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Territórios indígenas em território cearense

Por Ronaldo de Queiroz Lima


Apresento aqui informações sobre os territórios ocupados por diferentes povos indígenas no Estado do Ceará. Tanto dados primários como secundários produzidos e colhidos, respectivamente, ao longo dos anos de 2016 e 2017, apontam para quantidade significativa de povos indígenas cearenses.

Segundo o Sistema de Atenção à Saúde Indígena (SIASI) – Distrito de Saúde Especial Indígena (DSEI), Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SEASI), Ministério da Saúde (MS) - a população indígena que tem cadastro no DSEI/CE soma trinta e duas mil, quatrocentos e trinta e quatro pessoas de ambos os sexos e das diferentes faixas etária.

Há hoje no Ceará 14 povos organizados no movimento indígena. Essa é uma categoria nativa chave mobilizada por lideranças indígenas que administram o parâmetro de incorporação e participação nesse movimento social de minorias étnicas. Esta categoria modula inclusive a posicionalidade entre lideranças, o que é proporcional ao tempo de dedicação a causa indígena. Além disso, as lideranças indígenas classificam e organizam os grupos que expressam consciência como indígenas e que se dispõem a esta mediação. Isto se dá a partir da agência de associações indígenas de atuação estadual e da coordenação colegiada de juventude indígena: Federação dos Povos Indígenas do Ceará (FEPOINCE), Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (AMICE), Coordenação da Juventude Indígena do Ceará (COJICE), Organização dos Professores Indígenas do Ceará. Hoje, essas são as formas organizativas do movimento indígena do Ceará, as quais são agentes em termos de ideologia, agenda política e ações de defesa dos direitos dos povos indígenas cearenses.

Os territórios ocupados por indígenas do movimento indígena estão localizados em 19 municípios cearenses. A seguir a configuração município/etnias: Acaraú/Tremembé; Aquiraz/Jenipapo-Kanindé; Aratuba/Kanindé; Boa Viagem/ Potiguara e Tubiba-Tapuia; Canindé/Kanindé; Caucaia/Tapeba e Anacé; Crateús/ Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Tupinambá e Kariri; Itapipoca/Tremembé; Itarema/Tremembé; Maracanaú/Pitaguary; Monsenhor Tabosa/Potiguara, Tabajara, Gavião e Tubiba Tapuia; Novo Oriente/Potiguara; Pacatuba/Pitaguary; Poranga/Tabajara e Kalabaça; Quiterianópolis/Tabajara; Carnaubal/Tapuia-Kariri; São Benedito/ Tapuia-Kariri; São Gonçalo do Amarante/ Anacé; Tamboril/ Potiguara.

A configuração de termos município/etnia no Estado do Ceará reflete a linguagem de lideranças indígenas cearenses que classificam cada povo em termos de etnia por município. No entanto, em termos demográficos, a etnia, neste contexto, significa uma predominância. Por exemplo, os Potiguara estão nos municípios de Monsenhor Tabosa, de Novo Oriente e de Crateús. No entanto, há Potiguara nas áreas indígenas em Aquiraz e Caucaia. Há Potiguara também no município de Caucaia morando com o povo Anacé. O Povo Indígena Tapeba ocupa território no município de Caucaia, no qual há indivíduos desse povo que residem em Quiterianópolis, Itapipoca e Maracanaú. Situação similar acontece com uma família Tremembé que vive no município de Aquiraz com o Povo Jenipapo Kanindé. As áreas indígenas ocupadas pelo povo Tremembé estão nos municípios de Acaraú, Itapipoca e Itarema. Estes exemplos não são a completude da realidade dos territórios indígenas cearenses, mas demonstram que a relação etnia/município não é absoluta.

Há áreas indígenas cuja regularização é requerida por mais de um povo. É o caso da Terra Indígena Serra das Matas onde vivem os Povos Potiguara, Tabajara, Gavião e Tubiba-Tapuia, cujo território está localizado nos municípios de Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa viagem. Parte desta área indígena está na zona urbana de Monsenhor Tabosa e é denominada pelas lideranças como periferia. Há também área indígena urbana no município de Crateús que também é nomeada pelas lideranças como periferia e é ocupada por cinco Povos Indígenas: Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Tupinambá e Kariri.

