Então é Natal: e eu não preciso perdoar ninguém
- Ryan Augusto

- há 2 horas
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Só a antropofagia nos une. Nunca fomos cathechisados.
Fizemos Christo nascer na Bahia. Fizemos foi Carnaval.
A alegria é a prova dos nove
Oswald de Andrade, 1928
Parte I
Um dos eventos mais celebrados ao redor do mundo, o Natal mobiliza uma constelação de imagens e sentimentos. Reunião, conciliação, esperança, dádiva … muitos são os símbolos que atravessam o formato padrão de filmes, músicas e peças teatrais que pretendem expressar o denominado “espírito natalino”. Não é isso que vemos em Bem Vindo ao Natal, mixtape de Raffa Moreira lançada no ano de 2016.

O rapper guarulhense “profana” a imagem natalina tradicional, invertendo valores e embaralhando sentidos normalizados em diferentes dimensões. “Não vou perdoar ninguém porque é Natal”, insurge o artista já na primeira linha da faixa-título, provocando uma quebra de expectativas. Seu discursivo rompe com possíveis conciliações, performando uma agressividade contra seus haters, além de misturar elementos do estilo Trap com o sample da orquestra In the Hall of the Mountain King (1875). O resultado foi o estranhamento de um público ainda não familiarizado com essa nova sonoridade híbrida no circuito musical brasileiro.
Atualmente (quase uma década depois) a estética do Trap é predominante na indústria cultural. Naquele momento, porém, a produção artística do Raffa foi taxada como meme, principalmente após sua participação polêmica no projeto Poetas no Topo 2 (2017) e o lançamento de uma sequência de músicas que dobravam a aposta em um estilo experimental. A “Odisseia Raffa Moreira” foi analisada de maneira brilhante pelo canal Quadro em Branco, em duas partes que acompanham desde as inúmeras mixtapes gravadas de modo independente até a trajetória de ascensão do autodenominado criador do Trap brasileiro.
É engraçado olhar para trás e ver que minha intuição sobre a potência criativa desse artista “maldito” não estava tão equivocada assim. Entretanto, meu objetivo aqui não é conferir legitimidade ou qualquer outra pretensão similar. Aliás, nem mesmo é preciso. O Raffa sempre se autoafirmou em suas músicas: “Disseram que eu não faria sucesso/ E eu pensando como ser mais estético” (10K É Pouco Eu Sei, 2018).
Entre os sujeitos que compõem o circuito do Rap nacional, ainda existe uma certa rejeição ao Trap: rotulado como uma mera “cópia de gringo”, desprovido de reflexão crítica e desvirtuado de uma suposta essência do Hip Hop. Postura essa que parece guardar algumas semelhanças em relação ao Funk carioca. Todavia, acredito que o estilo estético do Raffa Moreira — e do Hip Hop como um todo, vale dizer — possa ser caracterizado como uma antropofagia cultural. Um ato que devora as influências estrangeiras, transformando os símbolos absorvidos para criar um fazer artístico novo e particular.
Esse traço antropofágico, percebido na extensa discografia de Raffa Moreira, se manifesta especialmente na forma que o imaginário natalino é apropriado na Bem Vindo Natal Mixtape. Se na faixa-título há um certo deboche, irreverência e agressividade, podemos identificar no percurso da obra a inversão de elementos que retomam um “espírito do Natal”, porém ressignificado e atualizado conforme o cenário singular construído.

