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Gosto ruim na boca

Por Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho


Toca o despertador e começa mais um dia. Dispara alto: Trim, trim, trim! O som era análogo a um desses toques de telefone antigo, o mais estridente possível, para impedir o corpo de continuar prostrado. Era impossível continuar dormindo...


Salto da cama, desligo o despertador na escrivaninha e vou ao banheiro. O ritual começa com uma cagada, depois direto para o banho, sem escalas. Arrumar o cabelo na frente do espelho e, por último, escovar os dentes. Quase todos os dias são iguais: defecar, banho, cabelo e dentes. Com exceção de alguns dias de rotina quebrada, que por coincidência ou não são quase todos desagradáveis.  


Seguir a rotina é o primeiro passo de um “bom dia”, caso seja mesmo possível para um trabalhador brasileiro ter um dia bom. Rotina é sinônimo de sobrevivência, você acorda e já está no trabalho. Fazer isso ou aquilo, tempo pra isso ou aquilo, tarefa cumprida, próxima tarefa. Melhor se resignar logo cedo já que é algo inevitável.


Que horas são? Hora de sair! hora de sair, sair, sair, sair! O alarme mental dispara: atrasado! Atrasado! Atrasado! A rotina estafante faz isso. Você não pensa, não pode pensar. Produzir, produzir. Repetir, repetir. Tempo é dinheiro, ou melhor: Time is money! Dinheiro para quem? Para mim que não é...


Transformar absolutamente tudo em número. Esse é o resumo da essência da vida capitalista contemporânea. Uma esquizofrenia numérica sem precedentes na história. Nós, contemporâneos, trilhamos por mares nunca dantes navegados, perdidos, vagando por correntes ruins e passando por longas tempestades.







Antes de sair vou a cozinha e bebo água, raramente como alguma coisa, às vezes uma fruta ou um pão, mais nada. Saio de casa, chego ao portão e abro. Dou de cara para rua, tomo fôlego e encaro esse rio caudaloso e bravio chamado cotidiano, que arrastando tudo em seu caminho. É hora de cair no mundo novamente. Ganho a rua e andando rápido. Logo já estou no fluxo. O relógio voa de manhã: 06:00, 06:03, 06:07, 06:19.


Chego ao ponto de ônibus, que já está tomado por uma multidão. Começam a chegar os coletivos, todos cheios, lotados, abarrotados de gente. Verdadeiras latas de sardinha. Sardinhas humanas. Porra! Nunca eu tive sorte de morar no ponto final e pegar o ônibus vazio. Poderia até escolher o lugar... Não é o caso.


Lá vêm o busão voando baixo no horizonte. Os carros passam zunindo na pista. Nessa hora o trânsito começa a se avolumar, mas não há engarrafamento. Ao menos aqui ainda não. Fica a esperança neurótica de o ônibus chegar o mais rápido possível para ir até o trabalho sem engarrafamento. Esperança é esperar. Esperança é a última que morre, mas morre, como tudo na vida.


Meu ônibus chega no ponto e o motorista freia em cima, dando uma quinada à esquerda para encostar na calçada. O veículo passa a um palmo da minha cara. Eu, imóvel, continuava dormindo em pé. Tchix, tchix, tchixxxx... Faz o freio a ar do ônibus.

Lá dentro os passageiros, amontoados, se seguram para não cair com o tranco brusco. Balançam para frente e quase caem um por cima uns dos outros. Como carne amontoada rolando em caminhão de frigorífico.


Abre a porta num estampido surdo: tum! Seguro a alça do lado de fora e subo. Os passageiros de dentro me olham feio. Consigo até ouvir suas vozes mentais: “Mais um desgraçado. Essa porra vai lotar mais!”. Na verdade, eu também pensaria isso. Todos dentro do ônibus pensam. O clima não é amistoso num coletivo, é disputa de território.







Quando passo a roleta sinto aquele bafo quente, cheiro de gente, perfume suor e catinga, tudo misturado. Saio me esfregando, empurrando e esbarrando em todo mundo. Me acomodo numa das frestas entre a pilha de corpos enfileirados. Acomodado, resta torcer para não entrar mais ninguém e chegar logo no destino. Mas o ônibus para a cada ponto e logo se mete em um grande engarrafamento.


 Anda, para, anda, para. Cada acelerada um solavanco, cada parada um tranco, num processo rítmico de tortura até o destino. Finalmente, chegou meu ponto! Faço sinal e atropelo todo mundo pela minha frente. Alguém grita lá atrás: Ow! Toma cuidado! Eu simplesmente continuo até sair num alívio, como alguém com prisão de ventre que finalmente consegue cagar. Quando saio, minha mão está dormente de segurar as barras de ferro do ônibus.


Chego no trabalho e a primeira coisa que o chefe diz: está atrasado! Olha com um cara feia, como se eu fosse um ladrão de horas. Como se tivesse planejado tudo aquilo, ou estivesse aproveitado aquela maravilhosa viagem no coletivo a caminho do trabalho.


Então, começa uma vigilância constante a cada passos, cada movimento um olhar julgador, um olhar de desdém. Cada comentário um fora, uma ameaça velada, uma chibatada. Eu simplesmente me concentro no trabalho e continuo até toda aquela tortura acabar. Faço a mesma coisa que fazia quando apanhava de meu pai: respirava fundo e suportava tudo calado até a fúria covarde dele terminar. Quando a tortura termina, ao final do dia, é hora de ir embora. Ao sair a última chibatada: chegue no horário amanhã, se não estará demitido!




Quando saio, nem lembro do que fiz ou do que aconteceu, só fica um gosto ruim na boca, parecido quando se come algo podre ou azedo, como o gosto ácido do vômito. O tempo no trabalho é como um dreno de vida, você é sugado e sai apenas o bagaço. Pouco do que acontece ali vale realmente a pena. E seu cérebro simplesmente te faz esquecer para que você possa sobreviver mais um dia. Como quando passamos por um trauma.


Hoje foi um dia especialmente ruim... Não me lembro de nada! Só me lembro de querer ir embora e disso finalmente acontecer ao final de tudo. Sabe, tem que ter fôlego para aturar os dias como trabalhador. É como se uma onda imensa viesse em sua direção, ela está quebrando e exige um mergulho fundo. Tome fôlego! E logo vem outra e outra, sem parar.


Assim são os dias de trabalho, vividos uma a um, torcendo para acabarem. Até que cheguem o fim de semana ou um feriadão, desses que emendam de quinta à domingo.  Haaaa... Sextou!

A esses dias devo deliciosos momentos de ócio. Um ócio tedioso, improdutivo e alienante. O corpo de molho do açoite semanal, imóvel por horas, mas a mente que não sai do trabalho e continua no mesmo ritmo, no mesmo nível de atenção. Televisão, computador, celular ou mercado. O último mais raro, pois custa caro. Mesmo assim, todos melhores que trabalhar!



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