O fenômeno da multiplicidade étnica em territórios indígenas cearenses se dá, na maioria dos casos, pelo casamento interétnico. Por outro lado, o compadrio também é um fator importante que gera migração interétnica. Os territórios indígenas no Ceará são multiétnicos tanto em função do casamento como do compadrio.Por outro lado, o movimento indígenado Ceará compõe uma unidade cosmopolítica por meio de vínculo construído historicamente entre lideranças de diferentes gerações. Essas pessoas indígenas se vinculam à medida que vivenciam a experiência promovida pela agenda do movimento social do qual fazem parte. Os dois principais eventos são A Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará e a Marcha pela Terra. A perambulação – movimentação - (INGOLD, 2015) das lideranças indígenas para os territórios indígenas e para diferentes arenas de poder do território cearense possibilita a construção social do vínculo interétnico. Este é reificado e atualizada a cada novo ano de atividades.

A espiritualidade indígena é um fator importante na geração do vínculo interétnico a partir da experiência gerada pelas organizações do movimento indígena do Ceará. Não é raro observar a invocação de encantados relacionados à Jurema, ao Mar, às Matas durante a execução do ritual sagrado do Toré que acontece em quaisquer atividades desse movimento social. Os encantados são não-humanos significados como biomas onde vivem os indígenas e como seus antepassados, que podem reencontrar seus parentes no presente da luta indígena por meio da dança ritual do Toré. Esse reencontro funde passado e presente, diferentes Povos Indígenas cearenses, reifica o vínculo interétnico numa temporalidade ritual própria, a qual é orientada para fortalecer a resistência indígena diante das violações de seus direitos e a presença multiétnica nas arenas de poder do território cearense. Esta análise pode também servir para se pensar configurações multiétnicas noutros territórios. Porém, é possível dizer que no caso do Estado do Ceará, a prática cosmopolítica dos Povos Indígenas cearenses é multiétnica e a sua forma organizativa é reflexo disso.

As lideranças indígenas do presente desenvolvem articulações próprias de cada etnia/município, as quais são cosidas com os fios das relações multiétnicas, casamento, compadrio, vínculo cosmopolítico. Essa realidade pluriétnica possibilita a vida social de diferentes movimentos. Passo a apresentar os agentes da cosmopolítica indígena nos diferentes territórios indígenas no território cearense.

No município de Monsenhor Tabosa há o Movimento Potygatapuia e o Conselho Político Tabajara, na zona rural, e o Movimento Potijara, na zona urbana. O movimento promovido pelo Conselho dos Índios Tremembé de Almofala (CITA) através de seus delegados costura articulações por meio do cacique e do pajé junto a lideranças na terra do aldeamento de Almofala e nos territórios Tremembé Córrego João Pereira, em Santo Antônio e Camundongo, todos esses no município de Itarema, e em Queimadas, no município de Acaraú. Os Tremembé da Barra do rio Mundaú têm articulação independente das anteriores e não legitima a figura do cacique e do pajé.

O Povo Tapeba movimenta-se a partir das lideranças indígenas que compõem a Associação das Comunidades Indígenas Tapeba (ACITA), a qual articula 14 das 17 comunidades indígenas no território Tapeba no município de Caucaia. O Povo Pitaguary se movimenta através de quatro caciques, um pajé e de lideranças nas aldeias dos municípios de Maracanaú e de Pacatuba. O povo Jenipapo Kanindé se articula através de três caciques mulheres e um pajé no território indígena denominado como Lagoa da Encantada. O povo Anacé da Japuara e Santa Rosa, em Caucaia, se articula através de dois caciques, enquanto os Anacé de São Gonçalo somente com lideranças.

