Carnaval: a festa como construção e manutenção de uma ética-estética afrobrasileira
- Gustavo Mariano

- 16 de dez.
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Resumo
O carnaval é o maior espetáculo do planeta, mas nem sempre foi assim, tem sua origem na cultura afro-brasileira, surgindo do “povão”, por muitos marginalizados e desvalorizados por este nascimento. Desde sua origem, o carnaval surge como um espaço de resistência em um Estado operado pelo racismo, epistêmico, artístico e religioso, atuante com muita força nas instituições de poder. Visto isso, será proposto a investigação do conceito do povo Iorubá “ìwà l’ẹwà”, um aforisma essencial para entendermos a cosmopercepção desta cultura. Irei me dispor dos filósofos africanos Abiodun e Abimbola para o melhor entendimento deste complexo conceito. Em seguida, será exposto também uma análise interpretativa do samba “Monstro é aquele que não sabe amar - Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, enredo da G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis, que neste ano de 2018, foi consagrada campeã no último ano do carnavalesco Laíla pela escola. Sucederá, neste momento, a pensarmos o carnaval, de modo geral, um evento de produção e manutenção da ética da nossa sociedade, com o conceito de ìwà l'ẹwà em sua essência de formação.
Palavras chaves: Ìwà l'ẹwà, Racismo, Violência, Carnaval, Ética.
Introdução
Darei início ao compromisso de investigação sobre conceito da filosofia africana, do povo Iorubá, na tradição de ifá, ìwà l'ẹwà. No entanto, o desatrelar-se deste conceito se vê necessário para melhor entendimento. Invocando o filósofo africano do povo Iorubá, Abiodun, no artigo “O conceito de ìwà na estética Iorubá” publicado na revista Problemata - Revista Internacional de Filosofia (2022), será efetuada esta separação deste conceito. No primeiro momento iremos analisar o conceito “ìwà”, iremos notar como seu significado etimológico possui dois significados, o primeiro “ìwà” que significa “existência”, e o segundo “caráter”. Se tratando de ìwà, estamos tratando de ética, pois é através de ìwà que mora a possibilidade da existência do Ser e seu caráter próprio, confirmando o conhecimento de si mesmo e assim, possibilitando também a multiplicidade dos modos de ser, agir e pensar. No segundo momento, será analisado o conceito de “ẹwà” que por sua vez, significa “beleza”. E se tratando de ẹwà estamos tratando de estética. Estética está no âmbito dos sentidos sensoriais, afetando nossas percepções, e é também como entramos em contato com todos os seres. E no terceiro momento, iremos notar como essa conjunção conceitual, “ìwà l'ẹwà”, forma o que entendemos como ética-estética e como este conceito age como um dos pilares da cosmopercepção do povo Iorubá.
Nesta segunda parte, será utilizado a metodologia de análise interpretativa, do desfile, “Monstro é aquele que não sabe amar - Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, enredo da G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis do ano de 2018. Os objetos que serão analisados aqui são: samba enredo, carros alegóricos, tripé, alas (incluindo ato e comissão de frente). Então, não serão objetos aqui: mestre-sala e porta-bandeira, carro de som, a ala da bateria, exclusivamente. É através desta interpretação que é possível a extração da ética produzida pelo carnavalesco. Conforme descrito, irei apresentar a letra do samba, em seguida irei interpretar verso por verso, estrofe por estrofe, na tentativa de trazer consigo, o seu ìwà l'ẹwà expresso. Será decorrido assim para todos os objetos selecionando para o estudo, portanto, uma leitura interpretativa visual dos carros alegóricos, alas, e tripé, para a extração de seu ìwà l’ẹwà.
Com estudo baseado no livro “A "Obra de Arte Total” do Carnaval: Multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba”, do artista brasileiro Isaac Caetano Montes, por meio deste, proponho, como nosso objetivo, a pensar o carnaval, de modo geral, como uma obra de arte produtora de ética. O Carnaval, o maior espetáculo a céu aberto, produz, através dos seus magníficos, grandiosos e brilhantes desfiles, uma nova história (pois é reinventada a partir de outro ponto de vista), uma nova ética na tentativa de modificar os status-quo e modos operandi da nossa sociedade, trabalhando na educação e na formação do Ser, no agir e no pensar do indivíduo enquanto parte da sociedade. O contexto atual brasileiro segue muito enraizado e operando no racismo epistêmico e religioso, sendo uma forte opressora do carnaval em decorrência de sua gênese afro-brasileira. Deste modo, nomeiam o carnaval como “festa da carne”, onde só há promiscuidade, pois toda a vontade da carne é pecaminosa, de acordo com o cristianismo, negando toda a sua produção de diferentes saberes. É neste sentido que enquanto houverem corpos afetivos que correm ao samba para expressarem seus cantos de resistência e afirmarem sua vida, estarão produzindo seus saberes, sua ética contra o escárnio vigente do Estado. É necessário pensar através do conceito do povo Iorubá, ìwà l’ẹwà, que compõem o carnaval essencialmente desde sua criação, formando esta possibilidade criativa, de múltiplas éticas, belezas, seres, saberes, sobretudo, formas de existir. O Carnaval é um movimento histórico-cultural afrobrasileiro com alcance verdadeiramente mundial, em episódio de podcast, no canal SambaPod, episódio #106 no Spotify, Gabriel David, atual presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), informou que para o carnaval de 2026, contabilizou-se ingressos vendidos para 180 países distintos, totalizando 93% dos países do mundo, informação extraída diretamente pelo site da própria LIESA (não sendo possível contabilizar ingressos vendidos por cambistas).
1. Conceito de ìwà
O rico povo Iorubá possui em sua filosofia de ifá, o extenso conceito ìwà. A sua múltipla significação nos propõe um elevado rigor de investigação para uma possível tradução, sem pôr em risco sua relevância para a construção da cosmopercepção do povo Iorubá. Mais precisamente, ìwà é uma palavra que pode ser traduzida por “caráter”, ou seja, o que podemos compreender como um conjunto de leis morais subjetivas que moldam os modos operantes de uma sociedade. Contudo, há a palavra no infinitivo “wà” em sua tradução é “existir”, vem antes da dita caráter, sua substantivação é adicionado à vogal “i” no início formando a palavra “ìwà” se segue em português a palavra “existência”, observamos que a mesma palavra possui no mínimo dois significados, formando essa conjunção significativa, logo não é independente uma da outra, pelo contrário, são inteiramente interligadas de uma relação de derivação. Assim, caráter de existência (wá [existir] ìwà [existência] ìwà [caráter]). Seu significado mais abrangente, pode ser concebido por Ser, Viver, Existir. Conceito basilar para começarmos a compreender a filosofia de ifá e o constructo da cosmopercepção nagô (ABIODUN, 2022).
