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Brasil, Espaço Urbano em Formação e Resistências



A consolidação da urbanização brasileira ocorreu em meados da década de 1970, contemporânea à formação das primeiras metrópoles e expansão das cidades médias. O censo do IBGE, divulgado no início daquela década, demonstrava em números o acréscimo significativo da massa populacional que dava nova forma e função a esses centros urbanos. No horizonte das iniciativas e projetos de futuro para um Brasil moderno, a urbanização era um passo necessário. Rumo estabelecido em promessa política com a alcunha de nacional desenvolvimentismo, rumo este que, em paralelo a industrialização, se fazia enquanto um sinônimo da realização do progresso. Neste processo, trabalhadores pobres, de diferentes origens, se concentravam nas franjas dos grandes centros urbanos industrializados, como Rio de Janeiro e São Paulo. Motivados por promessas de um futuro melhor, alguns deles sucediam verdadeiras peregrinações, vindos de diferentes estados do nordeste, com o objetivo de se fixar nas áreas em que a diversificação e dinamização da economia oferecia, ao menos em tese, melhores condições de sobrevivência. Cenário este já retratado em 1933 por Tarsila do Amaral, em seu quadro “Operários”.

A questão urbana no Brasil permanece presente. Urbano sem dúvidas, ele se tornou. Mas a custo de que? De quantos? 50 anos depois, a cidade, emergente, é o lugar comum, cotidiano, em que vemos e vivemos a desigualdade. Nas encostas dos morros, estampado nos jornais, a cor e o sangue da desigualdade. Brasil dos nossos dias. Que um dia sonhou ser um país de todos, mas esqueceu, ou escolheu esquecer, o seu passado, suas origens. O processo de urbanização, a formação das cidades, acompanhou os ímpetos da modernidade. Esta, por sua vez, foi a esperança infantil de se alcançar intencionalmente um novo lugar no tempo. Abandonar suas raízes agrárias. Distanciar-se do latifúndio, da lavoura arcaica. O futuro, viria às pressas. Então na espera do progresso, foi estampado na bandeira. Projeto de um novo Brasil. Mas como? A custo de que? De quantos?

Indústria e cidades são simbiontes. Para crescer, uma precisa da outra. E estas das gentes que vivem e produzem. A custa das vidas, de muitas delas, a cidade entrelaça o trabalho à produção racionalizada, moderna. Ela faz surgir o progresso, enquanto anseios humanos. Demasiadamente humana, é como esta surge. E não apenas por uma única razão. Se falamos em pares, fica mais fácil a compreensão. A desigualdade tem sua origem na ganância. A ganância, no dinheiro. O dinheiro que é poder. Com ele, se compra e se vende. Se compra o trabalho, que se vende, e o futuro. Se rende, é só para alguns, poucos. E talvez esses nem conheçam a cidade que deve ser vista. No Brasil, a industrialização foi financiada com dinheiro dos cafeicultores. Herdeiros da riqueza gerada com a escravidão. Os herdeiros da escravidão, descendentes, nem a terra tiveram direito. Ficaram nas encostas.

O Brasil é um país continental. Mas a terra sempre foi o seu problema. Terra onde estão fincadas suas raízes. Raízes que persistem em se aprofundar. Desta terra, com tantas riquezas, se extraiu ouro branco, amarelo e o negro. E para isso se fez transbordar o sangue das gentes. Por terra, se fez guerra, por terra se conquistou. A nobreza se fez por terra, e através da guerra no passado nos governou. Herdamos da colonização uma sociedade hierarquizada. Sociedade que considerava o trabalho manual um defeito mecânico. A raiz da desigualdade, era, portanto, a mesma da riqueza. O trabalho. Proveito de uns. Direito herdado. Pensão vitalícia. Exploração feita através da terra, da propriedade, e da segregação. Esta indústria arcaica, a lavoura, deu forma às primeiras vilas, aos primeiros núcleos de poder, que dariam origem às cidades. Historicamente, foi através da cidade que se governou o interior, se conquistou as gentes e se fez a colonização, por generais de milícias.

Tempos se passaram, aproximadamente quatro séculos, até que abolida a propriedade sobre corpos negros, os escravizados, enraizados nessa terra, livres, ficaram a ver navios. Não mais em negreiros em que se fez o tráfico para o cativeiro. O novo cativeiro, era o social. O poder não se rendia, a terra herdada não se dividia. A República foi proclamada. Reação provável à abolição. Sem um plano de reforma da estrutura fundiária, muitos deles permaneceram nas fazendas, trabalhando para seus antigos senhores. Outros se amontoavam nas encostas, formando as periferias. Criminalizados por seus hábitos, suas culturas, ficaram em zonas de exclusão, onde a segregação e o preconceito eram sintetizados pela cor da pele.

