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O paradoxo da liberdade individual no neoliberalismo e o aumento da pobreza no Brasil

Por Marina Moreno de Farias[1]



A ideia de liberdade é inspiradora. Mas o que significa? Se você é livre em um sentido político mas não tem comida, que liberdade é essa? A liberdade de morrer de fome?

(Angela Davis)



Notícias sobre o aumento no valor dos alimentos, matérias de jornal ensinando as pessoas a cozinharem substituindo certos itens, peças de carne com alarme anti-furto em supermercados, brasileiros viajando até países vizinhos para abastecer automóveis com combustível, a volta do país ao mapa da fome, a insegurança alimentar que paira até sobre a outrora classe média, o desemprego que, mesmo decrescendo por conta do reaquecimento do setor de serviços pós-pandemia, não produz empregos de qualidade em termos de salário e cargos. Tudo isso é norma no Brasil nos últimos anos.


É claro que a conjuntura internacional produz efeitos intensos sobre todas as economias nacionais, e países desenvolvidos do Ocidente também vem lidando com o aumento da inflação e desemprego, causados em parte pela pandemia do coronavírus e pela mais recente guerra na Ucrânia. É preciso pontuar, no entanto, como o estabelecimento das políticas de austeridade, conduta de praxe do Neoliberalismo, em conjunto com a racionalidade neoliberal, vêm impactando no que diz respeito à classe trabalhadora brasileira e aprofundando os problemas estruturais no contexto macroeconômico do país.


As políticas que fundamentam o neoliberalismo são conhecidas: arrocho salarial (salário não é reajustado de acordo com a inflação), diminuição do gasto público, privatização dos serviços públicos, venda de estatais para multinacionais estrangeiras, disciplina fiscal, liberalização comercial, manutenção de taxas de câmbio competitivas, dentre outras. Essas políticas seguem a doutrina neoliberal do combate às políticas de bem-estar social, porque a ideia de liberdade individual (central nas proposições da corrente) em um ambiente de livre-concorrência só pode existir na lógica do mercado. Esse mercado, por sua vez, é considerado quase como uma ocorrência natural, exógena ao controle e às construções humanas, e que tal modelo seria o único possível a organizar a sociedade civilizada. Nesse cenário, o neoliberalismo supõe um sujeito que só pode agir em consonância com a lógica da liberdade individual, dentro da “livre-concorrência”, em um “livre-mercado” que se “auto-regula”. Ora, se a liberdade só pode ser exercida quando condicionada às leis do mercado, que liberdade é esta? Se a única autoridade a ser obedecida é este “mercado”, como o neoliberalismo foi e continua sendo tão vigorosamente imposto e mantido por forças governamentais? Por que o mercado é tratado como uma força supra individual, quase divina, se o mercado nada mais é do que o conjunto de interações humanas e trocas dentro da economia? O mercado não existe em um vácuo, como propõem os neoliberais. E mesmo assim, a ideologia hegemônica do nosso tempo é o neoliberalismo.


Gostaria de fazer uma proposição nesse ensaio: se o mercado, entidade em que a ideologia neoliberal e suas políticas concretas se apoiam, é a única maneira de garantir liberdade e potencial, e gerar equilíbrio econômico, por que é que estivemos, estamos e continuaremos em crise econômica? Por que é que o país voltou ao Mapa da Fome? Por que é que nem os índices macroeconômicos demonstram bons cenários? Por que o número de famílias em situação de pobreza extrema saltou quase 12% em 2022? Por que 20 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar? De acordo com a racionalidade neoliberal, eles “só” não se esforçaram o suficiente. Essas lacunas dependeriam de seu poder individual de ação rumo à uma startup de sucesso, do desenvolvimento de um mindset empreendedor. Conforme os ditames da economia de mercado, eles não exercitariam suas capacidades competitivas.


É essa a racionalidade do neoliberalismo: “A ordem do mercado é o palco de realização de uma série de valores, sob a condição de que ele participe do jogo da concorrência e otimize suas capacidades produtivas.” (FRANCO et al, 2021, p. ). E aí entram as justificativas, nos jornais, nos podcasts, nas redes sociais, nos sites, de que a pobreza não é um problema estrutural e todo mundo pode vencer na vida caso se esforce. E aí entram as notícias de que podemos, individualmente, encontrar soluções, nas nossas vidas privadas, para distúrbios do capitalismo neoliberal. Podemos parar de comer certos alimentos, podemos substituir outros, podemos ir a pé para os lugares já que as passagens de ônibus só aumentam de preço, podemos e devemos mercantilizar nossos hobbies para fazer uma “renda extra”, já que não existe emprego.


Não é difícil entender como a racionalidade neoliberal é comprada tão facilmente. Em um ambiente de impotência do sujeito frente ao sistema, é fácil estabelecer que com sua agência e determinação, esse mesmo sujeito seja capaz de alcançar alguma coisa. Ora, é muito mais aprazível para o indivíduo aceitar o que foi feito por ele, e não o que acontece à ele, onde ele não pode exercer agência. Assim, não só o neoliberalismo cria uma aderência à sua racionalidade no sentido de aceitar que nosso bem-estar social depende de nós mesmos, mas também, e principalmente, que as falhas sistêmicas são também nossa culpa e somos responsáveis por resolvê-las. “A angústia derivada da indeterminação na qual os indivíduos [...] veem-se inseridos sob a ordem capitalista pode levá-los a aderir de modo irrefletido a ideias que exaltam o seu poder de ação, sua capacidade de empreender e ser bem-sucedidos” (FRANCO et al, 2021, p.70)


Se estamos tratando da racionalidade neoliberal (aquilo que transforma o espírito, que estabelece afetos e interioriza uma mentalidade, tornando-a norma social), precisamos tratá-la de maneira crítica para estabelecer que só pode e só haverá saída para a(s) crise(s) no Brasil caso essa mentalidade também seja combatida. “Determinados acontecimentos históricos levam à perda de força das ideias hegemônicas e dão espaço para concepções antes marginais”. (FRANCO et al, 2021, p.70). Não pode haver liberdade em um sistema constituído para gerar lucro infinito e a qualquer custo. O paradoxo do neoliberalismo é que não há liberdade nele. Se somos livres em um sentido individual, mas não temos condições materiais de usufruir desta liberdade, essa liberdade não existe de fato. O fator determinante será o que a classe trabalhadora organizada pode fazer para transformar também as estruturas da mentalidade, da mudança de alma que o neoliberalismo estabelece para legitimar suas políticas econômicas de fome e morte.


[1] Graduada em Relações Internacionais. Pesquisadora em Economia Política Internacional e Desenvolvimento Econômico.

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