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Uma dura na virada do século

Atualizado: 16 de nov. de 2023

Por Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho


Certo dia, quando eu ainda era jovem, estava de férias da faculdade, desempregado, duro de grana, mas sem grandes preocupações. A ausência de compromisso valia muito mais para mim do que o conforto do dinheiro. Naquela época não tinha grandes ambições ou necessidades. Era fevereiro de 2001, não lembro o dia exatamente, mas era véspera de carnaval em plena virada do século quando um amigo me telefonou – as pessoas ainda telefonavam naquela época pedindo favor:

– Coé Dom! Preciso de um favor seu lek!

– Qual foi?

– Vai comigo na Mangueira buscar uma parada?

Uma pausa se fez entre as pessoas e aparelhos. Os cachorros latiam para as pessoas que passavam na rua. Automaticamente mão foi na testa com um leve tapa e a boca torceu, mas ele não percebeu meu descontentamento.

– Pô, cara, te falei que não quero subir favela pra buscar droga.

– Eu sei, mas você não vai buscar nada, só vai me acompanhar. Não quero ir sozinho.

– É véspera de carnaval, uzomi estão farejando dinheiro de viciado. Se liga, brown!

– Eu sei, mas vai dar tudo certo. Me ajuda aí, eu vou viajar, não quero ficar sem maconha.

– É por causa daquela mina né?!

Houve uma nova pausa dramática, acho que ele não esperava que fosse tão evidente. Passarinhos assobiavam nas árvores.

– É...

– Mas você vai pegar só maconha mesmo né? Por que se for pegar pó eu tô fora...

– Não, é só maconha, juro!

– Tu não se controla né?! Seu viciado do caralho!

– Pô, vamos lá, ajuda teu amigo...

– Beleza, irmão, eu vou contigo de companhia, mas vê se não me bota em furada. E outra: tô duro, não tenho dinheiro pra passagem.

– Claro que não, deixa comigo. Tem dinheiro pra chegar nas barcas?

– Deixa eu ver...

Abri a carteira e tinham três notas de R$ 1,00. Havia feito uns bicos no final do ano anterior e aquelas notas eram toda dignidade que tinha sobrado. Demorei uns segundos a mais para responder digerindo esse pensamento.

– Tenho sim, mas vou precisar do dinheiro da volta.

– Demorou, nos encontramos nas barcas...

Jovens como nós eram enquadrados frequentemente pela PM. Tomávamos dura no meio da rua. Eles nos revistavam, interrogavam e, caso encontrassem alguma droga ilícita, queriam um “cafezinho”. Não era incomum surgir uma droga misteriosamente no bolso durante a dura, mesmo que a pessoa não tivesse comprado droga alguma. O problema todo era esse: eu não tinha dinheiro nem para a droga nem para o "cafezinho".

Me arrumei e saí. Paguei o ônibus para as Barcas. Cheguei antes dele e fiquei esperando sozinho alguns minutos... Que merda que eu estou fazendo?! As ruas estavam meio vazias, mas algumas pessoas circulavam com bolsas. Debaixo da árvore um morador de rua dormia profundamente a sombra de um calor insuportável.

Vindo do terminal surge a figura: um sujeito magro, alto, calvo e com uma cara natural de chapado. Estava sempre com um cigarro na mão e um refrigerante na outra. Dizia não gostar de água porque não tem gosto de nada, então preferia beber refrigerante. O cara era doido.

– Valeu mesmo por vir.

– Tô com um mal pressentimento, bró, mas já que estamos aqui, partiu.

Pegamos as barcas para o Rio. Era início da tarde. Xitus pagou minha passagem como combinado. Naquela época a barca era aberta e ele foi fumando que nem uma chaminé durante toda travessia. Filei alguns cigarros para passar o tempo, mas aquilo sempre me dava dor de cabeça.

– Qual foi do desespero? Tu sabes que essa época é arriscado à vera...

– Eu vou viajar com a Camy, preciso de maconha.

– Que urgência é essa, irmão? Dá um tempo!

– Não dá, cara. Ainda mais com ela...

– Já é, mas se uzomi enquadrar é tudo contigo mesmo.

– Claro, deixa que eu resolvo.

