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O Direito como Trilha Sonora do Racismo: Mc Poze do Rodo e “Apologia ao Crime”


A última vez que escrevi sobre a prisão de MCs foi quando Cabelinho e Maneirinho foram intimados a depor na Cidade da Polícia, no Rio de Janeiro.


Quatro anos se passaram, e, lamentavelmente, sigo podendo começar este texto quase do mesmo jeito.

Reproduzindo o texto anterior, seria algo assim: na manhã de 29 de maio de 2025, a cena musical brasileira despertou em meio a uma nova onda de indignação nas redes sociais. Artistas do funk, como ORUAM, MC Maneirinho e Major RD – apoiados por rappers, atores e influenciadores negros – reagiam com revolta à prisão de MC Poze do Rodo.



Imagens da cobertura midiática se espalharam rapidamente: Poze, sem camisa, descalço, algemado e com a cabeça forçada para baixo por policiais que o escoltavam, era abordado por repórteres em busca de uma declaração.


Diante da pergunta “o que você tem a dizer, Poze?”, ele respondeu com aquilo que deveria ser óbvio: “Falar assim? Como que eu falo assim, tia?”


Essa não é a primeira vez que Poze do Rodo é alvo de investigações por suposta apologia ao crime.

Em 2019, foi detido durante um show em Mato Grosso; em 2020 acusado também por associação ao tráfico por cantar em um baile funk; e, em 2023, foi investigado no âmbito da Operação Rifa Limpa. Embora já tenha dito que não goste de falar disso em público, quando foi absolvido, Poze publicou uma breve mensagem nas redes sociais agradecendo a decisão e comentando que havia superado seu maior medo: ser preso.



Agora, mais uma vez, a acusação parece repetir um enredo conhecido: segundo relatos da mídia, Poze teria cantado músicas que fazem referência ao Comando Vermelho durante um baile funk onde havia pessoas armadas, conforme indicam vídeos que circularam nas redes. O caso remete a prisões anteriores de MCs e reforça o que muitos artistas já denunciaram como uma perseguição sistemática a Poze e outros cantores do gênero.


O gênero em questão é o funk proibidão, conhecido por retratar a realidade do tráfico de drogas nas favelas. O baile funk, por sua vez, é o espaço onde esses proibidões são performados, muitas vezes fora dos circuitos convencionais de distribuição musical, como as plataformas de streaming.



Nesse contexto, aprendem códigos, linguagens e comportamentos, o que inclui músicas, que podem ou não ser reproduzidos publicamente naquele espaço, sendo caso de vida ou morte.

A rapper Duquesa traduziu bem essa tensão ao apagar uma trend no TikTok com sua música “Fuso”, tentando se esquivar de possíveis acusações de apologia após perceber que os gestos promovidos no vídeo podiam ser associados, em certos contextos, a facções criminosas.



Se sinais, gírias e letras são constantemente mobilizados para reafirmar diferentes identidades, socialmente legitimadas ou não, a pergunta que venho tentando responder é: afinal, como o direito penal brasileiro define – e, principalmente, contra quem escolhe aplicar – a noção de apologia ao crime quando o que está em jogo são as músicas?


MÚSICA E IDENTIDADE: O QUE É APOLOGIA?


“Arranca a cabeça e deixa pendurada. É a Rotam patrulhando a noite inteira. Pena de morte à moda brasileira!”

Quando a letra destacada acima foi cantada, homens fortemente armados estavam presentes, acompanhados de autoridades locais. Não se trata de um caso isolado: basta uma rápida busca nos principais jornais ou nas redes sociais para encontrar outros exemplos de celebrações marcadas por músicas de teor violento.


A justificativa usada para a prisão de MC Poze poderia se aplicar perfeitamente a essas outras celebrações, pois como afirmou a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), trechos como o destacado acima “incitam confrontos armados entre grupos rivais, o que frequentemente resulta em vítimas inocentes” e “extrapolam os limites constitucionais da liberdade de expressão e artística, configurando crimes graves de apologia ao crime”.



Eis a ambiguidade central do tema: o trecho destacado, se não contivesse a palavra “Rotam”, poderia facilmente ser associado a uma facção criminosa. Mas, na verdade, trata-se de uma canção interpretada durante um evento oficial em comemoração aos 13 anos do Batalhão de Polícia Tática (BPOT), no estado do Pará, com a presença do governador Helder Barbalho. Neste caso, curiosamente, ninguém foi acusado de apologia ao crime.


A ambiguidade sobre o que configura apologia ao crime é pouco problematizada no direito brasileiro e costuma depender da percepção subjetiva de quem julga. Um experimento da literatura criminológica norte-americana ajuda a ilustrar a problemática desse viés subjetivo: nos EUA, letras de gangsta rap são frequentemente utilizadas em processos criminais.



Em 1996, a psicóloga Carrie Fried apresentou a 118 participantes brancos a mesma letra da música folk “Bad Man’s Blunder”, do Kingston Trio, variando apenas o gênero atribuído: folk, country ou rap. Os participantes avaliaram a letra como muito mais ofensiva e incitadora de violência quando acreditavam se tratar de rap.


Nos anos seguintes, as replicações do estudo sempre indicaram resultados semelhantes, motivo pelo qual esse tipo de distorção – em que o gênero musical, e por extensão a raça e o contexto social do artista, pesam mais que o conteúdo – levou a Califórnia, em 2023, a proibir o uso de letras musicais como prova em processos penais.