A representação do Natal, fruto do processo histórico de colonização cultural e religiosa, geralmente evoca as idealizações de harmonia (invisibilizando os conflitos sociais) e prosperidade (indissociável do consumismo da sociabilidade capitalista). Nesse contexto, com contradições e limitações, o reconhecimento subjetivo por meio do consumo produz um ruído na hierarquização racial. Esses cenários são narrados sobretudo nas faixas De Fato (part. Nill) e Toca, Black & Trança (part. Klyn, Imob Zind e Blackout IMOB). Se os shoppings aparecem como espaços privilegiados para o fluxo de mercadorias que apossam o “espírito natalino”, os guardinhas representam a tensão entre a ascensão social de sujeitos marginalizados e a vigilância de corpos negros.
Já quase arrumei briga, o segurança tá me olhando, é foda/ Eu sei, porque eu sou preto (Bem Vindo Natal Mixtape. Faixa: De Fato)
A noite de ontem foi foda, mano, vou falar/ Colei no shopping, tinha uns kit, mano, pra pagar (...) De touca, black, trança/ Foda-se se olhou desconfiado (...) Vim pra comprar o estoque, espelho, balcão e a modelo/ Eu tenho dinheiro, segurança seguindo, eu não tô entendendo (Bem Vindo Natal Mixtape. Faixa: Toca, Black & Trança)
Permeado por ambivalências, ao mesmo tempo em que ad libs aparecem ao longo das músicas como estratégia de divulgação da sua marca de moda / Fernvndx Clothing, nego! /, Raffa Moreira também estipula princípios que vão além de reivindicações individualistas. Tampouco se satisfaz com uma subordinação aos padrões estéticos vigentes à época, o que talvez facilitaria um sucesso artístico e financeiro mais rápido.
Eu vi cê falando que os gringo faz e o Raffa não pode/ Na internet fala, ao vivo cê treme/ Eu li seu comentário falando que o som é uma bosta/ Eu juro, mano, que eu quis matar você/ Tentando colocar FERNVNDX Clothing e os negros na moda/ Fazendo o mundo pros meus filhos mais foda/ Tornando o mundo pros preto menor foda/ Cê acha mesmo que essa porra é só droga? (Bem Vindo Natal Mixtape. Faixa: 777)
A fé de Raffa Moreira chega realmente a ser mágica. Mesmo antes da Pineapple e todas as polêmicas que o tornaram viral, seu estilo artístico já demostrava uma potência que excede as violências raciais vivenciadas no cotidiano periférico. No lugar de uma harmonia concedida como dádiva, o conflito emerge a partir das margens de Guarulhos. Isso fica evidente nas colaborações presentes no projeto: os vínculos estabelecidos com artistas da cena local tensionam espaços interditados, viabilizando a insurgência de vozes reprimidas pelo consenso dominante.
No Natal em Guarulhos há uma verdadeira congregação, um ambiente familiar entrelaçado nas ruas. De uma maneira excêntrica, desconexa e que em um primeiro momento parece não haver relação com a temática da Mixtape, surge um estilo próprio para expressar vivências em comum. Um processo de subversão que joga entre o sagrado e profano, a ordem e o caos, a seriedade da denúncia e a alegria do cômico.
O Raffa é foda? Talvez. Os caras acharam engraçado. O fato é que o Raffa não parou. Guarulhos Trap City se consolidou e renovou a vitalidade estética, ética e política da cultura Hip Hop, em uma reunião nada harmônica. E assim, em meio a essa hibridez e autenticidade que caracteriza o Rap, a Bem Vindo Natal Mixtape constrói uma imagem natalina peculiar, porém compartilhada. Um ato que devora idealizações e costumes rígidos para expressar situações vivenciadas concretamente. Antropofagia e sincretismo como estratégias de resistência coletiva: invocação de forças capazes de inventar e transformar as codificações vigentes. E provavelmente isso seja o mais próximo da pluralidade de formas de celebrar o Natal nas periferias brasileiras.

