Eles Matam Porque Podem
- Pivete
- 6 de ago.
- 3 min de leitura

Não tem nada de normal. O que chamam de rotina é o barulho da máquina triturando mais um.
Parece que, sempre que vejo algo sobre a máquina de triturar gente - que opera sem a estereotipada apatia do serviço público - tem alguém gritando: “Está tudo bem, algo ele fez.” Ou então, simplesmente, nos tempos atuais, deslizamos para baixo e toda aquela indignação momentânea vai junto.
Você está inteirado sobre as notícias recentes?
Olha, eu sou o primeiro a não querer escrever sobre isso. Não me agrada ficar relembrando alguns dos vários corpos negros que tiveram suas vidas usurpadas pelo monopólio da violência do Estado - que, acredite se quiser, é legítimo, como mostra todos os dias em seus discursos e narrativas. Além disso, é impunível.
Desde Hobbes, o Leviatã mostra seu papel: devemos seguir tal contrato - arbitrário, confuso e desigual - que ninguém sabe muito bem o seu teor, mas cuja suposta quebra, ou simplesmente uma possível infração, é passível de morte.
Um homem em situação de rua foi assassinado - no maior toque higienista da coisa - e só não foi completamente esquecido por conta de uma câmera, que - teoricamente - deveria inibir a violência policial, mas só registrou mais uma atrocidade.
“Mas quem vai punir um herói de farda, ainda mais por matar uma párea da sociedade? Um excluído do consumo, escravo da própria miséria?” - pensaram os policiais militares. Ou qualquer coisa semelhante que os tenha feito cometer tal atrocidade mesmo sabendo que talvez poderiam ser pegos.
A impunidade é uma construção - tijolo por tijolo. O primeiro veio para essas terras junto com o descobrimento, mas se espalhou pelo globo: um sentimento de superioridade que muitos atribuem ao nascimento do outro - simples, por si só - para justificar uma dominação contínua.
Um ciclo sem fim, que sobrevive da necessidade de causar medo, temor, pânico.
Uma sociedade que não vê alternativa à violência causada pelo suposto remédio - indiferença, desigualdade, mais violência - e que justifica suas consequências com ainda mais violência.

O Leviatã, em sua forma mais especializada, tem vários meios para se justificar e se resguardar: um tribunal onde ele é o júri, o juiz e o réu.
O medo vende - olha esses jornais policiais.
O medo ganha voto - veja o discurso do político da sua preferência.
Por conta de soluções fáceis comunicadas a um eleitorado desesperado, temos hoje no poder Tarcisios e Cláudios Castros.
Além disso, o Rio de Janeiro já passou por tantos milicianos que conseguiu impulsionar um deles para virar presidente da República.
É uma juventude que morre de polícia - como Pedro Drummond nos alertou em sua análise incrível sobre o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Casos na Bahia mostram ainda mais: não importa a ideologia política, o compromisso de matar pessoas negras é inalienável.
É um projeto de nação.
Olha pra trás: desde que eles perderam a mão no sequestro, trazendo cerca de 4,9 milhões de pessoas para o país entre os séculos XVI e XIX... e, depois, percebendo o estrago, tentaram vender o embranquecimento. Chamaram imigrante europeu.E quando viram que não resolveu, o foco virou só matar.
Porque, em meio a isso tudo, a morte sempre foi uma ideia de vanguarda.
E eles sabem dizimar.
Olha só nossos irmãos indígenas - povos originários - que foram mortos de todas as maneiras: no material e no abstrato. Povos inteiros, culturas que eles consideravam de menor valor, passíveis de perseguição, justificativas para mais mortes.

Nada mudou.
Olha lá: é o Poze. É o Oruam.
Tudo que não é deles é renegado, perseguido - e, em toda sua teatralidade para justificar suas violações, eles acabam com você. E você ainda sai como errado.
Por isso estou cansado desse estado de normalidade. Não tem nada de normal.
Pelo contrário: quando vejo tanta gente na rua ou no crack, se tornando parte viva de uma distopia - de um projeto - de poucos, que só sobrevive no fracasso de muitos, percebo que o “tudo bem” depende da perspectiva.
Aqui de baixo não tá.
Mas deve tá lá em cima.
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