo precisa ser dito — ainda mais se for verdade, rs. Acho que a pegada dessa mixtape foi tentar trazer uma visualização diferente pra forma como a gente já trabalha, mas escancarando nas letras os sentimentos mais “profundos” que vêm disso. Também acredito que esse é um bom momento tanto pra minha caminhada quanto pra do Rojão. A gente viu que “Cadê?” foi muito bem recebida, então decidimos trocar mais ideia com o público, abrir mais do que tá dentro.
Rojão: Pô, depois de uma temporada maneira de eventos juntos, bateu a vontade de abordar nossas reflexões de um jeito diferente — não só na música, mas também na postura, no flow. Algumas coisas estavam entaladas, outras foram surgindo no processo… mas no fim tudo fez sentido junto.
Pivete: A mixtape fala da Baixada sem romantizar. Qual foi o maior desafio de traduzir essa vivência pro som sem cair no clichê da violência?
Xari: A gente trabalha bem o storytelling nessa mixtape, somos bons nisso. Criamos uma atmosfera de história mesmo, onde cada pessoa interpreta do seu jeito — e ainda assim, metemos o dedo na ferida. Isso gera uma reflexão massa de como tratar certos temas sem cair na mesmice que geral já tá cansado de ouvir.
Rojão: Nem foi desafiador assim, porque a gente tava se divertindo contando histórias. Às vezes, no caminho pro estúdio, rolava alguma situação que já virava parte do cenário da música. Foi natural — a gente mostrou o real e deixou o imaginário pro ouvinte.
Pivete: A presença do Marcão Baixada é marcante. O que essa parceria representa pra trajetória de vocês?
Xari: Pra mim é um orgulho gigante ter ele na fita. A gente queria muito isso — trazer a Baixada nos versos com quem pavimentou esse corre antes de nós. É homenagem, é referência, é mostrar que dá pra fazer com os nossos. Quem escuta, sente isso.
Rojão: A gente já trocava ideia sobre fazer algo junto com o Marcão, mas ainda sem formato. Quando veio a ideia da mixtape, não teve jeito: era o momento. É a Baixada sendo a Baixada — quem tava antes abrindo caminho segue com a gente na pista. Isso só fortalece a área e os vínculos.
Pivete: Produzir de forma independente, com uma rede forte da própria quebrada, é quase uma assinatura de vocês. Como o coletivo molda o trabalho?
Xari: Sem outras pessoas colaborando, esse projeto nem saía do papel. Acredito muito nisso. Hip-hop é união, né?
Rojão: Não tem outro jeito de fazer se não for no coletivo — ainda mais pra quem é da Baixada. É nesse pique: cada um soma onde pode e no final tudo flui do melhor jeito.
Pivete: A mixtape tem dor, tem crítica, mas também tem afeto. No meio de tanto corre, onde vocês encontram espaço pra falar de amor?
Xari: O amor existe — e é ele que faz a gente continuar. Seja amor romântico ou não, é o que move. E até quando a gente perde um amor, transforma aquilo em letra, em som. Faz virar força.
Rojão: O amor tá no papo reto com os parceiros na roda, no desabafo depois de um dia puxado. Tá nessas trocas sinceras e nas reflexões que vêm delas.