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Popularização da ciência ou empreendedorismo acadêmico?

Por Coletivo Terral


Com a chegada à administração federal do bolsonarismo, em 2018, temos simultaneamente assistido a uma escalada de discursos anticientíficos nas redes sociais e até mesmo em meios de comunicação tradicionais, como o rádio e a TV, incluindo nisso emissoras com anos de tradição e presença no cotidiano dos brasileiros. Não faltam exemplos, não faltam nomes, de gurus a programas, que têm feito o trabalho de divulgação de notícias falsas e de ideias que desafiam a lógica científica e racional.


Porém ninguém mais se engana que isso se trata de um fenômeno não apenas brasileiro, mas sobretudo global. Se continuarmos na mesma linha de parâmetro, entre ascensão de discursos negacionistas e políticos de direita, temos à primeira vista a recordação de Donald Trump; um pouco mais longínquo, mas sempre no mesmo recorte, o primeiro-ministro húngaro, que, dia 24 de julho de 2022, anunciara um dos corolários das “democracias iliberais”: o da xenofobia, ao defender uma Hungria sem mestiçagem. “Falando em raça, muitas espécies diferentes povoam nosso planeta. Mas há apenas uma espécie que vive nesta terra andando, trabalhando, falando e, às vezes, pensando: Homo Sapiens Sapiens. Esta espécie é una e indivisível”, teria dito Viktor Orbán, num daqueles clichês racistas que temos com frequência ouvido por aqui.


A crise de confiança pela qual tem passado a ciência, neste cenário, se soma a uma onda política de extremismos e conservadorismo. Isto, aliado à popularização e difusão de meios digitais de comunicação, com seus próprios códigos de conduta (complacentemente antidemocráticos às vezes) e políticas comunitárias internas (por outras), nos dá margem para pensar que não são situações externas uma à outra, mas pertencem ao mesmo caldo e – por que não? – projeto de poder. E o que tem feito a resistência ao negacionismo científico, às fake news, ao alt right? Usando as mesmas ferramentas digitais (complacentemente...), num trabalho de lutar contra o anticientificismo com mais cientificismo. Crê que o que tem faltado é divulgar mais, popularizar a ciência, ser pragmaticamente mais ordinário, “falar a língua do povo”, “traduzir in Vulgata” como diz uma antiga locução. Nisso pipocaram nas plataformas digitais perfis e contas destinadas à bonita, inspiradora e honrada missão de popularização dos saberes científicos. Mas é isso o que tem faltado de fato?


Para conhecer o entendimento da população da importância e do papel da ciência e tecnologia (C&T), o relatório Wellcome Global Monitor, elaborado pelo Instituto Gallup a pedido da organização britânica Wellcome Trust e publicado em julho de 2019, demonstrou que a desconfiança entre os brasileiros relação à ciência residia em 73% ao passo que 23% não viam conexão entre a produção científica e o desenvolvimento econômico e social do país. Essa percepção e (des)confiança, no caso do Brasil, eram motivados por questões de ordem religiosa, seja porque a ciência ia contra suas convicções, seja porque entre uma e outra prefeririam a fé. Paralelo a isso, neste contexto, não podemos ignorar a aliança explícita que tem ocorrido durante todo o governo Bolsonaro com as grandes igrejas neopentecostais e com líderes religiosos de matizes conversadores. E o que podemos tirar disso? Que, se tem uma fonte de descrédito em relação à ciência, essa fonte, no projeto de poder em curso hoje no Brasil, tem nascituro nas mesmas igrejas aliadas do governo. Vocês podem se perguntar? E as igrejas têm sido fonte disso mesmo? E rebatemos: o que muitas delas foram durante a pandemia de coronavírus, senão o ponto de resistência à vacinação e aos protocolos sanitários recomendados pela OMS?!


O mesmo relatório, contudo, chama a atenção para outro fato importante: a percepção atrelada a condições socioeconômicas. Quanto mais desiguais os países, maior descrédito tem a ciência. Isso leva à compreensão de que a relevância da ciência como campo do saber se vincula à confiança que se nutre pelo governo e suas instituições, incluindo nisso a Justiça, a Imprensa e a Universidade. Não soa familiar que, sob o governo bolsonarista, sejam justamente essas as instituições mais atacadas pelo presidente e seus aliados? Daqui, ressaltemos uma coisa, ao menos, da percepção da população: a ciência como instituição, como estrutura de saber e poder.