A cidade estava completamente morta e vazia. Nenhuma alma viva. Naquela época os blocos de rua não tinham voltado e o Viaduto da Perimetral ainda figurava como um monumento grotesco acima das nossas cabeças na Praça XV. No mergulhão, tomamos o ônibus sentido Maracanã e descemos perto da UERJ. Caminhamos até a Visconde de Niterói, pulamos a mureta na altura do Viaduto Dona Zica e fomos em direção rua onde ficava o Buraco Quente.

A entrada da favela estava completamente deserta. Estranhamente deserta. Estava tudo quieto demais. Um senhor negro sem camisa de chinelo, bermuda e chapéu panamá de fita vermelha passou por nós, sorriu e sumiu em uma das vielas que sobe o morro. Quando entramos, onde estaria normalmente a boca de fumo não tinha uma alma viva.

– Bora maluco, não tem nada. Até os bandidos estão escaldados.

– Espera, vamos entrar nessa rua...

Ele não ia desistir facilmente. Entramos na viela estreita e metros depois caminhando uma voz jovem e rouca falou de cima de uma casa.

– Ei, que são vocês? O que vocês querem?

– Eu sou viciado, quero maconha.

O sujeito nos olhou de cima a baixo, mas a gente não tinha pinta nenhuma de P2. Xitus tinha aquela cara natural de chapado, sorriso largo, bobo e amarelado, e eu estava todo descabelado, de óculo, bermudão, camiseta e chinelo, uma mistura de nerd e vagabundo.

– Chega aí!

Xitus olhou para mim e deu uma piscadela. Um gesto de vitória antecipada. São gestos assim que provocam o universo a cobrar seu peço. Enfim, a coisa estava para acabar. Logo poderia ir para casa sem deixar o amigo sozinho na furada.

Ele pegou o bagulho, pagou o traficante e fomos embora. Na descida, fui na frente para olhar e ver se estava tudo limpo na via principal. Não tinha nenhuma viatura da PM à vista... Chamei, ele desceu com o bagulho no bolso e tomou a frente.

– Vamos pular a mureta e voltar por onde viemos...

– Bora!

Pulamos a mureta e chegamos na calçada da rua Visconde de Niterói, paralela à linha do trem.

– Conseguimos! Não te falei?! Foi tranquilo.

– Não canta vitória antes da hora...

Assim que eu terminei a frase dois sujeitos mal-encarados saíram de um Vectra 2.0 – um carrão na época – e nos cercaram na calçada. O negro de óculos escuros colou em Xitus e o outro veio para o meu lado.

Eles meteram a mão no bolso e sacaram distintivos da polícia.

– Polícia! Cadê a droga?

– Que isso, senhor?

– Que isso é o caralho! Nós vimos vocês entrarem e saírem da favela, não adianta mentir. Cadê a porra da droga?

Com a feição pálida e transfigurada da alegria anterior, Xitus meteu a mão no bolso e entregou o tablete de maconha para o policial. O fortão pegou Xitus pelo ombro. Fiquei sem reação, ainda processando aquela reviravolta do destino.

– Entrem no carro... Você vai atrás comigo.

Naquela época não tinha essa de usuário, viciado ia preso que nem traficante. Eu tinha ouvido várias histórias trágicas sobre usuários que iam preso e na cadeia eram obrigados a escolher uma facção, obrigando-os a ingressar no mundo do crime involuntariamente. Imagina: ir fumar um baseadinho e terminar preso em Bangu como traficante do CV, ADA ou TCP.

Assim que entramos no carro, assumindo uma postura hostil, o fortão começou um interrogatório no banco de trás. Xitus parecia assustado.

– De quem é a droga? Você é traficante?

– É minha, senhor, ele não tem nada a ver com isso, só veio me acompanhar.

– Que furada heim? É seu amigo?

– É sim, senhor.

– E você o meteu nessa furada?

Xitus não respondeu, estava atônito.

– Mas ele não é traficante, senhor, é só viciado, não devia ter vindo aqui.

– Devia ter ouvido seu amigo, meu chapa...

O fortão no banco de trás tirou os óculos e estufou o peito.

– E aí, qual vai ser? Levo vocês para delegacia? Você assina por tráfico e você vai ser a testemunha.

– Mas senhor, eu não sou traficante. Não tem outro jeito de a gente resolver?

