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O Sol não nasce igual para todos: educação, música e memória com NATÖ e sua trilogia NÔMADE

Por Pivete*


Eu percebi há algum tempo que está tudo interligado, somos grandes formadores de redes, com essas redes surgem as conexões, a roda gira e o mundo se torna mundo. Conheci o Renato Mendes por intermédio do Rojão, mas conheci o NATÖ pela sonoridade, melodia e a capacidade de transcender essas redes. NATÖ, que também é Renato, é um músico, historiador e idealizador de um projeto fascinante chamado “Aulada”, que instiga a reflexão sobre o social, e vai além, pois ele se utiliza de músicas como tema de suas aulas em busca de criar uma harmonia entre acesso e linguagem.

EP Nômade 1

Conversei com o Nato sobre educação, música, baixada fluminense, sociedade e seus últimos EPs “Nômade” de 2020 e sua continuação “Nômade, PT.2” que foi lançada no ano passado em 2021. Como no som “Memória” segunda faixa do seu EP de estreia, precisamos entender que “Viver sem conhecer o PASSADO é viver no ESCURO”, então temos que falar um pouco do passado do entrevistado para “iluminar” as coisas:

Em “Memória” já percebemos a importância da Baixada Fluminense e Duque de Caxias na história e musicalidade de NATÖ, lugar onde nasceu e cresceu, e sempre viveu rodeado da música e da energia que só quem é cria da baixada conhece. NATÖ, que ainda era Renato, conviveu com os discos que seu pai colecionava e vendia na feira de Duque de Caxias, se encantou com Martinho da Vila e os grandes bambas do samba. Também se encantou com James Brown, que seu pai discotecava em casa e nos Bailes do Movimento Black da década de 60 e 80. Na verdade, até hoje o seu pai agita os bailes black que ocorrem debaixo da Biblioteca Municipal Governador Leonel de Moura Brizola, em Duque de Caxias.

EP Nômade 2

Além da sua família, seus amigos também são vistos nas suas músicas, seja pelos interlúdios que iniciam e finalizam o primeiro EP, e o que começa no segundo. São eles as faixas “Cyberlori 1” e “Cyberlori 2” em Nômade, e “Clá” que é um discurso emocionante que mostra o quanto de amor e afeto esses dois projetos levam, que introduz o segundo EP. E não só nas músicas, mas também nas redes sociais de NATÖ que percebemos que seus amigos são o fio condutor de suas músicas, formam as redes que ele facilmente transcende e incorpora nas suas músicas


E disso tudo “O Que Sobra é a Arte”

Na verdade, “Depois que nos tiram tudo, o que sobra é a arte”, é importante frisar que NATÖ é historiador, e não que seus sons sejam uma aula de história, mas suas músicas são reflexos de suas vivências e logo também de seus ideais. Como todo ser político, ele questiona, dialoga e reflete sobre o social. Reflete sobre o povo trabalhador que acorda quase de madrugada para ir para o centro da cidade trabalhar e depois de oito horas volta para sua cidade dormitório para repousar, pois amanhã vai ter que repetir esse trajeto novamente. E é agora que falamos sobre “Cidade Cemitério” que conta com a participação de Rojão - que foi entrevistado na 3° Edição da Revista Menó, aqui nessa coluna - e retrata a exploração da mão de obra e o sequestro do tempo do trabalhador da baixada fluminense, que perde mais de 4 horas diariamente no trânsito casa e trabalho.

São esses trabalhadores anônimos que chegam diariamente nas fábricas e residências e que carregam a bendita economia em suas costas não veem o mesmo sol que seus patrões, pois o sol deles nasce bem mais cedo. Mesmo sendo eles que fazem o relógio girar.


“O Sol de Saracuruna não é o mesmo da Central do Brasil”

Essa entrevista demorou muito para sair, mas sempre foi um desejo meu que fosse algo feito com o máximo de cuidado e atenção. Nesse meio tempo, eu entrei no Mestrado em Antropologia, mudei de estado depois de um ano morando no Rio Grande do Sul, aluguei um apartamento com minha companheira e me estabeleci em Niterói. Roda gira e o mundo é mundo. Essa bendita entrevista nunca deixou de me acompanhar, pois eu sabia do potencial e da qualidade do material. Essa foi uma das resenhas que mais curti fazer, o NATÖ e suas crônicas sobre o Sol que não nasce igual para todos, personifica essa 4° da Revista Menó que estreia no mês do trabalhador. Além do mais, é a última desse formato atual. Sem mais delongas, vamos conversar com o NATO:


NESSA QUARTA EDIÇÃO VAMOS ENTREVISTAR O NATOOOOO!!!!!!


Natö

AULADA

“Aulada” surge de um pensamento meu, sobre a educação no Brasil. O que acontece? Educação no Brasil como o Paulo Freire falava é uma educação bancária, é uma educação que apenas instrui as pessoas a serem força de trabalho. Imagina: o Iaguinho vai entrar na escola, aí o tempo passa, quando ele estiver perto da maioridade vai sair formado para ser mão de obra barata. Em nenhum momento essa educação está interessada em te fazer pensar sobre o mundo. E é necessário ter um pensamento um pouco mais crítico e para refletir sobre o seu lugar no mundo. E eu comecei a pensar isso já dentro da faculdade de história. Eu fiz faculdade na UFRRJ (Rural) também, conheci o Rojão lá. Durante a graduação, comecei a ver as oportunidades que tinha. Fui o primeiro da minha família a entrar na faculdade federal, isso é muito privilégio, né? Ter acesso à educação no Brasil é muito privilegio. E eu sentia que vários debates só estavam sendo colocados dentro da universidade. Eu estava na faculdade de história, mas descobrindo coisas que soavam muito senso comum, ou pelo menos, deveriam ser senso comum. Imaginava que essas coisas minha mãe ou meu pai deveriam saber, mas eles não sabiam. Não por falta de inteligência e nem por falta de interesse, e sim porque não chegou pra eles.