Em contato com a literatura de ifá, Ìwà (caráter) é representada como uma mulher muito bela, porém sem bom comportamento, com hábitos inadequados. É esposa de Orunmilá, ela garantia para ele sua prosperidade, honra e popularidade. Contudo, Orunmilá perdeu sua paciência com Ìwà devido seu mau comportamento e a expulsou de sua casa. Arrependido, Orunmilá andava buscando por Ìwà, pois percebeu o quanto havia perdido, estava disposto a sacrificar tudo o que lhe restava (dinheiro, filhos, casas, roupas e etc.). “Quando finalmente Orunmilá encontra Ìwà novamente, Ìwà não foi responsabilizada por nenhum ato cometido, Orunmilá foi culpado pela falta de paciência para com sua esposa” (ABIMBOLA, 1975, p 415-416).
Neste conto, a moralidade do senso é subvertido, pois se espera que Ìwà corrigisse seu mau comportamento e o ato de Orunmilá se justificasse, entretanto, não foi o caso. O intuito deste conto é nos dizer a origem do sentido de existência, no qual sem a existência nada seria possível, portanto Ìwà é boa por si mesma pois possibilita o Ser, a existência. Sua beleza está essencialmente ligada à sua existência, e não à sua moralidade.
1.2 Conceito de ẹwà
Dando seguimento, a palavra ẹwà pode ser aproximada com a do português “beleza”, no âmbito das aparências, implicando aos nossos sentidos. Assim como ìwà, pois tudo que há, é manifestação de ẹwà, cada Ser possui sua beleza, sua forma de aparecer ao mundo e aos outros seres. Entretanto, seu valor está fundamentado com o valor de caráter que o carrega, ou seja, algo só pode ser considerado belo na medida em que ìwà é bom, desta forma, ìwà potencializa ẹwá. Já nos é apresentado o aforismo ìwà l’ẹwá (ìwà constitui ẹwà).
1.3 Ìwà l’ẹwà
Podemos agora juntar novamente os conceitos, assim podemos pensar o ìwà l'ẹwà, ìwà dispõe a existência e o caráter a ẹwá, que por sua vez manifesta, seu ìwà-inú, o ìwà interior. Ìwà l'ẹwà é fundamental para compreendermos a cosmopercepção Iorubá, uma vez que podemos afirmar que ìwà é também o exercício filosófico para a invenção, reinvenção ou a manutenção da sociedade, portanto, ẹwà aparece aqui como essa forma de expressão material e imaterial de ìwà que está em seu interior. É neste sentido que o samba enredo é uma obra de arte que possibilita a análise de ìwà l'ẹwà.
É neste seguinte conto que podemos pensar ìwà l'ẹwà, pois a subjetividade do caráter dos seres começam a aparecer. Sùúrù (paciência) é pai de Íwá, por sua vez, é o primeiro filho de Olodumare (o Deus Todo-poderoso). Olodumare controla todas as numerosas e múltiplas criações com a ajuda de seu filho, Sùúrù. Todas as representações destas criações são ÍÌwà. Pessoas, Orixás, coisas, plantas, animais, cada uma possui seu ìwà de forma múltipla, plural e subjetiva, portanto suas características individuais. Há os Orixás (Oxalá, Exú, Iansã, Yemanjá, Obaluaê, Omulú, Oxum, Nanã, Oxumarê, Logun edé, Oxóssi, Ossain, Xangô, Ogum, Obá), divindades da natureza, seu ìwà são imperecíveis, em consequência, ẹwà também imperecível, não sendo possível limitar ou determinar por meio éticos da humanidade. Cada ser possuidor de seu ìwà é responsável por zelar, manter e até mesmo corrigi-lo. É necessário compreender através deste conto que cada ser criado é necessário e digno, a diferença faz parte e é necessário, logo agir contra a pluralidade dos seres é agir contra ìwà. Como um efeito de ação é consequência, atos contra ìwà, exterior ou interior a si próprio, implica contra ẹwá. Um ser com ìwà possuirá ẹwà também feio. Agir conforme ìwà se faz necessário, afirmar o ìwà coletivo, afirmando que o Ser é Existir do outro no mundo, é afirmar o seu Ser e Existir próprio no mundo.
2. Da análise do samba.
Darei início neste momento a análise do samba, será necessário expor aqui toda a letra da música para efetuar este exercício filosófico.

Oh, pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais Você que não soube cuidar Você que negou o amor Vem aprender na Beija-Flor Oh, oh, oh (...) Sou eu, espelho da lendária criatura Um monstro carente de amor e de ternura O alvo na mira do desprezo e da segregação Do pai que renegou a criação Refém da intolerância dessa gente Retalhos do meu próprio criador Julgado pela força da ambição Sigo carregando a minha cruz A procura de uma luz, a salvação Estenda a mão meu senhor Pois não entendo tua fé Se ofereces com amor Me alimento de axé Me chamas tanto de irmão E me abandonas ao léu Troca um pedaço de pão por um pedaço de céu Estenda a mão meu senhor Pois não entendo tua fé Se ofereces com amor Me alimento de axé Me chamas tanto de irmão E me abandonar ao léu Troca um pedaço de pão por um pedaço de céu Ganância veste terno e gravata Onde a esperança sucumbiu Vejo a liberdade aprisionada Teu livro eu não sei ler, Brasil! Mas o samba faz Essa dor dentro do peito ir embora Feito um arrastão de alegria e emoção, o pranto rola Meu canto é resistência No ecoar de um tambor Vem ver brilhar Mais um menino que você abandonou Oh, pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais Você que não soube cuidar Você que negou o amor Vem aprender na Beija-Flor Oh, pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais Você que não soube cuidar Você que negou o amor Vem aprender na Beija-Flor (MONSTRO É AQUELE QUE NÃO SABE AMAR. OS FILHOS DA PÁTRIA QUE OS PARIU. Intérprete: Neguinho da Beija-Flor. Compositor: Di Menor BF, Kirraizinho, Diego Oliveira, Diogo Rosa, Júlio Assis, Bakaninha Beija-Flor, JJ Santos, Manolo e Rafael Prates. Rio de Janeiro, 2017.)
