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Mais educação, menos instrução: por que precisamos discutir sobre o modelo de educação

Por Coletivo Terral


A mudança causada pela pandemia na rotina dos estudantes e professores em todo país foi visível. No lugar de um ambiente físico, surgiu um espaço virtual que teria, segundo muitos teóricos das metodologias ativas, a possibilidade de maximizar o aprendizado dos estudantes. Entretanto, na prática docente diária, foi perceptível que toda essa empolgação tecnológica apregoada aos quatro cantos muitas vezes não passou de um canto de sereia, tendo em vista que, dentro de um espaço potencialmente disruptivo, as práticas arcaicas de educação foram reproduzidas, adquirindo uma performance ainda mais tradicional. Não houve mudança significativa na aprendizagem, porque a aula instrucionista – que não forma autores, pesquisadores, apenas memorizadores e repetidores – ainda é proeminente nas instituições de ensino. Acabam persistindo sistemas prontos, como caixas educacionais, nas quais o professor, como mero reprodutor de métodos autointitulados ativos, acaba por, em uma infinidade de mudanças, realizar o mais do mesmo educativo perpetuado por décadas na educação brasileira.

É sabido que vários problemas estruturais foram e ainda são detectados nesse novo cenário educacional, já existentes antes e durante a pandemia, a saber: a falta de internet e/ou a sua precariedade na casa de estudantes e docentes; o descaso do governo federal, em especial, em ajudar os estudantes a terem internet em seus lares; o trabalho em excesso de professores e alunos; a pressão sofrida pelos professores por mais produtividade; os casos de ansiedade, depressão e esgotamento mental e cognitivo decorrentes desse período dentre outros. Gostaríamos, entretanto, de direcionar nossa análise para um outro lugar muitas vezes não visto, porque é facilmente encoberto pela dura camada de verniz dada pelo ensino tradicional arcaico e obsoleto de ensino-aprendizagem: a aula instrucionista.

Possivelmente você esteja se perguntando por que razão a aula seria um problema, e não uma solução plausível diante do caos que estamos vivendo. A questão precisa ser colocada da seguinte forma: por quais razões precisamos da aula tal como ela é preconizada nos espaços institucionais? E, se precisamos de aula, de que tipo ela seria? Se formos assistir e participar da maior parte das aulas remotas que estão sendo dadas no país, em geral encontraremos um professor falando e alunos ouvindo. Qual o problema disso? Não seria assim que se aprende? Não é ouvindo o professor/tutor/orientador que os alunos vão aprender a matéria?

Na verdade, há um grave problema nisso. Ensinaram-nos que os saberes formais, consolidados, realmente se aprendem apenas na escola, que nela aqueles recebem tratamento pedagógico-didático necessários para a aprendizagem e que nela aprendemos a estudar – um erro gravíssimo, porque aprender e estudar são ações que praticamos intuitivamente desde a tenra idade, sem haver a estrutura formalizada e instrucional que o espaço escolar tradicional oferece. Mas de que tipo de estudo aqui estamos falando e de que tipo de forma de aprender? Estudar, na perspectiva da instrução, significa ouvir, copiar, memorizar as informações ditas pelo professor ou pela professora e transcrevê-las em uma avaliação escrita, uma prova, com o fim tão almejado de obter aprovação na disciplina. Nesses termos, o conceito-ação de estudar, que também se confunde com o conceito-ação de aprender, significa não faltar aula, ser assíduo, ser um ouvinte atento, ser participativo – mas dentro dos limites do ensino tradicional. No mesmo sentido, as avaliações se transformam em métodos de correção dos aprendizes, a régua pela qual é medida a aprendizagem. Mesmo se tratando a escola de espaço de educação formal, institucionalizada, e ainda havendo outros espaços de aprendizagem construídos em ecologias ou ecossistemas o mais das vezes mais orgânicos, menos formais e, por isso, menos instrucionistas, é o caráter meramente robótico, mecanicista, unidirecional dos espaços formais de educação, como o da escola em tempos de pandemia, que tem "cimentado" a prática de ensino-aprendizagem em termos teleologicamente instrucionais e corretivos: um saber-para, mas um “para” cuja ontologia é tão somente a aprovação, validação, diplomação da correção.