O Povo Indígena Kanindé se movimenta a partir do cacique e das lideranças da aldeia Sítio Fernandes em Aratuba e da aldeia Gameleira em Canindé. Em Crateús, na periferia, há cinco povos que se articulam através de caciques, pajés e lideranças, coletividade essa que também exerce o domínio sobre território indígena rural nas aldeias de Mambira e Nazário. Os Tapuia-Kariri, nos municípios de Carnaubal e São Benedito, movimentam-se através da caciqua, do pajé, e de lideranças. Os Tabajara e Kalabaça de Poranga, movimentam-se a partir de seus respectivos caciques, pajés e lideranças.

É possível dizer que o movimento indígena do Ceará move-se a partir das perambulações de caciques, pajés e lideranças nos territórios indígenas cearenses – nas aldeias e comunidades indígenas. Parte importante disso é a logística necessária ao deslocamento e comunicação entre os agentes desse movimento social, quando se aciona as associações indígenas, os conselhos indígenas e até mesmo as Escolas Indígenas.

Por outro lado, em diferentes arenas de poder no território cearense, os agentes da cosmopolítica do movimento em tela desempenham diferentes funções na interlocução com servidores e autoridades do Estado brasileiro. Exemplo disso são os agentes indígenas de saúde indígena, o de endemias, os conselheiros locais e distritais de saúde indígena, como também a representação no conselho nacional de saúde indígena; os conselheiros das escolas indígenas, os delegados das conferências de educação escolar indígena; os membros do grupo interinstitucional de educação escolar indígena (em transição para ser um comitê estadual de educação escolar indígena); os membros do comitê de política cultural para povos indígenas, instância da Secretaria de Cultura do Ceará (SECULT); No campo da educação diferenciada os professores indígenas, gestores e servidores; Lideranças indígenas representantes movimento indígena do Ceará junto à Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA); no campo do poder público municipal, o exercício do controle social em conselhos municipais de diferentes áreas, como educação, saúde, cultura e agricultura.

Há também a relação histórica entre indígenas e sindicatos rurais, partidos políticos e instituições religiosas de diferentes orientações que também diz sobre a perambulação dos agentes da cosmopolítica dos Povos Indígenas cearenses em território cearense e até mesmo no território nacional. Essa movimentação é constitutiva dos agentes do movimento indígena do Ceará, e por isso influencia na cosmopolítica dos indígenas que exercem liderança. Outro fator importante desse movimento social é a influência exercida por um Povo Indígena sobre outros. Os povos Tapeba, Tremembé, Pitaguary e Jenipapo Kanindé influenciam de modo significativo a forma de organização dos demais povos. Atualmente, o Povo Indígena Tapeba é a principal influência cosmopolítica no movimento indígena do Ceará.

Então, a perambulação dos agentes da cosmopolítica dos Povos Indígenas do Ceará que se dá nos territórios indígenas, no território cearense e até no território nacional através de relações com servidores e autoridades do poder público municipal, estadual e federal, é o que constrói o vínculo pluriétnico capaz de movimentar as aldeias e comunidades indígenas cearenses. Os territórios indígenas cearenses também são plurais em função do casamento e do compadrio interétnico. A cosmopolítica dos Povos Indígenas cearenses reflete a realidade social multiétnica. A pluralidade se dá também em relação aos agentes da cosmopolítica, cacique, pajé e indígenas que exercem liderança em suas aldeias e comunidades, como também em relação às diferentes funções que podem ocupar na relação com o Estado brasileiro, tais como agente de endemias e professor, por exemplo. Esta relação de poder, ora de equilíbrio, ora de subjulgação, está muito para além do órgão indigenista legal.

A vida social dos territórios indígenas cearenses se dá na vivência de experiências multiétnicas, as quais refletem na cosmopolítica do movimento indígena do Ceará. A meu ver, esta é a característica principal que torna este movimento social permanentemente ativo mesmo diante da realidade imposta pelo Estado brasileiro de apenas um território indígena ter sido regularizado, no território cearense. Isto implica nas políticas públicas de etnodesenvolvimento, de saúde, de educação, de proteção e conservação do ambiente necessário à vida desses povos no presente e no futuro.

