A Cor do Acesso: Disputas em Torno da Identidade Racial na Universidade
- Pivete
- 21 de mar.
- 7 min de leitura

Ser preto é sinistro. Desde pequeno, me fizeram acreditar que minha cor era um peso, um problema, um aviso de perigo. Cresci ouvindo que eu não chegaria longe, que meu futuro já estava traçado: criminoso, pai precoce, peão de obra, morto antes dos 25. Eu queria ser branco. Queria escapar desse destino que os outros já tinham decidido pra mim.
Na escola, era o cabelo que incomodava. Na loja, era a pele que fazia o segurança me seguir. No passeio com a turma pra um bairro de playboy, era minhas roupas que entregava:
“Aqui não é a favela de onde vocês vieram”, eles diziam, com aquele olhar de superioridade.

A mensagem era clara: preto não pertence.
O mundo não precisava nem falar, só mostrava. Televisão, jornais, livros – tudo reforçava o mesmo papo. Como Beatriz Nascimento denunciava lá nos anos 70, até na TV infantil o preto era sempre o bobo, o medroso, o serviçal. Crescemos sem referências que nos empoderem, sem ver nossas histórias sendo contadas com respeito. Muniz Sodré sacou isso faz tempo: a mídia brasileira sempre botou o preto no canto, marginalizado, reduzido a um estereótipo.
Dentro de casa, o discurso era o mesmo. Como Lilia Schwarcz explica, o embranquecimento sempre foi um projeto – e não só do Estado, mas dentro das próprias famílias negras.
"Casar com alguém mais claro para melhorar a cor dos filhos" era um papo comum, quase regra.

Esse era o sonho que vendiam: embranquecer era subir na vida.
Mas aí, mano, veio o choque. No ensino médio, trombei com uns livros na biblioteca – aquela que mal abria por falta de funcionário. Lélia Gonzalez tava lá dizendo que educação crítica é chave para desmontar essa estrutura colonial. Foi ali que a chavinha virou. Comecei a entender que o problema nunca foi minha cor, e sim o sistema que insistia em me apagar.
No final, as cotas foram minha porta de entrada para a universidade. Como Kabengele Munanga defende, ações afirmativas são necessárias para quebrar desigualdades históricas. Mas a real é que entrar foi só o começo. Dentro da faculdade, a branquitude não queria dividir espaço, e a burocracia estava sempre pronta para barrar.
Só que tem uma coisa que eles nunca entenderam: a gente nasce astuto. Como Maria Aparecida Bento diz, a branquitude não enxerga nossos pactos, nossa resistência, algo que não alcança seus pactos narcísicos. Crescemos no corre, na urgência, na fome de tudo. Aprendemos desde cedo a driblar, a se virar, a seguir.

E foi isso que me trouxe até aqui: a certeza de que ser preto é potência, é história, é resistência.
Hoje, eu carrego minha cor com orgulho. Sei de onde vim. Sei quem veio antes de mim. E sei que a luta continua – mas dessa vez, de cabeça erguida.
O despertar da consciência racial na universidade
Ingressar na universidade vai além da sala de aula e dos livros. Para muitos jovens negros, é o primeiro contato real com discussões que desconstroem os mitos raciais que a sociedade brasileira perpetua. Gabriel, 23 anos, estudante de Ciências Sociais, relata como sua percepção sobre o que é ser negro no Brasil mudou completamente ao ter acesso a debates e leituras acadêmicas.
"Eu sabia que era negro, mas não sabia o que isso significava socialmente", reflete.

Essa experiência também marcou Julia, estudante de Estudos de Mídia, que encontrou na bolsa de pesquisa a oportunidade de se sentir parte do ambiente universitário. Antes, percorria longas distâncias para estudar e sentia na pele as desigualdades que separam estudantes negros e brancos.
Assim como Gabriel e Julia, milhares de jovens negros brasileiros vivenciam essa realidade: a descoberta da própria identidade racial dentro da universidade, um espaço que, historicamente, os excluiu.
Raízes históricas do racismo estrutural
O Brasil construiu sua identidade racial com base em teorias como o embranquecimento e o mito da democracia racial. No século XIX, o ideal de que a miscigenação apagaria as marcas da ancestralidade africana foi promovido por intelectuais como João Baptista de Lacerda, que via na imigração europeia uma estratégia para "aperfeiçoar" a população.

A obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ajudou a consolidar a ideia de um país sem racismo, celebrando a miscigenação como sinal de harmonia. No entanto, a realidade dos negros no Brasil seguiu marcada pela marginalização econômica e social.
Como destaca o sociólogo Guerreiro Ramos, a branquitude se mantém como um pacto silencioso que preserva os privilégios brancos. Esse pacto se reflete na ocupação dos espaços de poder, na menor representatividade negra em cargos de liderança e na dificuldade de ascensão social para a população afrodescendente.
A construção de uma identidade negra
O processo de formação da identidade negra no Brasil foi historicamente atravessado pela necessidade de resistência. Autores como Neusa Santos Souza e Abdias do Nascimento destacam como a população negra, sem referências positivas de si mesma, muitas vezes busca no embranquecimento uma ilusória ascensão social.
Essa pressão social pela negação da própria identidade impõe um dilema cruel: conformar-se à branquitude para ser aceito ou reafirmar sua negritude e enfrentar o preconceito estrutural.
O conceito de contínuo racial, apresentado por Carlos Antonio Costa Ribeiro, propõe uma nova maneira de entender as identidades no Brasil: não como categorias fixas, mas como uma escala fluida.