O ensino tradicional é, pois, resultado de sistematizações datadas desde a Idade Média, mas sua didática foi consolidada e forjada aos moldes da sociedade disciplinar, típica do século XIX, após a Primeira Revolução Industrial desenvolvendo a urbanização e conseguinte processo maciço de escolarização das grandes cidades europeias. É importante situar a conjuntura social e política para compreender esse fenômeno: para o contexto da sociedade disciplinar e das políticas de dominação dos corpos (como ressalta Foucault em seus estudos sobre novas formas de governamentalidade e biopoder/biopolítica), a educação tradicional foi uma proposta disruptiva e bastante inovadora. Concebendo a educação como repasse do conhecimento desenvolvido em cascata, havia, portanto, método definido, tampouco didática. O método tradicional, naquele contexto, trouxe a construção de um paradigma moderno, tal qual a introdução das máquinas à vapor na construção de produtos têxteis. As formas disciplinares de poder, como nesse tipo de escola, contudo, não desapareceram na passagem dos séculos XX e XXI, mesmo com tentativas de superá-las, mas antes se colocaram como camadas adicionais de regulação dos corpos, ao pôr em funcionamento a amplificação do instrucionismo.

Se pensarmos todos os desdobramentos técnicos, científicos e epistemológicos, a escola se manteve como uma tecnologia de época. A escola, numa perspectiva tradicional, é a reprodução de um modelo esgotado em si, que reproduz um condicionamento psicossocial de dois séculos passados. A questão central do debate é: apesar de toda inovação tecnológica, na educação prevalece a mesmice de compreensão da construção do conhecimento ainda vigente. O tradicionalismo é uma prática anacrônica, que não leva em consideração diversos contextos de ensino e aprendizagem. Pior que isso, com a ascensão da tecnologia, uma compreensão reflexiva recuou mais ainda: o novo tecnicismo criou pacotes prontos de modelos educacionais replicáveis, tais como uma comida "fast food". Quando se degusta, o gosto é artificializado, repetido, sem o verdadeiro sabor de comer - e aqui, de educar.

Relevante notar que, em momento algum, foi colocado em foco a aprendizagem do estudante e do professor (sim, ele ou ela aprende durante o processo, negar isso é assumir a ideia de que o docente deve apenas transferir informação). Mais ainda: repare que não foi dado destaque para qual tipo de educação queremos para a nossa população. O que basta nesse modelo de ensino é dar conteúdo para dizer que aquilo foi visto em sala e, mais à frente, ser cobrado e mensurado com o intuito de dar uma nota e parametrizar os aprendizes. Criam-se, desse modo, formas programadas de hábito e repetição.

E qual o real valor dado para a aprendizagem? Aparentemente nenhum. O mercado e as escolas preparatórias para vestibulares convenceram a sociedade de que a melhor escola ou faculdade para estudar é aquela que faz o estudante passar em um processo seletivo; é preciso deixar muito claro, entretanto, que educar não se limita a essa pequena parte de um todo um processo complexo que é formar alguém para a vida, a cidadania, o trabalho, a política, os direitos humanos, dentre outras dimensões da vida humana e não humana. Sim, você leu corretamente: não humana. Porque não há como acreditar que nós, humanos, nos bastamos e que o planeta Terra, por exemplo, está ao nosso bel-prazer.

Uma forma de deformar o estudante, e por consequência sua família e a sociedade, é enchê-lo de aula, uma após a outra: de 7h às 12h45, de 13h às 18h45, se quiser à noite também, o freguês escolhe. Só não pode escolher tempo para imaginar, pensar, pesquisar, transgredir, romper ideias, isso a escola não pode oferecer, já que a interatividade possivelmente latente que o espaço oferece circunscreve o aprendiz a uma habituação a um conjunto de rotinas e tarefas cuja finalidade nunca é a longo prazo, como um objetivo crítico-reflexivo de transformação do indivíduo pelo conhecimento. Aula, nessa concepção bancária, como dizia Paulo Freire, significa estar exposto a ouvir alguém, o aluno pode até falar, mas não muito, porque atrapalha a aula, e aula é tempo, e tempo é dinheiro, e dinheiro é o que importa no capitalismo. É a economia aplicada à educação: uma acumulação primitiva de conteúdos que serão investidos em determinados momentos-chave para o estudante, que almeja alguns objetivos utilitários - o sucesso em processos seletivos, cada vez mais exigentes e excludentes. Sabe-se cada vez mais para aplicar determinado tipo de informação aplicada (construção de meros conhecimentos de técnicas de realização de provas) cada vez mais complexas. Neste sentido, a educação serve mais à imposição de comportamentos homogêneos, habituais, predispostos a objetivos mercadológicos, transformando-se em forma de controle direto sobre os indivíduos. Como diria Jonathan Crary, a respeito das modalidades de ação 24/7 (“24 horas por 7 dias” da semana), típicas do capitalismo pós-fordista, a pretensão de valorizar a educação e a participação cívica, crítica, reflexiva, muitas vezes se esgota na medida em que a cidadania, o protagonismo e a agência do aprendiz são suplantadas pela condição de espectador e do professor, pela de transmissor.

