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Quem é o vilão? Quem é o herói? A música periférica e o julgamento seletivo da Justiça brasileira

  • Foto do escritor: Pivete
    Pivete
  • 3 de jun.
  • 6 min de leitura

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O funk não começou a ser perseguido hoje. Sua criminalização faz parte de uma longa história de silenciamentos, repressões e estigmas contra manifestações culturais que nascem nas periferias do Brasil.


Antes do funk, o samba era caso de polícia — seus músicos eram presos, seus instrumentos apreendidos. O rap foi (e ainda é) enquadrado como apologia ao crime. Durante a ditadura, a MPB de protesto foi censurada, artistas exilados, discos proibidos. O alvo nunca foi só a melodia — era (e ainda é) o que ela representa: vozes dissonantes vindas de corpos negros e pobres.


MC Poze do Rodo, nome artístico de Marlon Brandon Coelho Couto Silva, é um dos artistas mais ouvidos do Brasil, com mais de 6,8 milhões de ouvintes mensais no Spotify . Nascido na Comunidade do Rodo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ele emergiu como uma voz autêntica do funk carioca, retratando em suas letras a realidade das favelas.
MC Poze do Rodo, nome artístico de Marlon Brandon Coelho Couto Silva, é um dos artistas mais ouvidos do Brasil, com mais de 6,8 milhões de ouvintes mensais no Spotify . Nascido na Comunidade do Rodo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ele emergiu como uma voz autêntica do funk carioca, retratando em suas letras a realidade das favelas.
Essa repressão escancara o quanto o sistema teme a arte que nasce da dor, da ausência de direitos e da resistência cotidiana.

Funk, samba, rap: todos seguem o mesmo percurso de perseguição porque expõem o que muita gente prefere fingir que não existe — um Brasil que resiste mesmo quando é negado.


A prisão de MC Poze do Rodo, em maio de 2025, é mais um episódio dessa engrenagem. Preso em casa, de forma desproporcional e humilhante, com câmeras já posicionadas esperando o “espetáculo”, ele foi acusado de “apologia ao crime” e tratado como inimigo público.


O desembargador Peterson Barroso mandou soltar MC Poze do Rodo, preso por suspeita de associação ao tráfico. Ele considerou a prisão desproporcional, sem provas concretas, e criticou a forma humilhante como o funkeiro foi detido.
O desembargador Peterson Barroso mandou soltar MC Poze do Rodo, preso por suspeita de associação ao tráfico. Ele considerou a prisão desproporcional, sem provas concretas, e criticou a forma humilhante como o funkeiro foi detido.

A decisão do desembargador Peterson Barroso, que concedeu habeas corpus dias depois, denunciou a seletividade da ação policial e a teatralidade jurídica que expôs o artista como alvo preferencial do sistema.


Mas a prisão de Poze não é exceção — é padrão. É o Estado mandando o recado: se você é da favela e fala alto demais, vai ser silenciado.

E é nesse cenário que nasce a famigerada “Lei Anti-Oruam”, projeto que circula por várias câmaras municipais do país, tentando proibir a contratação de artistas cujas músicas falem sobre crime, drogas ou sexo — especialmente em eventos públicos voltados para jovens.


O rapper carioca Oruam, de 24 anos, alcançou um novo patamar em sua carreira ao ser destaque na capa da prestigiada revista britânica Dazed. A publicação não se limitou à capa, e o artista também estrela vídeos promocionais nas redes sociais da revista, solidificando sua presença no cenário internacional.
O rapper carioca Oruam, de 24 anos, alcançou um novo patamar em sua carreira ao ser destaque na capa da prestigiada revista britânica Dazed. A publicação não se limitou à capa, e o artista também estrela vídeos promocionais nas redes sociais da revista, solidificando sua presença no cenário internacional.

A própria alcunha da lei é um ataque direto: Oruam, artista negro da favela, filho de Marcinho VP, é o nome escolhido para personificar o perigo. Mais do que um projeto de lei, isso é uma tentativa de apagar referências que não seguem o molde esperado — que não pedem licença pra existir.


Essa lei não tem nada a ver com proteger a infância. Tem a ver com controle.
“Eu não consigo descrever esse sentimento. É como se eu tivesse que ser um herói, mas, na verdade, eu sou um anti-herói”, declarou o rapper, refletindo sobre a complexidade de sua trajetória e a dualidade de sua persona artística.
“Eu não consigo descrever esse sentimento. É como se eu tivesse que ser um herói, mas, na verdade, eu sou um anti-herói”, declarou o rapper, refletindo sobre a complexidade de sua trajetória e a dualidade de sua persona artística.

Com impedir que moleques vejam no Poze, no Oruam, no MC Cabelinho, exemplos de superação e autenticidade. É uma tentativa institucional de censurar, sob um verniz moralista, a cultura que nasce nas bordas do sistema e mostra que é possível ser grande sem abrir mão das raízes.


Não é de hoje que isso acontece. Em 2010, a polícia prendeu quatro cantores de funk acusados de fazer apologia ao tráfico e de envolvimento com o Comando Vermelho: MC Smith, MC Frank, MC Ticão, MC Max e MC Dido. A narrativa era a mesma: “marketing do tráfico”, incitação à violência, criminalização da arte.


Emicida (2012): preso após show em BH, acusado de desacato por cantar uma música que incomodou a PM.
Emicida (2012): preso após show em BH, acusado de desacato por cantar uma música que incomodou a PM.
Eles não foram os únicos. A repressão a artistas do funk, rap e samba remonta a décadas e segue o roteiro de sempre: racismo, censura e seletividade penal.