Essa visão explica por que a autodeclaração racial nas cotas universitárias se tornou um tema polêmico.
Para o Movimento Negro Unificado, negro é todo aquele que sofre discriminação racial e vivencia as desigualdades impostas pelo racismo estrutural. A própria experiência universitária desses jovens os coloca diante da realidade da exclusão, revelando um sistema que, mesmo com avanços, ainda carrega marcas profundas da desigualdade histórica.
A universidade como espaço de transformação
A política de cotas ampliou o acesso de estudantes negros ao ensino superior, refletindo um avanço na busca por equidade. Entre 2010 e 2019, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%, segundo dados do IBGE. Essa mudança representa uma conquista, mas também um desafio: a inclusão não se resume ao ingresso, mas também à permanência e ao sentimento de pertencimento.

Além das barreiras financeiras, estudantes negros enfrentam o racismo institucional dentro das universidades. A ausência de professores negros, o currículo eurocêntrico e a falta de políticas de permanência tornam a experiência acadêmica um desafio constante. Muitos desses alunos precisam conciliar estudos com longas jornadas de trabalho, lidam com a falta de apoio psicológico e enfrentam o isolamento dentro de um ambiente que, muitas vezes, não reconhece suas demandas.
A experiência universitária de Gabriel e Julia é um reflexo do impacto transformador que o conhecimento pode ter. Quando a juventude negra se reconhece e compreende seu papel histórico, abre-se caminho para um futuro onde as desigualdades raciais sejam questionadas e combatidas.
Lutar pela manutenção das políticas de ação afirmativa é garantir que mais jovens negros possam ocupar esses espaços, transformando suas realidades e, consequentemente, a sociedade brasileira. Mas, além das cotas, é essencial que haja suporte financeiro, psicológico e acadêmico para garantir que esses alunos concluam seus cursos.
A luta não pode ser apenas pelo acesso, mas pela permanência e pelo protagonismo negro dentro da academia e além dela.

A Universidade como Ponte para o Futuro
Nascer e crescer na periferia impõe desafios que vão além da sobrevivência. Para mim, morador da comunidade Gogó da Ema, em Belford Roxo, a educação foi a chave para romper esse ciclo. Hoje, como Mestre em Antropologia, minha trajetória é marcada por resistência, militância e a luta por justiça social.
O caminho até a universidade foi longo e árduo. Enfrentei seis horas diárias de transporte público, operações policiais frequentes e o medo constante da violência urbana. Para quem nasce na Baixada Fluminense, chegar ao ensino superior não é apenas uma questão de esforço individual, mas de um sistema que historicamente exclui e dificulta o acesso da população negra e periférica.
O ingresso na UFF, por meio do sistema de cotas raciais, foi um divisor de águas. "A universidade abriu portas que eu sequer sabia que existiam", reflete.

Educação e Militância: O Caminho da Transformação
Minha relação com a militância começou cedo. No ensino médio, atuei na União Meritiense dos Estudantes e na luta pelo Passe Livre no Rio de Janeiro. A mobilidade urbana sempre foi um dos maiores desafios para estudantes da periferia, e eu vivi essa realidade na pele. Quando entrei na UFF, essa luta se expandiu para a defesa da permanência estudantil e equidade racial dentro da universidade.
Como pesquisador, participei de projetos de iniciação científica voltados para as políticas de ação afirmativa e suas implicações burocráticas. Acompanhei processos de matrícula de cotistas e integrei comissões de heteroidentificação, analisando como a burocracia pode ser uma barreira adicional ao acesso ao ensino superior.

O Desafio das Cotas e a Construção da Identidade Racial
As bancas de heteroidentificação, criadas para evitar fraudes, trouxeram novos dilemas. O pertencimento racial, muitas vezes subjetivo, se tornou objeto de análise administrativa.
"Para muitos, era a primeira vez que precisavam justificar sua identidade", observo.
A aplicação das cotas não é apenas uma questão documental. Ela carrega um peso histórico: a luta contra o racismo estrutural. Mas a burocracia imposta aos cotistas, como a exigência de uma série de documentos que candidatos da ampla concorrência não precisam, se torna um entrave significativo.
Muitos estudantes sequer têm acesso facilitado a essas documentações, enfrentando processos exaustivos apenas para garantir um direito que deveria ser garantido de forma menos excludente.
A universidade pública ainda é um espaço elitizado, mas os dados mostram avanços. Entre 2010 e 2019, o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%, segundo o IBGE. No entanto, a permanência desses estudantes continua sendo um desafio.
Além das dificuldades financeiras, há barreiras invisíveis, como o racismo institucional, a falta de representatividade docente e a necessidade de um suporte psicológico adequado para aqueles que vivem a pressão constante de provar seu pertencimento nesses espaços.

O Futuro da Educação e da Inclusão
Hoje, como professor da educação básica, continuo minha missão: garantir que a universidade seja um espaço de transformação real para estudantes negros e periféricos. A luta pelas cotas não pode se encerrar na aprovação de uma política, mas deve se estender para garantir que esses alunos concluam seus cursos e ocupem espaços de decisão.
A pesquisa acadêmica tem um papel fundamental nessa batalha. Precisamos continuar documentando e analisando os impactos das ações afirmativas, combatendo retrocessos e propondo melhorias que tornem a universidade mais acessível.
O sonho de me tornar doutor está cada vez mais próximo, e para além do título, ele representa um compromisso com minha comunidade e com todos aqueles que ainda veem a educação como um caminho de resistência e ascensão social.

A mudança precisa ser coletiva. O acesso à educação transforma vidas, mas a luta não pode ser solitária. A universidade precisa se adaptar às realidades de seus estudantes, oferecer suporte e, acima de tudo, reconhecer que conhecimento e resistência andam lado a lado.
Meu objetivo é continuar nessa luta, porque sei que, ao abrir caminhos, outros também poderão trilhar esse percurso rumo a um futuro mais justo e igualitário.
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