Por onde andará a (co)criação, a justiça social, a inventividade, a proteção ao meio ambiente, a imaginação, a consciência cidadã, a participação política no processo de educar alguém? Nesse tipo de escola não há espaço para isso nem nunca haverá. Para os tecnocratas da educação, isso não interessa, o que vale, de fato, é saber se o estudante vai acertar as questões das provas e, assim, fazer daquela escola uma referência nos números governamentais.

Nesse sistema, como se pode ver, o que importa é dar e receber aula, e muita aula. Entupir os sentidos dos estudantes até estourá-los. Exaurida: é assim que uma criança do 1º ano do ensino fundamental já começa a se sentir quando inicia a vida enquadrada nas escolas. É bastante comum as crianças desse período reclamarem que a escola deixou de ser um espaço de alegria para um ambiente de tédio em que se copia, soletra, conta. O que a escola fez com a curiosidade científica das nossas crianças? O que a escola fez com a arte? Além do mais, se desaprende a ter um conhecimento espontâneo e livre e se inicia a “catequização” em categorias e cosmovisões fechadas, herméticas e não contraditórias. Mas o que é a vida sem a contradição? Paulo Freire indaga que o diálogo pode ser comunicativo, mas também dialético e epistêmico, além de ser um sintoma saudável de sociedades democráticas e não autoritárias. A curiosidade infantil pode se tornar a curiosidade epistêmica. E caminhos diversos não se coadunam no instrucionismo. Há apenas um, e aquele é o único possível.

Já podemos vislumbrar como esse estudante chegará no ensino médio. Possivelmente sua cognição estará completamente deformada, imaginando que aprender se resume em duas ações: ouvir alguém falando por horas e horas e saber demonstrar o que ouviu e leu em testes padronizados de larga escala para passar nas provas. Será que saber pensar se tornou "démodé"? Essa mentalidade mudará nos quatro ou mais anos de universidade? Possivelmente não. A não ser que ele encontre docentes comprometidos com a sua educação e aprendizagem, o que significa tornar o aprendiz em alguém curioso que pesquise e produza conhecimento, e não apenas deposite informações descobertas por outros cientistas nas provas.

E aqui fica a pergunta: onde está a produção de conhecimento da escola? Certamente ali não se constitui apenas como um ambiente para se assimilar conhecimento morto, consolidado; mas, sobretudo, para dar continuidade ao que já foi descoberto por outros inventores, pesquisadores e cientistas. Não se assiste a aulas apenas para ficar repetindo e memorizando o que foi descoberto; assiste-se a aulas para continuar criando, errando, imaginando, inventando como todo e qualquer aprendiz faz; no entanto, nesse tipo de ensino instrucionista, não há espaço para invenção, para a construção em conjunto de novas formas de existências. A escola é uma preparação para desafios futuros, e não apenas entendimento de desafios já passados, debatidos e institucionalizados. É fundamental ter espaço para a criação genuína, para a criatividade de construção de óticas das múltiplas realidades dos viventes. O pensamento enciclopédico é bom, mas inócuo e por muitas vezes sem sentido para o preenchimento de questionamentos éticos, existenciais e dos devires que a vida nos coloca.

Enquanto tivermos escolas, institutos, faculdades e universidades com a mentalidade "auleira", não teremos espaço para inventividade, pesquisa, curiosidade nem para desenvolvimento de pensadoras e pensadores em nosso país. Serão apenas espaços de treinamento, normalização e acumulação de conhecimentos. Apenas curadoria de conteúdos que, com o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial e de algoritmização da educação, em breve o professor pode ser substituído por plataformas interativas com os estudantes, distribuindo conteúdos e instruindo de forma bastante eficaz, dentro deste modelo tradicional-instrutivo-tecnicista.

Nesse sentido, é que nós, do Coletivo Terral, acreditamos que não é necessário preencher os estudantes com aulas instrucionistas em nossos ambientes de aprendizagens, solapando o espaço, enquanto lócus de construção do conhecimento, pelo tempo (quanto assiduidade e tempo na aula, melhor); precisamos, sim, de espaço e tempo para estudo, imaginação, pesquisa, produção, autoria docente e discente, interação, tudo isso visando tendo o bem comum. Como se pode ver, portanto, educar vai além de ensinar e aprender. Educar é um processo mais amplo. Educar é, por exemplo, cuidar para que cada um, humano ou não, se sinta parte da trama da vida.


Revista Menó, nº. 3/2021 (out/nov/dez).

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