O samba tem seu início com o refrão, já questionando o Estado e expondo o abandono do povo não branco, denunciando a dor dos filhos deste Estado que os rejeita, exibindo todo este descaso com o povo. Em seguida, na segunda estrofe, o Eu lírico se apresenta e se identifica (sou eu, espelho da lendária criatura) com o monstro, a “lendária criatura", trazendo a associação do monstro de Frankenstein, sua situação e estado de ser é apresentado, um ser a quem falta amor e ternura, um ser que é segregado da sociedade, em estado de rejeição e objeto de destilação de ódio, o filho renegado pelo próprio criador, contudo, a criatura continua buscando a salvação, uma vida digna. Em comparação, podemos afirmar que a criatura de aparência feia se torna agradável pois seu ìwà é agradável, pois a criatura busca se entender no mundo, busca amor, buscar viver em coletivo, porém não entende o motivo pelo qual sofre tanto, é perseguido por todos e está sempre fugindo das relações interpessoais. Já o criador, Victor Frankenstein, um homem de aparência formoso, esbelto, tenta brincar de Deus, descobrindo o segredo da criação, esta maldição recai sobre ele e efetua este milagre, montou a criatura por retalhos, e julgou-a como um ser monstruoso, sem dar chances a uma mísera oportunidade. Em divergência do monstro, Victor se reclusa da sociedade e tenta se juntar a solidão, comparativamente, Frankenstein possui seu ìwà l’ẹwà interno desagradável, distorcido de modo que seu ẹwá seja desagradável e distorcido, visto que ele se torna uma pessoa desprezível, sua aparência física também é severamente afetada de modo negativo, isto é íwá l'ẹwá.
A terceira estrofe, curta, porém complexa, expõe a súplica da salvação da criatura para o criador, “estenda a mão meu senhor”, e toda a contradição e hipocrisia deste mesmo criador, sentido este que está contida no verso seguinte, “pois não entendo tua fé”. Nesta estrofe, o “senhor” referenciado pode ser interpretado por Deus (divindade cristã) não só, pode ser a figura de poder social, o senhorio que promove a desigualdade, a injustiça, mas também, uma figura de autoridade moral, como “homem de fé”, aquele que também perpetua a marginalização dos oprimidos. Nos versos seguintes, podemos observar melhor esta hipocrisia desenfreada da fé, onde diz “me chamas tanto de irmão / E me abandonas ao léu”, pois é de modo simultâneo que vos chamam de irmãos, determinam nosso destino ao “inferno”. O simbolismo da hóstia referenciada nessa estrofe, representa a promessa da salvação na pós-vida, a promessa da vida eterna, uma vida que não é aqui, justificando a miséria da sociedade, ao invés de alimentar famintos, agora o sujeito recebe um pedaço da terra prometida (pela ironia do destino, não é para todos, pois nem todos têm a permissão de receber a hóstia. Uma salvação somente para alguns). Fazendo novamente a comparação com íwá l'ẹwá, o dito cujo senhor, ignora sistematicamente através da fé e da ética e moral, os “outros”, aqueles que não fazem parte de seu pacto social, e portanto individualiza todo e qualquer tipo de “privilégio”, obtendo tudo para si mesmo, ferindo a existência do outro. O outro então é visto como o monstro, o tratamento não pode ser outro senão a violência e o reacionarismo, com políticas de genocídio. Os seguintes versos “se ofereces com amor / me alimento de axé” nos diz sobre como o amor pode nos potencializar em forma de axé, esta força vital que nos move, que fortalece nosso corpo, alma e mente, e portanto, afirma a nossa existência e Ser, assim praticamos ìwà l’ẹwà.
Depois de tantas mazelas, esta quarta estrofe aparece como um arrebatamento, para os ouvintes apaixonados, um banho de emoções, capaz de purificar a alma. Tem seu início com este verso “Ganância veste terno e gravata / Onde a esperança sucumbiu / vejo a liberdade aprisionada / teu livro eu não sei ler, Brasil!” deixa claro, neste momento, aqueles que são a verdadeira causa de todas as maldições e o verdadeiro monstro que assola o país, a ganância ganha corpo, ela é aquele que está engravatado e que circula dentro dos três poderes, e econômica, perpetuando sua permanência nesta local de opressor, enquanto delimita e caça o direito de ir e vir em todas as categorias institucionais, operando neste campo de força (desigualdade social, racismo, censura e exclusão) diminuindo as potências dos excluídos, aprisionando a liberdade. É por este decreto que não há possibilidade de sobrevivência de qualquer esperança, pois foi por meio da corrupção que ela foi destruída. O verso a seguir é um dos mais essenciais que há neste samba “Teu livro eu não sei ler, Brasil”, Brasil este que é um projeto colonial que deu certo, ou seja, um projeto de desencanto, monorracionalista, hegemônico e monocultural, que pretendeu excluir todas as formas de saberes não eurocêntricos. De acordo com o historiador Luiz Antônio Simas, em entrevista para o canal de podcast Chega Junto, afirma que o Brasil foi projetado para excluir, incluindo as instituições de ensino, produzindo esta defasagem na educação, consequentemente a própria população não saber ler o livro de sua nação, não saber ler a própria história, permanecendo em estado de ignorância como na famosa alegoria da caverna de Platão. Mas é através das encruzilhadas que criamos as fissuras nessa lógica colonial, as escolas de samba faz jus à categoria de escola, pois aparece como esse espaço de ensino, resistência, construção de protagonismo da própria história, construtora de uma pedagogia popular, sendo a maior invenção da cultura brasileira, assim operando nesta fissura para fazer emergir outras possibilidades de epistemes, éticas, Seres (RUFINO, 2019). A promessa que foi dita no início deste parágrafo será cumprida neste momento, nos seguintes versos (pré-refrão) “Mas o samba faz / Essa dor dentro do peito ir embora / Feito um arrastão de alegria e emoção, o pranto rola / Meu canto é resistência / No ecoar de um tambor / Vem ver brilhar / Mais um menino que você abandonou”, a parte mais linda deste nobre samba. Os três primeiros versos traz toda essa emoção, esse êxtase, este grito encorajador para a busca da liberdade, e desce o choro representando toda essa angústia guardada dentro do coração, aliviando toda essa mágoa e rancor, recuperando a esperança de um dia melhor, o samba nasce para curar essas dores, transforma o sofrimento em música, festa e educação, como no quarto verso, o canto se torna resistência daqueles que persistem em aparecer, o povo subalternizado. O ecoar do tambor traz este encanto, a ancestralidade africana, potencializando este canto de resistência. Agora, o Eu lírico convida o Estado a observar essa pluralidade saindo dessa fissura que foi arreganhada por Exú, o menino que outrora fora excluído e transformado em monstro, agora, ascende e o monstro se torna o próprio criador, subvertendo a lógica colonial. Fazendo o exercício de comparação com íwá l'ẹwá, aparece aqui como esta subversão deste sistema de exclusão e genocídio justificando a afirmação dos múltiplos seres, saberes, diversidade ética e política, respeitando e valorizando as diferenças coletivas.