Em outro estudo, feito pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) sob demanda do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), chamado Percepção pública da C&T no Brasil 2019 e realizado desde 2006, revela um aumento do descrédito em relação à ciência, ao demonstrar que percentual de indivíduos que consideram que C&T só trazem benefícios para a humanidade caiu de 54%, em 2015, para 31%, em 2019. Essa diminuição também ocorreu entre aqueles que consideram os cientistas úteis para a sociedade. Mas um aumento tivemos: de pessoas que creem serem os cientistas pessoas que servem a interesses econômicos privados. E aqui resulta numa nova interrogação sincera: se o descrédito no Brasil vem se dando por achar que a ciência serve a interesses privados, por que o mesmo descrédito não ocorreria para o negacionismo científico? Estaria este ileso dessas relações escusas? Vamos concluir, sim, que também estão a serviço. Mas por que razão uma dialética ralé como esta não é o suficiente para equiparar a luta de divulgadores da ciência à luta pelo descrédito dela? Voltamos a uma questão levantada mais acima: porque esta última é uma luta por um projeto de poder. A divulgação, neste caso, torna-se uma arma ingênua, uma funda diante de um foguete balístico. Por isso mesmo, desnecessária? Não, mas também muito insuficiente.


Sobre a ocupação de espaços de visibilidade ordinários por pessoas que enunciam do campo discursivo da ciência ou dos estudos acadêmicos, como alternativa à mão para enfrentar o engajamento das pessoas contra a ciência, devemos acrescentar mais algumas coisas. É fato que falta a compreensão, e há forte desconhecimento, de conceitos básicos de ciência, por exemplo, sobre vírus versus bactéria, um dos grandes embates biológicos durante a batalha da (des)informação no Brasil-pandemia. E talvez isso seja outro motivo que incentiva os divulgadores científicos instragramáveis a permanecerem na luta. Mas aqui voltamos a outra questão.


Há, de um lado, pessoas, no espectro mesmo da esquerda, que crê ser necessário que os próprios cientistas, pesquisadores, pessoas do campo discursivo da ciência ocupem esses espaços virtuais, para não dar margem para pilantras o façam, como um Olavo de Carvalho e inúmeros outros pretensos portadores de “notório saber”, mesmo sem estes terem pisado por um segundo espaços tradicionais de produção conhecimento científico.

Vamos dar um exemplo. Outro dia, em uma dessas divulgações pró-ciência, contudo num contexto do mercado de cursos livres de filosofia ministrados por pessoas sem formação acadêmica, uma doutoranda em filosofia, por uma universidade brasileira, excelente pesquisadora, estudiosa da obra de Michel Foucault, rebateu, em uma postagem no Facebook, muito bem a deslegitimação feita por acadêmicos de espaços de produção de saberes não acadêmicos, como as redes sociais e as plataformas de streaming, onde são ofertados tais cursos. E realmente a academia não é o único espaço de construção de saber, porém espaço de produção de saberes acadêmicos, ao menos isso ela é. Entretanto, a moça equipara o espaço acadêmico e o espaço não acadêmico (as redes sociais, por exemplo) como equivalentes na produção e difusão de saberes, sejam estes acadêmicos ou não. E nisso reside uma falsa analogia, por achar que o saber acadêmico, propalado em espaço não acadêmico, seja equiparável ao saber acadêmico elaborado em espaço acadêmico e por julgar que, por tal, devem os acadêmicos dialogar e ocupar tais espaços. Ou seja: supõe que se trata apenas de uma retextualização, ao destravar o saber acadêmico para divulgação em espaço não acadêmicos.


Agora isso tem uma questão a ser considerada. Porque dizer isso tem uma consequência muito grave para o contexto do desmonte, precarização e empreendedorização do cientista, do pesquisador, da academia como um todo. Na medida em que você confia que, nesses espaços não acadêmicos, é possível divulgar saberes científicos de igual ou superior valor aos saberes científicos produzidos em espaços acadêmicos, você abre margem para dizer que a universidade é substituível. Que ela é prescindível.


O que falta é entender que existe dentro da universidade, além de pesquisa, um campo de atuação entre universidade e sociedade chamado extensão e que é justamente a extensão que tem feito esforços contínuos de levar ou elaborar um saber acadêmico (ou não) sob a vivência de pessoas não acadêmicas, do povo lá fora, da vida lá fora etc. Cremos ser válido que cheguem até os espaços não acadêmicos saberes acadêmicos, mas mediante um elo com a universidade, como os projetos e programas de extensão têm feito.


Agora, fazer esse saber chegar lá fora “por meio de um curso”, em geral pago, quando não por uma “mentoria”, aí já soa como a empreendedorização do pesquisador. Não somos daqueles que acham que o que falta à ciência é divulgação, que o anticientificismo está aí porque a ciência não soube fazer seu papel na divulgação.

Se formos partir do que descreve Bruno Latour, em Ciência em ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora, sobre as composições, as associações, os coletivos entre ciência e política, por exemplo, podemos dizer que, se a anticiência hoje está em voga, é porque ela está aliada com outros poderes, outras instâncias, sendo a adesão do público, a reprodução da ciência na sociedade apenas a fase final do circuito. E temos visto claramente como a anticiência está aliada com o tradicionalismo e a extrema direita, justamente porque, para boa parte de neoconservadores utópicos, a ciência retirou do homem a cosmologia que antes a religião e a nobreza nutriam e naturalizavam nas relações sociais.