Lembram-se dos sonhos de modernidade e progresso? Já estavam se realizando. Com eles o Brasil se tornaria uma nova sociedade. Era a esperança que vinha a navio, importando o branqueamento. Imigrantes europeus ocupavam as cidades, que rapidamente cresceram e se encheram dos mais diferentes tipos de gente. No fundo, permanecia o poder das oligarquias, dos grandes proprietários de terra, industriais. A hierarquia do campo moldava a cidade, e o processo de urbanização. A mestiçagem, vista como positiva, essência do povo brasileiro,, era glorificada como a evidência de que vivíamos em uma democracia. As ruas das cidades aos poucos adquiriam bem aos poucos um tom popular. Ocupavam as ruas os movimentos de massa. Suas festas. O carnaval. A cidade se enchia de cor. A rua, o espaço urbano movimentado, dava novos sentidos ao Brasil. Tempos se passaram, até que esses sinais pudessem se inverter. Aparentemente abandonando o seu passado rural, mas ainda arraigado a ele, surgiam as estradas de rodagem, o automóvel e o confinamento urbano. O sonho da capital. Neste novo solo, mais concreto, a raiz das desigualdades estava encoberta.

Eis aqui este novo lugar no tempo. Feito no improviso. O Brasil delirou, enquanto os campos se esvaziavam e as cidades se enchiam, em se tornar uma potência. E foi, sendo, tornando-se foi através da exclusão social e da segregação. Formas de se manter os princípios e os valores de uma sociedade hierarquizada. Dos inumeráveis golpes militares que sofreu, o último, até então, que durou 21 anos, foi reação ao mesmo tempo reação às propostas de reforma agrária e ímpeto modernizante. Uma nova raiz para um novo tipo de sociedade, uma nova forma de exclusão social. A crise urbana foi a própria urbanização sem planejamento, desigual, propositalmente. Periferias e conjuntos habitacionais para os mais pobres, beiras de praia e condomínios de luxo para classe média. Jardins para a elite. Foi este o progresso atingido pelo golpe. Pela força da desigualdade histórica. Pelo amor ao poder e à força.

Em meio a Ditadura Militar, milhares de brasileiros passavam fome, não tinham casa. Eram torturados, física e psicologicamente. Tolhidos de seus direitos políticos fundamentais atuavam na resistência indireta. Outros partiram para a luta armada. Os artistas se engajaram na luta democrática. Narraram as ruas, levaram às ruas a voz que precisava ser ouvida. Nem todos eram conhecidos. Muitos permaneceram anônimos, como a cidade faz acontecer quando se está junto à multidão. Alguns deles usavam os muros da cidade para expressar sua revolta. Outros a música, o teatro, o cinema. “Gota D'água”, peça de teatro de Chico Buarque e Paulo Pontes, narra a história de Joana, mãe pobre abandonada num conjunto habitacional, de uma cidade que a faz anônima. Mãe, que retira forças de sua dor, para anunciar o fim, a gota que falta, a maré que se retrai e impulsiona a ressaca. E em único ato reverte o curso da história. Se juntaram ao coro democrático os movimentos sociais, as massas de trabalhadores industriais e os grevistas. Com eles as ruas se juntaram nas manifestações das diretas. Com eles nas ruas a democracia venceu.

Herdamos esse passado. Herdamos essa democracia. Hoje, fazemos as cidades, e damos novos sentidos a ela. E mesmo que alguns façam apologia aos crimes históricos dos militares, nas ruas o movimento de oposição se articula. Mostrando que as cidades podem ser reinventadas. E elas impulsionam a transformação. O meio urbano reflete a vida humana como um prisma. No dia 24 de Junho de 2021, manifestantes incendiaram a estátua de Borba Gato, bandeirante conhecido como um dos símbolos da fundação de São Paulo.

Hoje as ruas mostram a recusa do povo em relação a este passado, mandando um sinal para o futuro. Prova de que a cidade como a história é cheia de encruzilhadas que oferecem caminhos possíveis para serem trilhados. Os passados são presentes. E a luta é dura. Hoje vemos o regresso conservador se manifestar na política institucional e no cotidiano. As opiniões dos tiozões de padaria se tornaram argumentos políticos viáveis. Enquanto uns defendem o progresso predatório a qualquer custo. No passar da boiada. Os mesmos que defendem a eliminação das comunidades indígenas e dos seus territórios. A PL. 490 é mais uma expressão desse passado arcaico insolúvel. Grilagem em terras indígenas, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, acompanham um movimento de segregação nas cidades, com os novos planos urbanísticos sendo votados pelas prefeituras a fim de favorecer a especulação imobiliária. Estamos diante de um impasse. Enquanto rangem no fundo da sala as ameaças de golpe por parte de Bolsonaro e seus Generais Aliados, o passado se faz presente. Deseja romper o tecido do tempo. E nós, sabendo que o presente é autor do passado e do futuro, devemos agir. É preciso imaginação para se compreender o tempo e mais ainda para criá-lo.

Disseram certa vez que a catástrofe dá início ou põe fim a um tempo. Pergunto se hoje vivemos um princípio de futuro ou se já rompemos com o passado. De qualquer forma, o que existe é um novo desafio, um novo mundo, um “novo normal”, novas possibilidades, outros caminhos, cidades ainda mais anônimas. Sem rumo. E cada vez mais como James Joyce vejo que a história é um pesadelo ao qual estou tentando acordar.


Por Ademas Pereira

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