Concluímos aqui este exercício da análise do samba, e extraímos desta análise, seu íwá l'ẹwá. Muito nos diz contra as injustiças na sociedade, o racismo e o classismo em específico (discriminação com a classe social, sendo esta, a exclusão das pessoas de baixa renda, educação e ocupação), no qual denunciam tratamentos de exclusão, de genocídio de diferentes qualidades e etc., e assume a importância das escolas de samba, na produção dos sambas enredos, como a escola se posiciona perante a sociedade e assume este papel de invenção ou a manutenção da mesma, de acordo com seu íwá l’ẹwá, criando novas éticas. São essas ditas a valorização e a afirmação da vida, da importância de viver em coletivo, de autoconhecimento e conhecimento dos outros ao seu redor, visando sempre o bem viver.
3. Da análise do desfile
A partir de agora, iremos analisar outros componentes deste desfile da G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis, iremos analisar os carros alegóricos, as alas e os destaques, será visto os seres afetados pela segregação. A maneira de como ocorrerá esta análise será feita em partes, por categoria, irei iniciar obedecendo a regra, com a comissão de frente, em seguida dos carros alegóricos, das alas, e por fim, o tripé. Irei fazer as descrições da aparência e de seus elementos de cada componente aqui citado, feito as descrições, irei apontar seus significados e a tradução de seu ìwà l'ẹwà, seguindo assim para todos os componentes do desfiles que foi previamente determinados.
3.1 Da comissão de frente.
A comissão de frente, nomeado “Frankenstein ou o prometeu moderno”, vem trazendo, como no início do livro, o Dr. Victor Frankenstein sendo puxado por cachorros (no qual as quatorze pessoas são apoiadas em uma armação com rodas para se locomoverem e executar a coreografia na posição de quadrúpede, simulando um verdadeiro cachorro) em seu trenó. Todos os três elementos (cachorros, trenó e o Frankenstein) estão severamente degradados e acabados fisicamente, pelo ambiente, e causadas pelos acontecimentos durante o percurso, pois o doutor estava em perseguição do monstro jurado de morte (assim, o livro inicia partindo do final do conto de horror). O trenó se modifica, suspendendo seu meio possuindo duas cordas com argolas para a apresentação artística do Frankenstein, com manobras de ginástica artística na argola expressando toda a sua dor e feridas e persistindo nesta perseguição até o fim. O intuito desta comissão de frente é apresentar ao público a introdução de conto já mostrando sua problemática que é central durante todo o enredo e desfile. Podemos absorver o ìwà l’ẹwà desta apresentação sendo como a autodestruição e o isolamento consequente de todas as escolhas e ações que tomamos durante a nossa vida, pois é isso que ocorre com o nosso protagonista egoísta, sua vida encontra o fim na vasta solidão da geleira, em busca de “vingança” pois o monstro tirou a vida de todos os seu amados (seus familiares e amigo).
3.2 Dos carros alegóricos
Partindo agora para os carros alegóricos, o primeiro carro aparece em seguida do primeiro tripé, esta alegoria é o navio que encontra o Victor à beira da morte, adoecido (representado por Edson Celulari) que o resgata, o capitão Walton (representado por Anderson Müller) deste navio se torna amigo de Victor, que por sua vez conta toda a sua história de vida até chegar naquele momento de sua lástima. O navio possui um Beija-Flor em sua frente, todo em coloração amarronzada. A tripulação se desloca, puxando cordas do navio fazendo erguer a cabine do capitão, revelando para os espectadores uma transformação de cenário, é exposto nesta transformação, o laboratório do Dr. Victor Frankenstein onde criara o monstro que acarretará seu aniquilamento. Deste primeiro carro, o ìwà l'ẹwà nos mostra a ambição lançada do protagonista dividindo o mesmo ambiente que encontra seu fim, sua ganância de poder e ânsia de tornar-se Deus, o leva ao seu declínio. Fazendo o espectador questionar seus modos de ser, agir e pensar.
O segundo carro, “A ambição”, à sua frente possui um rato gigante carregando em suas costas o prédio da Petrobrás (localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro) , e ao lado, o Congresso Nacional. As paredes do prédio são móveis, que revelam apartamentos, representando a realidade das favelas, cada apartamento está acontecendo algo diferente e em ambiente diferente. Há o apartamento de traficantes armados até os dentes, do baile funk, do lazer no qual tem uma mulher tomando banho de sol, do bar (bar do Zé), loja de roupas íntimas, e acima do prédio, representando terraço de uma casa, se encontra um grupo de dançarinos fazendo uma performance de fundo, loja de artigo religioso e etc. Atrás do prédio, uma varanda com uma faixa pendurada escrita “Empreiteiras Associadas”, mencionando as empreiteiras (o escândalo da famosa Odebretch) que participaram da operação Lava Jato. Ao redor do carro, políticos com a roupa (vestindo terno e gravata) abarrotadas de dinheiro. No subsolo do prédio, o qual podemos ver o apartamento do presídio, com os presos dando ordem e golpes telefônicos de dentro da cadeia através de celulares (denunciando o falho sistema penitenciário, permitindo-lhes tais poderes). Este carro nos mostra uma das causas da formação geopolítica das favelas, mostra como o Estado produz a pobreza, e mantém as em pessoas em estado de vulnerabilidade socioeconômicas. Seu ìwà l'ẹwà está neste questionamento na ganância desenfreada, individualista que diminui as formas de existência dos outros que acabam ficando a merecer do descaso.

O terceiro carro, “O abandono”, este carro trabalhado totalmente na estética de “lixão” com bastante poluição visual, representa toda a sociedade brasileira. Em sua lateral, possui caixões abertos mostrando estudantes mortos, policial baleado em confronto e sua mãe ao seu lado chorando, possui também carro de turistas circulando em volta do carro alegórico. À frente, crianças em terreno baldio no meio dos lixos, brincando e comendo. Acima do carro possui uma escola, lá ocorre uma encenação da violência nas escolas, com um aluno assassinando outros alunos. Atrás do carro, a criatura gigante coberta de lixo, personifica toda essa gente abandonada. Aqui nos mostra os resultados deste abandono, e quem são os ditos filhos abandonados da pátria que os pariu, retratando toda a desigualdade socioeconômica. O ìwà l'ẹwà nos diz sobre esta subversão do monstro e o ressignifica, ao nos perguntar quem é o verdadeiro monstro, a criatura feia ou o criador que abandona a criatura. Aqui, o monstro é o criador. Questiona também a falta de investimento na educação, na saúde pública e no cuidado com o meio ambiente.


