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Disputar a universidade é arrombar a jaula do olhar branco

  • Foto do escritor: Pivete
    Pivete
  • 22 de mai.
  • 5 min de leitura

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Entrar numa universidade sendo uma pessoa negra, periférica, com uma trajetória marcada por escassez e resistência, é uma das experiências mais complexas que se pode viver. É um ato de coragem, de ruptura — mas também de dor. O peso não está só nas matérias, nos textos difíceis, nas normas da ABNT. O peso está no olhar. No silêncio. Nas ausências.


Porque a nossa falta de representação não é acaso. É projeto.


Como escrevi certa vez: “olha para o espelho, e veja o significado de potência”.
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O problema é que, por vezes, esse espelho nos é negado — ou melhor, é distorcido. Quando finalmente nos olhamos, a imagem já está atravessada por um discurso que nos reduz, que nos encaixa em um molde de dor, de ausência, de fracasso. A estrutura nos faz duvidar de nós mesmos.


E é aí que o afropessimismo entra. Mais que um sentimento, ele é uma chave analítica potente — ainda que desconfortável. Frank Wilderson III, um dos principais nomes dessa corrente, nos provoca com a ideia de que o mundo moderno é estruturado a partir da anti-negritude — ou seja, de que a posição social do negro é constituída não pela exploração (como acontece com outros grupos), mas pela exclusão ontológica. O negro não é sujeito dentro da estrutura. Ele é estrutura. Sujeito, mas só para sofrer. Só para morrer.


Assustador? Sim. Mas é necessário ouvir.
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O afropessimismo não é um convite à rendição. É um convite à radicalidade. À coragem de nomear o mundo como ele é — violento, racista, colonial — e, a partir disso, entender por que tantas vezes sentimos que a vitória é impossível, que o pertencimento é uma farsa, que o reconhecimento sempre vem com uma condição. Essa sensação de nunca ser o suficiente não é sua culpa. É sintoma de um projeto de desumanização sofisticado, que começa na história e se desdobra na política, no ensino, no amor, na estética.


E aqui voltamos à universidade.


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A universidade como vitrine e jaula


Quando uma pessoa negra entra na universidade, ela não entra sozinha. Carrega a família, a comunidade, os amigos, as histórias interrompidas dos seus — e carrega, junto, o olhar desconfiado de quem não a esperava ali. A universidade, como instituição, não foi feita para nós. Foi erguida a partir de uma lógica branca, eurocentrada, patriarcal e elitista. Seu modo de funcionamento ainda opera por esses parâmetros, ainda que muitas de suas fachadas tenham mudado.


Cida Bento nos ajuda a entender como a branquitude estrutura seus espaços para se proteger. Ela chama atenção para o fato de que os mecanismos de exclusão não são necessariamente conscientes — são práticas naturalizadas, sedimentadas, que garantem que o poder continue concentrado nas mesmas mãos. Não se trata de um plano maquiavélico, mas de uma série de escolhas cotidianas que excluem e moldam quem chega.


Na universidade, isso se revela de muitas formas: no currículo que ignora autores negros e indígenas; nas bancas que deslegitimam pesquisas com epistemologias outras; nos professores que enxergam “militância” onde há crítica; nos editais que não acolhem os nossos temas. A estrutura não se dobra com a nossa chegada — ela tenta nos dobrar. Nos domesticar.

Mas aí é que entra a resistência.

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Carolina, Fanon e a disputa do discurso


Outro dia eu disse como a leitura de Casa de Alvenaria, de Carolina Maria de Jesus, me fez repensar o lugar simbólico que reservam para ela. Quarto de Despejo virou best-seller, sim. Mas sob qual lente? Sob o olhar branco que consome a dor negra como espetáculo, como entretenimento, como produto. Carolina virou vitrine. A negra sofredora que escreve bem. Que bonito, que sensível. Mas só até aí.


