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Pivete Odeia o Natal: Infância Periférica, Desigualdade e o Mito do Papai Noel

  • Foto do escritor: Pivete
    Pivete
  • há 2 horas
  • 5 min de leitura
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Pivete só tinha visto o Papai Noel uma vez, digo, uma pessoa fantasiada. Mas ele viu, lá no Shopping Grande Rio, o único shopping da Baixada Fluminense naquela época. Ficou conhecido como um lugar em que todo mundo que você via era conhecido, o tempo todo.


O pai do pivete trabalhava no shopping. De alguma forma, a inocência desse pequeno ser o fez acreditar que, por usar terno, seu pai tinha algum papel de importância naquele estabelecimento, o que, com o decorrer do tempo, entendeu que não.



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Sentado em uma cadeira exageradamente natalina, com duas mulheres ao seu redor vestidas de duendes, que estavam arduamente tentando controlar aquela multidão de crianças, estava lá o Papai Noel, ouvindo desejos, mentindo para algumas crianças, que, como o pivete, aparentemente não mereciam tamanha benevolência do bom velhinho.


Mas tinham crianças que recebiam os presentes que pediam. Elas estavam lá, o pivete reconhecia, sentia talvez, não sabia dizer. Era algo que o deixava estranho, pois uns tinham tanto e outros tão pouco.


Sua mãe, inocente, questiona nosso protagonista se ele gostaria de tirar uma foto com aquele homem de barba ridiculamente postiça.


“Mãe, podemos ir para casa? Não tô me sentindo bem.”

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Ao lembrar da casa, pivete lembra do seu computador, que tinha ganhado recentemente por conta de uma política do governo Lula que barateou alguns computadores de empresas brasileiras. Pivete lembrava do nome: Computador para Todos. Pode parecer banal, mas ter um PC, para quem sempre foi rato de lan house, servia como fuga dos olhares, das ofensas, do sentimento de sempre ser o outro.


Aquele computador, mesmo sem internet, com sistema operacional Linux… Pivete tinha um objetivo claro: ir na feirinha da Pavuna e comprar o Windows pirata, tacar uns jogos. Mas ele estava ali no shopping, cumprindo o rito da sua família de proporcionar momentos de amor e carinho em tempos de consumo e exploração.


Sua mãe, uma mulher parda, que tinha acabado de terminar um supletivo e conseguido finalmente realizar o sonho de ser técnica de enfermagem, podendo proporcionar algum alívio à falta que essa criança, como ela, teve durante todos esses anos, ao ver seu filho declinar e se encolher entre suas pernas, quase chorando, se questionou se não havia algum problema com aquela criança.


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A irmã do pivete, diferente dele, tirou foto, pediu presente e ganhou. Pivete sabia o que ele queria, mesmo que nunca soubesse bem o que queria. Terminou o dia com uma sensação estranha. Era caro demais aquele jogo. Sua irmã já ia para o segundo presente, uma Melissa. A loja fedia a plástico e euforia.


“Não compraremos nenhum jogo, ainda mais nesse valor. Você já passa muito tempo em frente ao computador, tem que sair para a rua, viver.”

Entre casquinhas de sorvete e tentativas de pensar alternativas para o seu frustrado presente, acabou indo para casa com algumas roupas que sua mãe escolheu. Pivete só queria crescer, ser alguém. Parece que criança só tem que obedecer, se iludir com uma mentira. A partir dali, o Natal se explicitou como farsa.


Pivete não gostou da roupa que recebeu. Não podia mexer no PC - era na sala -, sua mãe não permitiria em meio às festividades natalinas. Pivete odeia o Papai Noel. Ele viu aqueles pisca-piscas, eram bonitos, ele não conseguia negar que havia um apelo naquele vermelho e branco.

Olhou a mesa posta, o horário. Já estava perto da ceia. Lá em casa, meia-noite. Pivete estava com fome. No meio, a música tinha a imagem muda da televisão, que o seduzia em meio a tanta gente e informação. Ele sempre foi introvertido. Alguns chamavam de sonso, outros de tímido.


Pivete só queria ser invisível. Sempre se sentia meio sozinho, poucos amigos.



Pivete odeia o Natal.


Quando ele teve que se mudar de São João de Meriti para Belford Roxo, começou a se sentir mais sozinho ainda. Seus amigos estavam lá, não aqui. Ele morava na última casa do morro. A sorte é que ainda estudava na mesma escola, então a própria escola se tornou seu lugar de preferência, e ele ia de um morro para o outro, todos os dias da semana, para encontrar seus iguais.


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Desde que, em uma aula de história, conheceu Zumbi e Dandara e sua luta por liberdade, entendeu o que eram os quilombos. Passou a ver seu território como um. Era um dos poucos lugares em que se sentia pertencente. Sentia falta de morar em São João, de seus amigos. Sabia que iria passar boa parte das férias sozinho. Ao terminar a aula e ter que se despedir dos amigos, sentia aquele mesmo sentimento estranho.


Olhou em volta: os temas natalinos, os pisca-piscas. Eles brilhavam em sintonia. O Natal ilumina as ruas turvas da Baixada Fluminense. Nos bares, já se comemora a trégua de fim de ano. Quem continuou de pé em meio às porradas do capital, agradeça e o alimente. Tenha piedade de nós no ano que vem. Senhor colono, não invada meu quilombo, não me domestique com seu sadismo.


Ele já tinha desacreditado totalmente que existia um velho de barba branca que carregava uma sacola vermelha cheia de presentes, saindo por aí para distribuir em seu trenó mágico. No mínimo, ia acabar incomodando o tráfico, o único poder presente naquele buraco onde Pivete morava - ou se escondia, em Belford Roxo.


“Sorte dele que vermelho é uma cor aceita por aqui” - pensou Pivete. Mas logo se ligou que dificilmente aquele velho conseguiria subir o morro.


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“Nem pensar. Não quero você se juntando com esse tipo de gente. Esse dinheiro sujo que financia isso é o mesmo que promove a violência que oprime a gente, meu filho”.

Talvez fosse isso que a mãe do nosso pivete quisesse dizer quando apenas gritou e o impediu de ir pegar doces e brinquedos que os traficantes do bairro estavam distribuindo.


Pivete sabia que a mãe jamais deixaria. Ele até inventou uma desculpa qualquer, disse que ia buscar não sei o quê em não sei onde. Mas a coroa já era esperta. Tem que ser, para criar um jovem negro na Baixada Fluminense. O medo não é só o de sair de casa, é o de que as balas que ele encontre sejam outras - dessas que também são geralmente distribuídas de graça por aí, principalmente aqui na Baixada.


Já convicto de que só ganharia algum presente se os pais resolvessem dar, percebeu que sua vida, mesmo ainda curta, não tinha muito espaço para imaginação. Se cobriu do real. Agradeceu pela rabanada molhadinha, ligou a TV para ver tudo o que lhe faltava. O lúdico emanava da tela. 

Pivete tem que aceitar o seu destino: o Papai Noel não vai visitar você.


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E agradecer por não ser um dos presenteados pelo São Nicolau Estatal, que distribui balas por aí. Pivete, talvez seu presente seja sobreviver, diferente de outras crianças que encontram a suposta violência legítima do Estado.


As telas não mostram a verdade, elas enganam. Em alguns momentos, que bom que enganam: mascaram a falta, alimentam o tédio, confundem o ódio. Pivete sabe que, da alegoria às marionetes, a mão que conduz os fios se oculta através do poder.


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