Para o quarto carro, “A intolerância”, representa o estádio do Maracanã, com o campo em seu teto e guardas guerreiros nas laterais. No entorno do campo, há hastes com placas escritas “racismo”, “genocídio”, “feminicídio”, “discriminação”, “preconceito”, “rancor”, “violência”, essas hastes fazem um movimento de se curvar para fora e gira para dentro do campo, as laterais das placas ficam de forma ordenada uma encima da outra formando a cabeça do monstro ao centro do campo. Em destaque, a artista Pabllo Vittar, intitulada “A luta contra a intolerância de gênero”, como o nome já sugere, aparece como resistência da comunidade LGBTQIA+, e a Jojo Toddynho, como “Representação contra a intolerância racial e xenofobia”, usando um vestido com a estética do período helênico em branco e dourado, referenciando Grécia Antiga. Aqui, mais uma vez a violência recebe holofote, pessoas que se dizem “torcedores” mas simultaneamente pregam a violência nas ruas e dentro dos estádios são frutos deste descuido com educação, com o espírito esportivo. Seu ìwà l'ẹwà nos diz a respeito do público LGBTQIA+ dentro dos estádios, frequentemente são alvos dessa violência desmedida, denunciando a homofobia dentro dos esportes que visa a conservação da heteronormatividade, e aqui mantém o argumento ao respeito da diversidade e da pluralidade de modos de ser, afirmando quaisquer seres éticos.

O quinto carro, encerrando este capítulo, a “Ensinando a amar”, a destaque Cláudia Raia, está à frente do carro “puxando”, nomeada “A grande anfitriã da celebração da paz” simbolizando que a paz vem primeiro. O carro é grande em todas as três dimensões, predominantemente das cores branco e azul. Na frente do carro possui uma faixa escrita um verso de seu samba “Mas o samba faz / Essa dor dentro do peito ir embora”. A velha-guarda em suas laterais acompanhado com vários beija-flor e bem lá em cima, uma mãe sereia amamentando seu filho (temos uma representação de Iemanjá, valorizando seu amor materno), ambos olhando para o horizonte. Atrás do carro, uma imagem da pietá (piedade) tripla, são eles: o monstro segurando Frankenstein morto em seus braços (a cena final do livro de Mary Shelley), a mãe segurando o policial e uma referenciando o artista Cândido Portinari, com a saúde e a fome. Este último carro é a resposta de todos os questionamentos que foram levantados, um encerramento positivo e otimista de toda a negativamente que foi exposta. Seu ìwà l'ẹwà para amar os como a mãe de todos, Iemanjá, ama e cuida de seus filhos, na história, a figura paterna o abandona, agora, a figura materna acolhe, dispõe de si a possibilidade de viver (por isso, aparece amamentando), a Beija-Flor de Nilópolis está afirmando a ancestralidade africana valorizando o matriarcado.


3.3 Do tripé.

O tripé, é a primeira grande estrutura do desfile, vem logo atrás do casal mestre-sala e porta-bandeira (Claudinho e Selminha Sorriso, neste ano de publicação, estão completando 33 anos de parceria, formando o casal mais antigo da Sapucaí), com o nome de “A geleira”, está ligado com a comissão de frente, o qual mostra ambiente em que Victor se encontra na perseguição. Na sua frente, com o livro aberto representando o próprio conto, está em destaque a autora da obra, Mary Shelley (representada pela Fabíola David). Em suas costas, o Mont Blanc, a montanha de gelo com a coloração branca e iluminação azul, seu meio possui discos giratórios formando o rosto do monstro. Seu ìwà l'ẹwà traz o problema da solidão, mostrando o contraste entre um que tinha tudo e o perdeu e o outro que sempre quis alguém ao seu lado mas nunca teve, sempre permanecendo na solidão. O rosto do monstro na montanha podemos interpretar com a imortalidade da criatura, enquanto o criador sucumbe a existência e morre em seus braços.
3.4 Das Alas
Nesta categoria será feita a análise das Alas, assim como foi feito dos carros alegóricos e do tripé. Componente muito importante para amarrar todo este enredo, expõe também todos os afetados pelo projeto de Estado colonialista. Iremos perceber que as alas serão divididas em blocos de acordo com os carros, cada bloco dará ênfase em algum tema específico. Este primeiro bloco, vem acompanhando o navio de Frankenstein (o primeiro carro), será o bloco das mazelas, da corrupção, ganância, destruição, poluição, e será exposto o culpado por essas tragédias, apresentando o verdadeiro monstro, o vilão da história. Com o nome de “Piratas - Pilhagem e espólio”, a primeira ala apresenta os piratas, com sua roupa listrada de azul e branco na vertical, com chapéu típico de Capitão dos Piratas adornado com a face de crânio humano no centro, representando a corrupção e o roubo desde o início da invasão em 1500.
É com a segunda ala, “Imposto dos Infernos”, que o desfile conta sobre o ciclo do ouro através da exploração da mineração até a alta carga tributária dos dias atuais. Esta ala vem com o Satanás vermelho, bigode, par de chifres com uma coroa imperial em sua cabeça (similar com a coroa da realeza brasileira), sorrindo enquanto segura um balão com pepitas de ouro bruto. Uma imagem representativa da monarquia diabólica do Brasil.
A terceira ala, vem a tradicional ala das baianas, apresentada como “Santinhas o pau oco”, representando um acontecimento histórico, o qual, as imagens das Santas da igreja católica são ocas em seu interior com para ser depositada pedras preciosas com intuito de sonegar imposto em seu transporte e etc. Sua fantasia predominantemente em dourado, com detalhes em amarelos, em sua cabeça, auréola, traz a santificação da imagem.
A quarta ala traz “A corte da mamata - Quadrilha no poder”, a fantasia aparenta com ratos e abutres nas cabeças, roupa em azul, com detalhes em dourado e prateado, roupa de alta classe, de nível alto em prestígio. Associando a sujeira e o aproveitamento, portanto, se aproveitam e fortalecem seus interesses na permanência nas posições de privilégio e poder para continuar a perpetuação do roubo.
A próxima ala, “O ouro negro da corrupção um banho de Ganância exacerbada”, traz em sua fantasia, um barril de petróleo derramado, o barril está acima da cabeça do desfilante enquanto o petróleo derramado estáda cabeça ao pés, o pintando inteiramente de preto. Trazendo o questionamento aos efeitos da poluição da natureza, causando mudanças climáticas, extermínio da vida marítima, a própria poluição do mar com a finalidade do enriquecimento desesperado e inconsequente.