Xitus a essa altura já suava copiosamente. Seu sorriso largo parecia caído e mais amarelado do que de costume.

– Como?

– Não sei... Eu não sou bandido não, senhor. Sou apenas um viciado.

– Aonde você quer chegar?

– Se eu pagar um cafezinho o senhor deixa a gente ir embora?

– Quanto é esse cafezinho?

– 50 reais? É tudo que eu tenho...

– Toca pra delegacia, esses caras estão de sacanagem!

– NÃO! Por favor! Quanto o senhor quer?

– 200, no mínimo!

Xitus fez uma cara de desespero... Nem eu nem ele tínhamos aquele dinheiro todo. Na época, 50 reais era bastante dinheiro, 200 era uma pequena fortuna. Pelo menos para a gente...

– Eu não tenho esse dinheiro aqui... Posso ligar para um amigo?

– Liga logo, porra!

Discou um número no telefone... Fiquei pensando que poderia ser o anjo salvador. Só podia ser Lobato...

– Lobato? Tudo bem? Cara, tô enrascado... Os PMs me pegaram aqui na...

– PM é o caralho! Polícia Civil, porra!

– Tu ouviu... Estamos ferrados, amigo. Estamos eu e Dom dentro da viatura. A gente estava saindo da Mangueira. Eles querem R$ 200 pra liberar a gente... Tá bom, nas barcas em 40 minutos.

– E aí? Qual vai ser?

Olhei para o banco de trás e Xitus não parava de suar.

– Ele tem o dinheiro, mas está em Niterói. Deve chegar na Praça XV em 40 minutos.

Na mesma hora o semblante dos policiais mudou. O fortão abriu um sorriso e colocou os óculos novamente.

– Relaxa, filho. Agora vocês são nossos clientes.

– Escolhe uma música!

O motorista jogou uma pasta com CD’s no meu colo. Revirei a pasta e escolhi o CD “Sobrevivendo no Inferno”, do “Racionais MC's”.

– Ah, vocês gostam quando eles chamam a gente de verme, né?

– Não senhor...

O motorista deu uma gargalhada, pegou o CD e colocou no aparelho de som do carro. "Jorge sentou praça na cavalaria. E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia...".

Aquele som ficou ecoando sem mais nenhuma palavra. Eles ficaram rodando pela Tijuca, estacionaram para comer um salgado numa lanchonete e nos ofereceram um lanche.

– Quer comer alguma coisa? Pode aceitar, vocês são nossos clientes... Não é essa polícia que Garotinho quer? Eles não querem a gente pegando viciado na rua?

Recusamos. Eu não tinha fome alguma, imagino que Xitus menos ainda. Um sujeito que comia uma coxinha não parava de olhar na nossa direção, uma mulher passou com o filho em frente à lanchonete. Tocava sambas enredo no autofalante da birosca.

Na hora combinada fomos para a Praça XV. Estacionaram o carro no mergulhão.

– Liga logo pra esse seu amigo.

Xitus discou o número.

– Onde você está? Beleza!

– E aí, magrelo?

– Ele está desembarcando...

– Vamos lá!

Xitus saiu logo atrás. Quando eu ia sair o motorista meteu a mão na minha perna.

– Nã, nã. Você fica por precaução, caso seu amiguinho esteja mentindo. Você vai levar tudo sozinho quatro olho.

Tirou uma PT da cintura e colocou no colo. Gelei na hora... Que furada eu tinha me metido. Ele olhava para o retrovisor e os ônibus passavam. Alguns poucos paravam, quase nenhum passageiro. Depois de uma eternidade o fortão desceu as escadas sozinho e fez um sinal para o motorista. O sujeito olhou para mim e abriu o porta-luvas do carro.

– Pode pegar a parada do seu amigo...

O tablete de maconha de Xitus estava junto com várias outras drogas: brizolas de cocaína, dolas de maconha e frascos de loló. Ao que parece a caçada tinha sido promissora, nós não tínhamos sido as únicas presas do dia.

Peguei o lance e saí do carro sem olhar para trás. Quando subi o mergulhão encontrei os dois amigos conversando.

– Eles te libertaram, ainda bem!

– Toma, eles devolveram a tua parada. Custou caro...

– Cara, como vocês se meteram nessa furada? Dura no carnaval...

– É uma longa história, Lobato...

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