Casos emblemáticos comprovam o modus operandi do Estado:


  • MC Poze (2025): preso sob acusações frágeis, em ação midiática e vexatória, solto após decisão judicial que reconheceu o abuso.


  • Oruam (2025): Foi preso duas vezes: primeiro por dirigir com a CNH suspensa e tentar fugir de uma blitz; depois, por abrigar um foragido com arma ilegal em casa. Foi liberado após pagar fiança e assinar termo. Os casos reacenderam o debate sobre a seletividade penal e a "Lei Anti-Oruam".


  • Rennan da Penha (2019): preso por “associação ao tráfico” por tocar em bailes funk. Absolvido em 2023 pelo STJ por falta de provas.


MC Tikão (2017): O funkeiro Fabiano Batista Ramos, conhecido como MC Tikão, foi preso sob a acusação de auxiliar na fuga do traficante Rogério 157 da Rocinha durante uma operação das Forças Armadas.
MC Tikão (2017): O funkeiro Fabiano Batista Ramos, conhecido como MC Tikão, foi preso sob a acusação de auxiliar na fuga do traficante Rogério 157 da Rocinha durante uma operação das Forças Armadas.
  • Emicida (2012): preso após show em BH, acusado de desacato por cantar uma música que incomodou a PM.


  • MC Smith (2010): preso no Complexo do Alemão, acusado de apologia e associação ao tráfico. Solto duas semanas depois, sem provas.


  • MC Frank (2005/2010): indiciado por músicas que retratam a realidade da favela. Novamente preso anos depois, sob o mesmo argumento.


  • MC Colibri (2006): Foi preso em maio de 2006 e liberado em dezembro do mesmo ano por falta de provas, após ter sido acusado de ter ligações com o tráfico de drogas.


  • MV Bill (2000): investigado antes mesmo de lançar o clipe de “Soldado do Morro”. Censura prévia pura.



    Planet Hemp (anos 90): presos por apologia às drogas, acusados por letras que discutiam o uso da maconha. Um clássico da hipocrisia.
    Planet Hemp (anos 90): presos por apologia às drogas, acusados por letras que discutiam o uso da maconha. Um clássico da hipocrisia.

E antes de todos eles, o samba. No início do século XX, sambistas eram presos por “vadiagem”, rodas de samba eram interrompidas a cacetete. A repressão era direta e escancarada, com o racismo institucional sempre como pano de fundo.


O que tudo isso revela? Que a criminalização da arte periférica é um projeto de poder.

Acusações genéricas como “apologia ao crime” são usadas para calar quem ousa transformar dor em denúncia. Enquanto produções das elites, que tratam dos mesmos temas, são vistas como “ficção”, “denúncia social” ou “arte conceitual”, a favela é julgada sem roteiro nem direito a segunda cena.


Quando um artista é perseguido por retratar o que vive, o que sente e o que vê, o que está em jogo não é só sua liberdade — é a tentativa de silenciar um povo inteiro. A arte que nasce da favela não é propaganda: é vivência, é sobrevivência, é identidade. E é exatamente isso que assusta tanto.

O Mc Poze do Rodo fez a alegria de centenas de crianças do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, em 2012, ao realizar a PozeKids. A ação social PozeKids contou com muitos brinquedos, diversão, lanches, entretenimento além de um show do artista.
O Mc Poze do Rodo fez a alegria de centenas de crianças do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, em 2012, ao realizar a PozeKids. A ação social PozeKids contou com muitos brinquedos, diversão, lanches, entretenimento além de um show do artista.

Pergunte a uma criança da favela quem é o Poze. Ela vai dizer: é inspiração. É alguém que venceu, mas continua com os dois pés no chão de barro. Que fala a mesma língua. Que representa o que muitos tentam esconder. Agora pergunte quem é o “herói” de farda. O que entra na comunidade com o dedo no gatilho e a certeza da impunidade.


A figura do herói só se sustenta quando ninguém cobra o sangue que ele derrama.

A criminalização do funk, do rap, do samba — da arte preta e periférica — é uma tentativa constante de dizer que nossas histórias não valem. Ou só valem quando são contadas do jeito deles, editadas, lavadas, pasteurizadas. Quando a Justiça é seletiva, racista e classista, ela não protege: ela pune quem ousa existir.


O Massacre de Paraisópolis aconteceu em 1º de dezembro de 2019, durante um baile funk na comunidade de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Nove jovens morreram pisoteados após uma ação violenta da Polícia Militar, que cercou e dispersou a multidão com bombas e tiros, provocando pânico. A operação foi duramente criticada por uso excessivo de força, racismo e repressão à cultura periférica.
O Massacre de Paraisópolis aconteceu em 1º de dezembro de 2019, durante um baile funk na comunidade de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Nove jovens morreram pisoteados após uma ação violenta da Polícia Militar, que cercou e dispersou a multidão com bombas e tiros, provocando pânico. A operação foi duramente criticada por uso excessivo de força, racismo e repressão à cultura periférica.

Poze não é o vilão. Oruam não é o vilão. O vilão é o sistema que censura, que marginaliza, que mata. O herói é quem canta mesmo quando o microfone vira alvo. Quem transforma a ausência em rima, a violência em batida, o luto em verso.


Quando a arte vira crime, o que está sendo julgado é o nosso direito de existir.

E disso, a favela entende bem.



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