Pasolini, em um de seus Escritos Corsários, no artigo “A primeira, verdadeira revolução de direita”, uma de muitas de suas acusações contra o que ele tem chamado de “mutação antropológica”, “neocapitalismo”, “revolução conformista” – acusações essas contra uma classemedicização, uma padronização cultural e hedonista da sociedade italiana e europeia na década de 1970, em um contexto de avanço de novas tecnologias e homogeneização estética –, o diretor de cinema italiano faz uma crítica ferrenha à adesão embevecida da esquerda à nova relação instituída pela tecnologia:


Esse estado de coisas é aceito pela esquerda [...]. Daí o genérico otimismo das esquerdas, a tentativa vital de se incorporar ao novo mundo – totalmente diverso de qualquer mundo precedente – criado pela civilização tecnológica. Os esquerdistas vão ainda mais longe então ilusão (arrogantes e triunfalistas como são) atribuindo a essa nova forma de história criada pela civilização tecnológica uma potencialidade milagrosa de recuperação de regeneração. Eles estão convencidos de que este plano diabólico da burguesia que tende a reduzir a se universo inteiro, incluídos os operários, acabará por levar à explosão dessa entropia, e a última fagulha de consciência operária será capaz então de fazer ressurgir de suas cinzas aquele mundo explodido (por sua própria culpa) em uma espécie de palingênese (velho sonho burguês-cristão dos comunistas não operários).


Diante desse quadro, a fala da doutoranda em filosofia encontra, nos mesmos flancos de professores pesquisadores no Brasil, resistência incisiva, exatamente porque tem havido forte empurrão de pesquisadores para esses espaços não acadêmicos mediados pelas plataformas de big tech, as mesmas responsáveis e coniventes pela permanência e compartilhamento complacente de comentários e textos antidemocráticos e fascistas em suas redes, principalmente quando moderadas por seus algoritmos e as formações de bolhas ideológicas, as quais poucos conseguem furar. Isso tudo é uma pequena projeção do que tem se tornado a colonização das redes sociais por acadêmicos (ou não) e pesquisadores (ou não).


Se de um lado tem ajudado no compartilhamento da ciência ou de saberes acadêmicos, por outro tem levado ao arrefecimento da universidade como espaço de produção e divulgação de saberes. E podem atestar que poucos são aqueles divulgadores da ciência dessas plataformas que atrelam a discussão que fazem ao seu vínculo institucional, a seus projetos de pesquisa, às suas ações científicas acadêmicas, ou seja, a projeção ali do “eu” é mais forte do que a projeção da universidade ou de suas atividades de pesquisa, por exemplo.


Importante destacar que essa projeção do “eu” não se trata simplesmente de uma ação egoísta isolada, mas que faz parte de uma nova compreensão do mundo ancorada na relação sujeito-empresa. No caso da divulgação científica na internet, por exemplo, o indivíduo, em geral, não se coloca como um pesquisador filiado a instituições e grupos de pesquisas, mas, sim, como uma empresa. Mais que um cientista, ele é um empreendedor! Se no início suas postagens tratavam de esclarecer dúvidas e desfazer mitos, logo em seguida, via de regra, o sujeito passa a vender nas redes sociais seus os conhecimentos através de palestras, e-boos, cursos, mentorias, workshop etc.


Peguem qualquer perfil que promove debate de resistência ao negacionismo científico: a gente sabe que um é físico, outro é biólogo... Mas qual a instituição? Quem são seus professores? Se vinculam a que programas de pesquisas? É o influencer pelo influencer, e basta.


Em suma: o que estamos assistindo é a uma transformação profunda da universidade, que está deixando de ser espaço de produção de saber, cedendo seu espaço para as plataformas virtuais, ao acreditarem que o combate ao negacionismo científico deve ser feito com mais “positivismo científico”, usando as mesmas ferramentas que são compassivas e cúmplices com o esfarelamento das instituições e, por conseguinte, da ciência. Isso se continuarmos a ignorar a necessária vinculação entre o que se faz nessas plataformas quando da divulgação e a universidade onde se situam os divulgadores; isso se continuarmos a promover a desvinculação entre ambas, ao promover o perfil A e o perfil B, os stories de A e as postagens de B; isso se continuarmos a individualizar a produção do saber atrelando o pesquisador influencer ao seu alcance social.


A crença de que os espaços dessas plataformas, tanto as redes sociais, quanto as de streaming, devem ser ocupados por pesquisadores acadêmicos só reforça a ideia de que as ações da universidade estão defasadas, não se modernizaram, se afastaram da população, quando o que está em cena não é tanto a aproximação entre ciência e sociedade, mas as alianças cada vez mais orgânicas entre extrema direita e igreja, em seus ataques sempre mais furiosos contra as instituições democráticas. A pandemia, enquanto ambiente de guerra, foi um laboratório perfeito para o biopoder e, portanto, para as universidades, que vão se mostrar extinguíveis se continuarmos a defender engajamento de suas pesquisas engolfando-as nas plataformas do capitalismo digital.

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