E por fim, a ala “Roedores dos cofres públicos”, sua fantasia é de terno azul, gravata verde e amarela, novamente trazendo ratos à cabeça, e com maletas e bolsos lotados de dinheiro, a ponto de pularem para fora (dinheiro este que foi subtraído dos cofres públicos). Junto, está acontecendo um banquete, banquete da Ganância, episódio do ex-governador Sérgio Cabral fotografado com amigos em Paris com guardanapos em suas cabeças. Temos então, representação da imagem que a população tem em seu imaginário dos nossos políticos.
Outro símbolo aparece na seguinte ala, “Lobo em Pele de cordeiro”, a sua fantasia é bastante parecida com a ala dos roedores dos cofres, porém, os desfilantes recebem um rosto de Lobo e em suas mãos, estão segurando máscara de cordeiro simbolizando o falso caráter e utilizando aparência enganadora.
No fim deste primeiro bloco, podemos compreender de seu ìwà l'ẹwà, é como a escola de samba orquestrou com maestria e escancarou que desde o início da história do Brasil, a corrupção, a ganância dos governantes, a exploração e a apropriação da natureza e das pessoas (sistema escravocrata), a roupagem religiosa para camuflar toda a safadeza que o acompanha se fez presente, se utilizaram de todos os subterfúgios para esconder seus egoísmos visando sempre o próprio benefício. Brasil que foi este projeto colonial, o esforço agora é de pensar e criar um Brasil decolonial, para reescrever sua história, começando por hoje, pois o futuro é ancestral.
Partindo agora para o próximo bloco, um bloco focado no período contemporâneo com o movimento do povo brasileiro e com as consequências da política da exclusão, a ala “Os refugiados da seca À procura da terra prometida”, mostra a migração do povo nordestino indo para as metrópoles do sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) em busca da melhor qualidade de vida. A fantasia representa a seca do nordeste, com um crânio bovino em seu peito, o chapéu típico de cangaceiro enfeitado com cactos e galhos de árvores secas.
Para a próxima ala, “No circo Brasil, o palhaço é o povo” a fantasia é um palhaço das cores verde, amarelo e azul, carregando em suas costas, um saco cheio de caixas representando imposto (PIS, FGTS, IPTU, IPVA, ICMS), os palhaços são inclinados para frente como se fossem corcundas causada pelo peso deste saco. O povo brasileiro é taxado de palhaço pois os governantes zombam e riem do próprio povo, despejando imposto para recolher mais verba e pôr em seus bolsos.
Na próxima ala, estão “Eu não entendo tua fé, a pobreza dos pedintes e os tempos luxuosos”, com roupas luxuosas em azul e dourado, contudo são degradadas e sujas, com auréola em suas costas de ouro reluzente. Esta ala retrata os pedintes que ficam nos pés das igrejas luxuosas, mostrando a dicotomia e a desigualdade social que há no Brasil.
Casando com a “A resistência do povo das ruas” a ala das passistas vem com vestido em vermelho e preto com detalhes dourados, referenciando a pombogira (Entidades mais comumente cultuadas em terreiros de umbanda). Entidades que nos ensinam sobre resistência, subversão da regra monocultural vigente, traz o empoderamento e fortalece o companheirismo, e nos ensinam a amar, sobretudo amar a si mesmo (daqueles que não sabem o poder do amor próprio pode proporcionar em suas vidas), fortalecendo e encorajando o filho de Axé.
“A face da saúde é a foice da morte”, ala que retrata o descaso com a saúde pública, a vida jogada ao léu. Vem com um roupão preto, carregando um mastro com a bandeira com símbolo de cruz vermelha (símbolo da saúde) em suas mãos, com asas de Tom roxo escuro quase preto, fazendo jus à morte. Pois, é recorrente acontecimentos de pessoas deixando a vida esperando na fila de atendimento dos hospitais, infelizmente, a precarização do sistema único de saúde causa fatalidades.
Agora, tratando da violência das comunidades, a ala “A Violência generalizada A procura da salvação, um pedido de paz”, desfilantes com roupa camuflada do exército brasileiro, acompanhado com um mural de casas típicas de favela nas costas, vem mostrando as operações que ocorrem em nome da “paz”, da “limpeza”, na desculpa de estar “acabando com a criminalidade”, utilizando-se das forças armadas, do exército e das forças especiais. O resultado? Policiais mortos, inocentes mortos, mães chorando. Resposta ineficaz contra o combate à criminalidade.

Retornando com a pauta da poluição, a ala “Pintou sujeira! Poluição, a materialização do abandono”, com a fantasia predominantemente preta por conta do petróleo derramado nas profundezas do mar, na cabeça, peixe e algas marinhas, expondo a poluição no mar devido a exploração de petróleo.
O segundo ato vem mostrando todo esse resultado do projeto colonial brasileiro, com o nome “Estenda a mão meu senhor! Pedintes, vítimas do abandono e do descaso”, com roupa de retalhos e chapéu de palha, com bastante trapo pendurado, simbolizando lixo. Ala que podemos ver moradores de ruas, catadores de material de reciclagem e ferro-velho, todo esse povo que compõem existências mínimas ou “terceiro excluído”, esses são os rostos dos abandonados que a pátria os pariu. Finalizamos este bloco, de certo, o que podemos absorver deste ìwà l'ẹwà, é o da denúncia do resultado desta produção de uma sociedade desigual, pautada na falsa crença da meritocracia, tratando tais fatalidades como “efeito colateral” causado pela solução do problema, e dá produção de homem-máquina, ou seja, seres não pensantes, mas operantes e obedientes. Devemos, no entanto, aprender a resistir, como as pombogiras, às opressões deste Estado que visa a monocultura.
Neste terceiro bloco, iremos percorrer sobre as diversas formas de intolerância, a primeira é a “Negativa é a intolerância, positivo é iluminar a mente” se tratando da intolerância religiosa. Os desfilantes estão vestidos de túnica de padre em branco e amarelo com chapéus representando a posição hierárquica da igreja católica, mais atrás, representando o negativo e o positivo, com roupas metade em branco e metade em preto, com o símbolo de negativo do lado preto, e o positivo do lado branco da roupa, uma lâmpada em suas cabeças. A iluminação da mente aqui tem um significado positivo, diferente do movimento filosófico europeu que foi o iluminismo, aqui o iluminar é se fazer entender que o preconceito e a discriminação é negativa, é estar no escuro, pois a outra religião não é inimigo, não deve ser combatida, muito pelo contrário, positivo é respeitar o espaço do outro que é diferente de você.