Em Casa de Alvenaria, Carolina rompe com esse lugar. Ela já não escreve só sobre a fome e o lixo — escreve sobre o racismo, sobre o mundo literário, sobre sua raiva e seu incômodo por não ser lida como intelectual. E aí, claro, é esquecida. Porque o mercado editorial, a crítica e a memória coletiva preferem a Carolina domesticada. Não a Carolina complexa, crítica, revoltada.

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Frantz Fanon já havia alertado, em Pele Negra, Máscaras Brancas, como o olhar do branco define os limites da nossa existência. Fanon nos lembra que, no contexto colonial, a identidade negra é forjada na negação — é a ausência de espelho. Ou melhor, um espelho quebrado, que reflete a imagem que o colonizador quer ver. Daí a importância de criarmos outros modos de olhar. Outras gramáticas.


Asad Haider, em Armadilha da Identidade, aponta que o simples reconhecimento das identidades não basta. Celebrar a diversidade não muda a estrutura. Pelo contrário: pode virar performance vazia. Uma vitrine de pluralidade que esconde o fato de que os espaços continuam os mesmos, com as mesmas regras e os mesmos donos. Haider nos lembra que é preciso desestabilizar, tensionar, criar outras lógicas.


Porque, do contrário, caímos na armadilha: ganhamos voz, mas continuamos falando do mesmo lugar de subalternidade simbólica.
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Cria que Cria: o que criamos a partir do impensável


E aí vem o paradoxo bonito da nossa existência. Porque, mesmo atravessados por tudo isso — o pessimismo, o racismo estrutural, o epistemicídio —, a gente resiste. Mais do que isso: a gente cria. E o que a gente cria desafia o mundo.


Quando vejo jovens negros e negras entrando na universidade, sendo os primeiros da família, fundando coletivos, tensionando bancas, fazendo pesquisa sobre o que realmente importa para eles, sinto que estamos fazendo mais do que ocupar um espaço. Estamos refazendo ele.

Mesmo quando sentimos o cansaço, a solidão, o peso das estatísticas, a sensação de que não há saída — seguimos.

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Somos potência. Não por romantismo, mas por prática cotidiana de reinvenção. Por fazer do impossível um ponto de partida. E isso, por si só, já é desorganizar o mundo.

Afinal, o que seria da história da arte, da literatura, da sociologia, da música, da ciência brasileira sem a contribuição negra? A gente sempre esteve ali — mesmo que nos empurrassem para o rodapé da página.


Rasgando a jaula: identidade como gesto radical de liberdade


O desafio agora é outro. Não basta entrar. É preciso virar espelho. Rasgar o molde. Reescrever os papéis que querem atribuir a nós.


Como diz Fanon: “cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.”
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A nossa missão não é só ser representado. É ser irrepresentável nos moldes que criaram para nos controlar. É nomear o mundo com a nossa voz — e não com a voz que esperam que a gente tenha.


O afropessimismo pode nos dizer que a estrutura é sólida. Mas a nossa história mostra que nós somos movimento. Somos griôs, somos poesia, somos dados e estatística, somos artigo e papo reto, somos silêncio e grito. Somos tudo o que não conseguiram apagar.

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E a universidade, por mais elitista e racista que ainda seja, também é território. Território de disputa, de desobediência, de criação. A cada tese que nasce na contramão do cânone, a cada aula dada por um professor negro que se recusa a reproduzir o modelo colonial, a cada pesquisa feita com o povo — e não apenas sobre o povo — estamos escrevendo outro futuro.

Um futuro onde nossos espelhos não deformam, mas revelam. Onde a dor não nos define, mas nos convoca à criação. Onde a potência não precisa ser provada — apenas vivida.


Então, da próxima vez que te olharem como se você estivesse no lugar errado, respira fundo. Lembra de Carolina, de Cida, de Wilderson, de Fanon, de Haider. Lembra de quem te trouxe até aqui. E se expresse. Porque, enquanto a gente se expressar — com corpo, com voz, com afeto —, a gente não só existe.


A gente muda a lógica do mundo.

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