Parte II
Firmeza total, mais um ano se passando/ Graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô?/ Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso/ Sem miséria, e é nóis/ Vamos brindar o dia de hoje/ Que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka. (Racionais MC’s. Faixa: Vida Loka, Pt. 2)
Todos os meus manos sabem que o Racionais é influência na rua e na vida. (Raffa Moreira. Faixa: MJ).
Difícil contar o número de mixtapes que o Raffa Moreira produziu entre os anos de 2016 e 2017. Dentre elas, o projeto Rockstar Mixtape (2016) ocupa um lugar especial nesse período frenético de produções: cada faixa transborda experimentos estéticos e sonoros, além de trazer temas que voltariam a aparecer meses depois na Bem Vindo Natal Mixtape.
Se o estilo Trap — e o Raffa, em particular — costuma ser acusado de não se preocupar com o conteúdo lírico das letras, esse não parece ser o caso da Rockstar Mixtape: “Eu tô tipo em Guarulhos e vocês na Vila Madalena” (Rockstar, faixa-título); “Incentivando os mais novos a nunca deixar de acreditar em si” (Rockstar, faixa Indo); “Nego, eu sou mais que dinheiro/ Nego, essa porra é minha vida” (Rockstar, faixa Aff).
Sem deixar de inovar na forma em que se expressa, muitos são os trechos da obra que convidam os ouvintes a pensarem e sentirem. Talvez o exemplo mais notável seja a música Print na Briga, que expõe um verso de extrema sensibilidade:
Moleque de fora vê/ Diz que eu sou foda e não sabe por quê/ Se espelha no corre, pergunta do beat/ Falou que é pesado quando eu grito "Uh!"/ Se ele soubesse, eu tive depressão/ Eu vi Deus na minha frente, ele falou comigo: "Não se mata, filho, vou te fazer grande/ Cê é o mais foda deles, cê não tá sozinho" (Rockstar Mixtape. Faixa: Print na Briga)
Vale ressaltar, ainda, outra estratégia de divulgação utilizada pelo artista de Guarulhos. Se em Poetas no Topo 2 há uma autorreferencia que passou relativamente despercebida / “Você devia ouvir a Rockstar!” /, essa atitude se assemelha ao verso final de outra faixa, onde, após narrar uma cena em que sabia que tomaria um enquadro pelo seu Swag, Raffa rompe com um certo formato padrão e anuncia a data do seu próximo trabalho:
Dia primeiro de dezembro Bem-vindo Natal Mixtape (Rockstar Mixtape. Faixa: 28 Swag)
No dia primeiro de dezembro, agora de 2023, era lançada a Bem Vindo Natal Mixtape 2, continuando o projeto depois de sete anos da primeira parte. Nesse intervalo, músicas e clipes com produções cada vez mais “estéticas” substituíram o ritmo acelerado das mixtapes. Longe das tretas que marcaram o início de sua trajetória e reabilitado como um dos pioneiros do Trap brasileiro, Raffa passou a figurar nos principais festivais de Rap, chegando a receber elogios de Zeca Camargo pelo seu single Golpe (2021).
Apesar de não pretender fazer uma análise exaustiva, não poderia deixar de mencionar essa continuação por alguns motivos. Como visto na primeira parte da Mixtape, a tensão racial se manifesta no cenário de perseguição dos guardinhas nos Shoppings, reforçando uma expectativa de reconhecimento social através do consumo. Todavia, na parte dois há a formulação de outro discurso, cujo ponto alto, sem dúvida, vemos na música LLLK (Long Live LK): faixa em homenagem ao jovem artista LK Metralha (20 anos), assassinado pela Polícia Militar de São Paulo em 2023.

Lukinha foi um entre vários rappers de Guarulhos que já fizeram colaboração com o Raffa (Drip de Quebrada, 2021). Se os vínculos com artistas locais da cena de Guarulhos sempre estiveram presentes na trajetória de Raffa Moreira como estratégia/ética de ascensão coletiva, a faixa LLLK, por outro lado, revela a violência nas periferias em seu estado mais brutal.
O moleque mais mil grau da quebrada/ Vivia a vida a milhão com os parceiro e com os D pé na porta/ Não chamo de inconsequência/ Mundo tá globalizado e te oferta um estilo de vida que é caro/ Só pra você ter ciência: todos cria da favela amava o Lukinha/ Desde as criança até os mais velho/ Vai fazer falta no baile, vai fazer falta nos clipe'/ Eu 'tô guardando seu copo/ Deus consola a dona Shirley (Amém) (Bem Vindo Natal 2. Faixa: LLLK)
Em entrevista ao portal G1, Dona Shirley (mãe de Lukinha) não mede palavras para denunciar a política de extermínio conduzida pelo Estado: “A polícia tem que parar de achar que favelado é alvo. Que pode ir atirando sem perguntar nada antes”. Foi o seu segundo filho assassinado, ambos com a idade 20 anos. Rafael, irmão de Lukinha, foi encontrado morto em 2020 (segundo testemunhas, depois de ser abordado por policiais militares).