Uma outra forma de racismo vigente, é abordada na ala “Bonecas beija-Flor”, consiste em crianças negras brincando com bonecas brancas e loiras. As bonecas estão com vestido de princesa rosa, com cabelo ondulado loiro dourado, e as crianças estão com o cabelo bagunçado utilizando trapos em suas roupas. Podemos observar a falta de identificação da criança para a boneca, pois a indústria não se preocupa com outras etnias diferentes da vigente branca européia. A falta da identificação acontece quando as características físicas da criança não correspondem com as características da boneca, como a textura do cabelo, cor da pele, formato do olho, do nariz e boca, e etc., características essas que um conjunto é considerado belo e o outro não-belo. Podemos pensar em “crianças pretas, bonecas brancas”, em alusão ao livro de Frantz Fanon “Peles negras, máscaras brancas”?
Seguindo, temos a ala “Intolerância racial Discriminação é crime”, para esta ala, a Beija-Flor trouxe para as fantasias, roupas típicas africanas em azul e laranja, trabalhando o maximalismo, com turbante amarrado no cabelo black power. A crítica aqui está bastante nítida, todo um continente sofre pela discriminação baseado em conceito inventado, a raça, para superestimar uma cultura e subestimar outras, produzindo apagamento, exclusão, utilizando todos os tipos de saberes para produzir ferramentas na tentativa de justificar atos hediondos, terrorismo, genocídio, invasões, roubos e etc. (racismo científico, religioso, territorial, linguístico).
Esta ala, retrata uma realidade muito comum no Brasil, a ala “Intolerância no esporte Falta de espírito desportivo é estupidez” vem trazendo tanques-de-guerra misturado com um cavalo, de cor prata metálico, com lanças em suas mãos com a bandeira do time desportivos, todos times nacionais, e o escudo à frente de tanque. Essa fantasia mostra o “espírito esportivo” dos torcedores, o espírito de guerra e combate, o de cada jogo se torna um dia guerra, torcida X torcida. As ruas e até dentro dos transportes públicos, se transformam em arenas de combates, o vencedor é quem perde menos torcedor ou quem apanha menos. Casos de morte durante briga de torcida é rotineiro no pré-jogo, durante e pós-jogo. O Maracanã e o Coliseu nunca foram tão parecidos.
Este bloco de alas jogando a lupa para as intolerâncias, nos mostrou as violências recorrentes por diferentes motivos e gêneros, sejam elas: classe, “raça”, gênero e sexo e até mesmo nos esportes. As intolerâncias agem a partir da diferença, o outro passa a ser inimigo, a multiplicidade aqui é dicotômica, a lei é dos mais fortes, portanto, a violência é a forma de linguagem deste modus operandi. De acordo com o ìwà l'ẹwà que estamos extraindo a partir das interpretações aqui, há outro destino, aprendemos a torcer como torcedores de Escola de samba, onde a rivalidade ocorre de forma saudável, a diferença não sendo mais dicotômica, ganha o melhor desfile com o melhor samba, a união prevalece na torcida, torcedor da Mangueira canta o samba da Império Serrano, torcedor da Imperatriz Leopoldina se canta o samba da Unidos da Viradouro, e etc., pois, é através do samba, onde encontramos forças para combater as intolerâncias. Todos em uma só voz.
O último bloco, o bloco das exaltações da diversidade cultural e étnica. Através das alas, agora, nos ensinando a amar, a construir uma vida ética, respeitosa e bela em sua máxima potência. Assim como Ogum, o senhor dos caminhos, a ala que vem abrindo os caminhos desse bloco é “Os negros e a nossa pequena África”, com a fantasia mais detalhada, com palha da costa, búzios ao redor, uma roupa luxuosa nas cores amarelo, dourado, terracota, e vermelho, bem vibrante. Esbanjando fineza, enaltecendo a cultura africana que fundamenta todo o nosso Ser, a cosmopercepção da nossa sociedade. Esta ala faz referência à uma região do centro do Rio de Janeiro, é uma zona portuária, onde abarcava navios negreiros trazendo os escravizados, são os bairros da Gamboa, Santo Cristo, Cais do Valongo. Hoje, a região é um centro cultural de preservação da herança africana. O Instituto Pretos Novos vem fazendo trabalho de excursão e tem, em seu museu, artefatos históricos encontrados nesta região. O samba, recente, da G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira do ano de 2025, o samba “À Flor da Terra - No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões”, conta com maestria sobre o surgimento da região da pequena África e toda a sua herança cultural. “Sou a voz do gueto, dona das multidões / Matriarca das paixões, Mangueira / O povo banto que floresce nas vielas / Orgulho de ser favela”.
A ala das baianinhas traz o tema “A paz em luto”, com a parte superior do vestido em branco e a inferior em preto com rosas negras, com um grande pombo branco em suas costas. A rosas negras é o símbolo da luta feminina negra contra a escravização, esse símbolo pode ser encontrado na região da pequena África. A paz, um estado de sentimento que foi violado pelas mazelas ditas anteriormente, mas devemos sempre se opor à tais fatalidades como as rosas negras fizeram.
Seguindo, a ala “Celebrando a paz”, bem parecida com a anterior, porém completamente branca, pois as coisas ruins foram superadas. Consiste na esperança de dias melhores, na festa que é a vida, sobretudo a comemoração de estar vivo, pois experienciar a vida é o que há de melhor, é essencial. Afinal, o que seria de nós antes da vida? Como nos cultos afro-brasileiros, devemos celebrar para movimentar o Axé, o compartilhamento de energias ocorre na celebração.
E por fim, a última ala, “O bloco dos sujos Um arrastão de alegria” junto com o ato “Passeata popular”. Esta ala não há padrão de fantasia pois retrata a diversidade dos Seres, há moradores de rua, médico, prostituta, nordestino, folião do tradicional Bloco das Piranhas, todos felizes, de forma unida. Todos os excluídos, os apagados, agora juntos formando esse arrastão em busca do bem viver. O ato que o acompanha é composto por todas as pessoas de comunidades que foram afetadas pela violência, há representações parecidas da ala anterior, como as prostitutas, mas há policiais, crianças de lixão, bandidos e traficantes, Yalorixá e etc. O ato da resistência assim é formado.
Este último bloco traz consigo a ética proposta, uma substituição de paradigma, não sendo mais o ocidental (patriarcal, branco, cristão, heteronormativo e cis) mas afrocentrada, mais precisamente no povo banto. Seu ìwà l’ẹwà é a afirmação do outro através do amor, da confraternização, da celebração da vida, do movimento do axé, do amor materno, da misericórdia (misericórdia, do hebraico: rahamin, significa “sentir com o útero”), das múltiplas formas de Ser e Existir. O afrocentramento é sobretudo, valorizar os saberes ancestrais (em contraponto à noção positivista ocidental), o bem viver sem ferir a existência do outro em detrimento da sua, o encantamento da vida através da fala pois a boca tem poder. A palavra produzida pela boca tem a capacidade de “terreirificar”, tonar terreiro, o espaço/tempo que os cercam, transbordando o espaço físico, operando também no metafísico. O corpo “terreireficado”, ou seja os corpos “feitos no santo”, são como o chão onde o sagrado faz morada, é através da fala e soar dos atabaques que contemplamos a espiritualidade, os ancestrais, os Orixás e Nkisis (RUFINO, 2019).