O uso da música como afirmação de identidade e forma de posicionamento político ou social não é novidade, e aparece em diferentes contextos ao longo do tempo. Ainda nos anos 1980, Bezerra da Silva já era acusado de fazer apologia ao crime por suas letras, embora deixasse claro que estava apenas “resgatando a voz do morro”.


Nas décadas seguintes, tanto MV Bill quanto os integrantes do Planet Hemp também enfrentaram investigações por apologia ao retratar a realidade das periferias urbanas, fato que se repetiu no início dos anos 2000 com os funkeiros Smith, Tikão, Didô e Frank. Por outro lado, músicas que exaltam práticas ilegais cometidas por agentes do Estado raramente enfrentam a mesma reação.



Além do já citado caso da Rotam, circularam recentemente nas redes sociais vídeos de policiais militares, dentro de quartéis, cantando músicas que glorificam a violência do Massacre do Carandiru, com trechos como: “lá só tinha lixo, a escória, na moral; foi dado pista quente para derrubar geral; bomba, facada, tiro e granada.”


Também têm ganhado destaque os chamados “funks das milícias”, vinculados a grupos paramilitares na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Diferente dos casos envolvendo artistas como Poze, essas últimas músicas raramente resultam em investigações e punições.



No caso da prisão, em 2010, do MC Smith, por exemplo, restou que o judiciário atuasse como uma espécie de encarnação do bem combatendo o mal. À época, Eduardo Backer (2013) analisou o discurso jurídico apontando que, desde o processo inquisitorial, delegados defendem que as letras das músicas e as opiniões dos artistas são praticamente a mesma coisa.



No processo penal, os acusados aparecem apenas como figuras distantes, tratadas na terceira pessoa, servindo para confirmar as ideias pré-concebidas dos agentes do sistema sobre os fatos em julgamento: a violência que incita a música. Talvez, se não se tratasse de um gangsta rap – traçando aqui aquele nosso paralelo com os Estados Unidos – a interpretação fosse diferente. Fala-se sobre os funkeiros como se suas vozes fossem dispensáveis, já que tudo que se precisa saber estaria contido nas músicas.


É o “bem”, o judiciário, enfrentando o “mal”: o MC levado descalço e sem camisa para a delegacia, tratado como um criminoso perigoso por causa de suas letras e performances, como se representasse uma ameaça real no trajeto entre sua casa e o distrito policial.


Ainda que esteja evidente a seletividade penal na definição de quem comete apologia ao crime por meio de músicas, a crítica aqui não é uma defesa pela punição universal: prender quem canta é uma resposta demagógica, que tenta oferecer soluções simplistas para um problema estrutural, mascarado pela retórica do bem contra o mal.


Mesmo medidas como proibir agentes do Estado de cantar essas músicas não enfrentam a raiz da questão, que está na formação policial, no imaginário social e nas políticas neoliberais de um Estado punitivo. O problema do sistema de justiça (e do próprio Direito) não se limita às interpretações subjetivas da lei de apologia, mas ao fato de que ele opera como agente ativo na reprodução das desigualdades.



Em outras palavras, o direito brasileiro não falha ao aplicar a lei, pois ele funciona exatamente como foi concebido: com instituições moldadas para flexibilizar o princípio da legalidade sempre que isso for conveniente aos interesses da classe senhorial. Nesse sentido, a apologia não é apenas interpretada de forma desigual. Ela é, em sua essência, instrumento de manutenção dessa desigualdade.


Talvez, por ora, nos caiba apenas afirmar e defender que o MC Poze não deveria estar preso. Se suas músicas são ou não apropriadas e utilizadas para reafirmar uma identidade territorial, legal ou não, este não é motivo suficiente para sua prisão.



O “eu lírico” existe também no funk, assim como existe em outras expressões musicais que abordam a violência urbana sem sofrer o mesmo peso do estigma racial e social que recai sobre Poze. A polícia mata todos os dias, sob legítima defesa ou não, mas cantar sobre essa violência não carrega o mesmo efeito jurídico e social.


Em nenhuma dessas situações o problema – a violência urbana – é atacado em sua raiz, e talvez isso se explique pelo fato de que nunca houve real intenção de enfrentá-lo como tal.

O que parece importar, afinal, é a fabricação de inimigos visíveis, de “bandidos” identificáveis, cuja prisão seja politicamente útil e viável para o Estado: é mais fácil vender a ideia de que se está resolvendo a crise da segurança pública prendendo o MC do que encarar as estruturas de poder que de fato sustentam e lucram com a engrenagem do crime: empresários, políticos e outros agentes que jamais seriam escoltados algemados, sem camisa, descalços e com a cabeça forçada para baixo.


Referências Bibliográficas

ARAIBI, Reyna. Every Rhyme I Write": Rap Music as Evidence in Criminal Trials. Ariz. L. Rev., v. 62, p. 805, 2020.
PEREIRA, Eduardo Baker Valls. Ensaio por uma criminologia perspectivista. 2013. 154 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil Constitucional; Direito da Cidade; Direito Internacional e Integração Econômica; Direi) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
SILVA, Emerson Luã Ferreira da. “Bezerra da Silva é o pai do proibidão”: crimes de apologia e a criminalização do funk carioca. 2023. 144 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023.

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