Talvez por isso, na última faixa, em vez do não vou perdoar ninguém porque é Natal, o que vemos é uma apologia à solidariedade fraterna, contextualizada a partir da experiência periférica de Guarulhos. Ou melhor, na perspectiva de alguém que trilhou um caminho permeado por conflitos e tragédias, mas que parece não querer se render à repetição do mesmo. Afinal, para quem (sobre)vive no atrito, qualquer pretexto é um bom motivo para renovar a esperança em um amanhã melhor.
Eu vou ligar pra aquele velho camarada que infelizmente houve um atrito/ Treta boba sem sentido/ A vida é tão curta pra guardar rancor/ Especialmente em dezembro/ Mês de festas, natal e ano novo/ Próximo ano tudo de novo (Bem Vinda Natal Mixtape 2. Faixa: Véspera de Natal)
Pode ser que a segunda parte do projeto natalino do Raffa Moreira não entre para a história do Rap nacional. Eu mesmo só conheci enquanto escrevia a primeira parte deste ensaio. E a Bem Vindo Natal 2, talvez, nem tenha esse horizonte como objetivo. Se não inova no estilo — comparado a fase vanguardista —, traz em seu conteúdo uma expressão mais consolidada. A obra aparece como um presente. Uma lembrança para os que acompanharam a caminhada e uma homenagem para os amigos que se foram. Coletividade na quebrada, um brinde ao ano que se foi e fé ao que virá: todos os manos sabem que o Racionais é influência na rua e na vida.
Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Aí truta, é o que eu acho, eu quero também
Mas em São Paulo, Deus é uma nota de cem
Vida Loka
(Racionais MC’s. Faixa: Vida Loka, Pt. 2)
Feliz Natal, meu mano!
Referências
ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
G1. Mãe do rapper LK Metralha teve o 2º filho morto pela polícia em SP e se diz revoltada: 'PM tem que parar de achar que favelado é alvo'. Por Rodrigo Rodrigues, Kleber Tomaz. São Paulo. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/10/20/mae-do-rapper-lk-metralha-teve-o-2o-filho-morto-pela-policia-em-sp-e-se-diz-revoltada-pm-tem-que-parar-de-achar-que-favelado-e-alvo.ghtml. Acesso em: 17/12/2025.
MOREIRA, Raffa. Bem Vindo Natal Mixtape. YouTube, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T8lvjOjm054&list=RDT8lvjOjm054&start_radio=1. Acesso em: 12/12/2025.
MOREIRA, Raffa. Bem Vindo Natal Mixtape 2. YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z1e7d6Y98Zo. Acesso em: 17/12/2025.
PINEAPPLE STORMTV. Poetas no Topo 2. YouTube, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oqEZzLb4oqM. Acesso em: 12/12/2025.
QUADRO EM BRANCO. A Odisseia Raffa Moreira. YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ECIbmhxdv00. Acesso em: 12/12/2025.
RAPMAIS. Zeca Camargo rasga elogios ao trap de Raffa Moreira. Por André Bernardo. 2025. Disponível em: https://portalrapmais.com/zeca-camargo-rasga-elogios-ao-trap-de-raffa-moreira-eu-nunca-ouvi-nada-assim-e-absolutamente-excepcional/. Acesso em: 17/10/2025.
VICE. Eles amam o Thug, mas desprezam o Raffa Moreira. 2016. Disponível em: https://www.vice.com/pt/article/raffa-moreira-perfil/. Acesso em: 13/12/2025.










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