Este incrível samba da G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis me afetou de uma forma visceral, fazendo com que seja necessário o olhar para si e repensar minha ética, pois é isso que a filosofia africana exige de nós mesmo, o cuidado com o ìwà-inù, com efeito, transformar meu ìwà l’ẹwà. Este samba é um dado particular escolhido pela proposta ética alinhada com a cultura africana, valorizando a ancestralidade, o amor matriarca, a denúncia do abandono do povo, a afirmação da existência coletiva, a luta contra as intolerâncias e as discriminações, a afirmação das múltiplas formas de Ser, agir e pensar. Contudo, o carnaval é o maior show do mundo, produzindo diversas formas de pensar desde sua gênese, há outros vários sambas enredos de várias outras escolas de samba, desse modo, é possível criar esta reflexão filosófica a partir do conceito ìwà l’ẹwà e concluir ética-estética do Carnaval de um modo geral. Pois, como o artista Isaac Caetano nos afirma.
Lembremos que, segundo a mitologia, nos primórdios, mito, música e linguagem surgiram ao mesmo tempo e desta simultaneidade foi constituída a forma da tragédia grega. Mito, música e palavra foram e são feitas, desse modo, da mesma matéria (MONIZ, 2007). Portanto, é como se o conjunto de linguagem dos desfiles atuais remetesse a uma mesma substância mítica. [...] Na cosmologia das religiões afro-brasileiras (que geram o ritmo do samba) está presente a perspectiva integralizante dos mitos que narram a indissociabilidade das forças da natureza entre si na busca do equilíbrio. Romper esse liame representa erro e gera consequência – similaridades entre os rituais dos terreiros pré-teatrais da Grécia Antiga e os terreiros do samba. (CAETANO, 2014, p.53)
Como Caetano coloca a constituição originária da tragédia grega, não obstante, vê-se bastante similar com a cultura do povo Iorubá, no que consiste a visualização dos Oríkis e itãs que muitas das vezes são cantados e que podem ser usados para nos educar, são essenciais na formação do Ser ético, ao mesmo tempo, possui poder de evocar um Orixá determinado. Carnaval é fruto da cultura afro-brasileira, nasce desse povo da Iorubalândia, que de sua maneira, produz ética manifestando sua estética através das artes e das múltiplas formas de linguagens, e é nessa possibilidade criativa que o Carnaval, o maior espetáculo do planeta, inventa e reinventa formas de ìwà l'ẹwà. Os desfiles são, sobretudo, obras de arte total, educacional, político, ético-estético, e mítico.
Como podemos observar na obra do historiador Luiz Antônio Simas, no livro “O corpo encantado das ruas”, o capítulo chamado “Qual é o povo que não bate o seu tambor?”, será visualizado um pouco desta ligação entre o carnaval e o povo de terreiro.
Isso aconteceu porque escolas de samba e terreiros são, em larga medida, extensões de uma mesma coisa: instituições associativas de invenção, construção, dinamização e manutenção de identidades comunitárias, redefinidas no Brasil a partir da fragmentação que a diáspora negreira impôs. O tambor é talvez a ponte mais sólida entre o terreiro e a avenida. Há no idioma dos tambores um potencial educativo vigoroso de elucidação dos mundos e interpretação da vida. É sempre tempo de reconhecer e estudar as possibilidades didáticas que os atabaques tiveram na formação das crianças de terreiro e escolas de samba. As agremiações e suas baterias precisam ter consciência da dimensão civilizatória que as escolas de samba tiveram um dia. Que voltem aqui e reassumam a condição cotidiana de educar para a liberdade. Os tambores formaram mais gente do que nossos olhares e ouvidos, acostumados apenas aos saberes normativos que se cristalizam nas pedagogias oficiais, imaginam. Quem manda ignorar a rua? (SIMAS, 2024, p.32)
Simas traz um elemento muito crucial ou fundamental ou essencial, dentre vários outros, que é o atabaque, um instrumento musical utilizado nos sambas e também nas ritualísticas do candomblé e umbanda. É neste sentido que podemos afirmar que os atabaques contam suas histórias, dizem o que as palavras não ditam. Quando um atabaque está tocando barravento ou Ilú para Oyá, ou Igbin para Oxalá, ou aguerê para Oxóssi, eles estão ditando o ritmo e transmitindo seus conhecimentos. O terreiro, tanto físico e metafísico, quanto os corpos afetivos que formam as famílias de terreiro (corpo-terreiro), são uma das fontes para aprendermos sua cosmopercepção e ìwà l’ẹwà. Muitas das vezes, os mesmos tocadores de atabaques, os ogãs, estão também dentro das escolas de samba tocando e evocando os Orixás para a Sapucaí. É através da musicalidade, a categoria que trabalhamos aqui (dentre a dança, culinária, roupa, etc.), que o Carnaval é uma das formas de produção, invenção, manutenção de ìwà l’ẹwà.
Referências bibliográficas
ABIODUN, R. O conceito de ìwà na estética Iorubá, problemata - Revista Internacional de Filosofia, 2022.
CAETANO, I. A “Obra de Arte Total” do Carnaval: Multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba. Rio de Janeiro, UERJ, 2014.
ESPINOSA, B. Ética, São Paulo, USP, 2021.
Link do desfile da G.R.E.S Beija-Flor de Nilópolis (2018) na íntegra: https://youtu.be/kEkInZJXSB4?si=6cAgIM8AqA5ihuk8
Link do podcast da entrevista de Luiz Antônio Simas: https://www.youtube.com/live/NP-knm9EucM?si=BDuy04wvTOSwYwkK
Link do podcast da entrevista de Gabriel David: https://open.spotify.com/episode/4x4JmJnB5vvtjbfJLmo8zi?si=ZHq65LUlR7GrXiQWEQNa8g&context=spotify%3Ashow%3A3hLTjLWHxXZs5yvaCfrT61&t=0&pi=H8rS7ipASmyEX
RUFINO, L. Pedagogia das encruzilhadas, Rio de Janeiro, mórula, 2019.
SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu Moderno, Rio de Janeiro, DarkSide Books, 2017.
SIMAS, L. A., O corpo encantado das ruas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2024.










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