As informações sobre as áreas indígenas no Ceará que foram requisitadas a regularização fundiária são do ano de 2015, salva a situação da Terra Indígena (TI) Tapeba. Esse conjunto de dados apresenta 26 demandas, organizadas por ordem cronológica. Desse conjunto, 23 áreas são reclamadas por povos indígenas que estão vinculados ao movimento indígena do Ceará. Esse último número expressa a força organizativa do movimento indígena na luta pela demarcação de suas terras no Ceará.

A morosidade na demarcação de terra indígena não é um processo exclusivo do Ceará, segundo lideranças indígenas, mas nesta unidade federativa está o caso emblemático desse atraso. O caso Tapeba, em 2017, foi levado para a Organização dos Estados Americanos (OEA) pela Defensoria Pública da União. Isso porque naquela ocasião havia um atraso de trinta e três anos. As consequências da morosidade em se demarcar terras indígenas são inúmeras, o que merece um texto a parte. Todavia, esse atraso intensifica conflitos fundiários entre indígenas e não indígenas, inviabiliza a proteção do ambiente necessário à reprodução física e cultural dos grupos, coloca as áreas indígenas em indefinição de jurisdição no que se refere à segurança pública, como também deixa vulnerável à grandes empreendimentos, para além da insegurança alimentar.

A intenção em se construir uma tabela que forneça o ano de início da demanda por demarcação e a sua situação fundiária atual é para tornar explícita a realidade de violação do direito originário sobre a terra que tradicionalmente ocupa um dado povo indígena – o território indígena.

O texto constitucional garante que as demarcações de terras indígenas devem acontecer em cinco anos, contados da data de promulgação daquele[2], o que nos fornece um parâmetro para avaliar cada um dos casos acima. Retirando as demandas sem providências, o tempo menor de morosidade é de 8 anos em procedimentos que estão em fase preparatória. O caso de maior morosidade ultrapassa três décadas. O povo Tremembé de Almofala aguarda uma decisão de primeira instância há 22 anos. Além do caso dos Potiguara de Paupina, não há impedimentos legais aos demais casos que não têm andamento. Por fim, há uma terra indígena homologada que teve 11 anos de procedimento administrativo, TI Tremembé Córrego do João Pereira, e uma Reserva Indígena, reserva Taba dos Anacé, que aguarda publicação do resumo do Relatório de Criação no Diário Oficial da União e demais registros oficiais, o que já dura 16 anos.

Não há na razão jurídica ou na razão administrativa justificativa para a morosidade na demarcação de terras indígenas descrita na tabela acima. Fora da razão jurídica e administrativa, na análise do processo histórico no qual está inserido o conjunto de demandas por áreas indígenas no Ceará contemporâneo se encontram outros fatores de explicação da violação ao direito originário à terra indígena tradicional como às outras modalidades de áreas indígenas.

A elite econômica brasileira exerce forte pressão contra a regularização fundiária de territórios indígenas. É a bancada dos ruralistas, juntamente com os seus aliados, quem vem exercendo pressão política contrária à demarcação de terras indígenas e a favor da ampliação da exploração mineral em territórios indígenas. Uma quantidade significativa de projetos de lei, de emendas constitucionais, de portarias e de resoluções produzidas pelo poder legislativo, executivo e judiciário nacional demonstra um plano de ações anti-indígena. Isso significa que a questão étnica em nosso país não só é negligenciada, tornada menor, mas inadmissível para essa elite ruralista, assim como é a posse indígena de terras tradicionais e outras modalidades de terra.


Referências:

INGOLD, Tim. 2015. “Terra e Céu”. P.215-229 In: _______Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. São Paulo, Editora Vozes.

Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará (DSEI-CE).


[1] Transcrição do enunciado do documento: “Solicitante: Representante da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão no estado do Ceará. Ementa: Estado Atual das Demandas Referentes à Demarcação de Terras Indígenas no Estado do Ceará”. [2] Ver artigo 67 em Ato de Disposições Transitórias.

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