Em certos momentos, tomando cerveja com meu pai e conversando, começava a explicar uma questão que teoricamente era complexa, e que de certa forma era mesmo, mas ele entendia tranquilão tomando a cerveja. Eu falei, cara, tem dois problemas aqui. Aí eu comecei a identificar, um dos problemas é o acesso, o outro problema é a linguagem. E aí eu falei: cara vou começar a fazer uma parada. Comecei a fazer uns aulões gratuitos em qualquer lugar que me disponibilizassem.

Nas aulas, eu pensava em um tema no campo das artes. Por exemplo, eu dei umas aulas que eu usava o álbum do Baiana System para tratar sobre capitalismo e escravidão. Durante a aula busquei explicar qual é o sentido das letras, porque aquilo acontece, da onde vem, as pessoas acham que capitalismo é uma parte fundamental da existência. Não é. O capitalismo tem uns quinhentos anos, e assim como ele tem apenas quinhentos anos, ele pode sumir também. Entendeu?


HISTORIADOR + MÚSICO + RENATO = NATÖ?

Eu acho que é natural ter esse link. “Aulada” é uma expressão minha em termos de educação, mas enquanto prática artista também, pois é o professor e o artista que estão ali. Minha carreira artística esta ligada a carreira docente, pois algumas referências estão colocadas nas músicas propositalmente. Quando em Memória estou falando de personagens históricos e da urgência em entender o presente com olhar para o passado, isso é uma influência da minha formação como professor de história.

Minha música é feita com linguagem diretamente ligada ao lugar de onde eu venho. Por isso a recorrência de um discurso político afiado como a necessidade de estar falando de certos temas com a preocupação de para quem estou falando e de quem eu estou falando. A minha música com ROJÃO, Cidade Cemitério a primeira frase já diz muito: “O sol do relógio da Central não é o mesmo de Saracuruna. A lua que ilumina o ramal, é só pra quem bem cedo apruma”. Quando os caras veem o som nascendo lá na central, nós já vimos o sol faz tempo, que o sol é lua para nós. Quatro horas da manhã já estamos na estação, quando o sol começa a nascer nós já vivemos para caralho, tá ligado?

Então, o propósito é fazer essa crítica, mas identificar também de onde está vindo a crítica. Uma linguagem popular que não poderia também ser desassociada do ritmo de vida popular. E as coisas vão se misturando de uma forma meio natural. É o que eu ouço, é o que eu gosto, é o que eu acredito. O NATÖ vem antes, o NATÖ é o primeiro apelido. Tipo o apelido que meus amigos e alguns familiares me chamam. O NATÖ é o artista. O Renato é um maluco muito correria: trabalho, trabalho, trabalho. Então, sempre tem trabalho no sentido individual e coletivo. Para que as nossas necessidades e sonhos se tornassem fome. Eu acho que o Natö é uma forma de saciar essa fome. A minha formação como professor de história é fundamental? É ali que floresce: agora eu sei como dizer a parada. Sempre quis fazer música, agora eu tenho mais referências, embora eu tenha outras referências desde pequeno.


INFÂNCIA + PAI + BAIXADA FLUMINENSE: NÔMADE.

Não tem como falar de NATÖ sem falar do meu pai e da Baixada Fluminense. Eu vou te explicar o porquê. Meu pai é feirante e vende discos em Duque de Caxias. Tem duas paradas muito fodas sobre o meu pai: ele é feirante, vende e coleciona discos; e foi DJ nos Bailes do Movimento Black Rio nas décadas de 1970 e 1980. Na verdade, até hoje ele é DJ do Baile que rola debaixo da Biblioteca Municipal Governador Leonel de Moura Brizola, em Duque de Caxias. E ele também é muito apaixonado por samba. Então, desde pequeno, meu pai estava lá falando, sempre me mostrando: “isso aqui é James Brown, isso aqui é Martinho da Vila”.

Eu cresci com esse caldeirão cultural na cabeça, dentro da Baixada Fluminense. A baixada é o que é, né mano?! Acho que é o lugar de maior efervescência cultural e de força de trabalho, as duas coisas acabam se misturando, e daí vem o sentido do meu trampo Nômade, ele não se chama assim à toa. Ele tem a ver com esse movimento pendular. Acordar cedo para ir ao trabalho, sentir um monte de coisa no meio do caminho, e ver um monte de coisas pela Baixada. Voltar pra casa e no fim de semana ter tempo para ir numa festinha, num bailezinho, e se encontrar com a rapaziada.


A CONSTRUÇÃO DO NÔMADE PART 1 E 2

Na verdade, o “NÔMADE” era pra ser um disco. Eu sempre fiz música, mas eu nunca conseguia ter grana e acesso para produzir um disco inteiro. Então em 2016, comecei a fazer algumas guias e esse processo foi muito longo. Nesse meio tempo, percebi que queria fazer um disco de dez músicas e não estava conseguindo fazer nenhuma. Então, tive a ideia de dividir o EP em duas partes com seis músicas cada. O NÔMADE (2020), foi pensado para ser todas as músicas encaixadinhas para levar o ouvinte para vários lugares, sentimentos e temas. Depois, decidi dividir em três partes, e consegui produzir a primeira parte, isso no espaço de 2016 - 2020. Produzi a segunda parte, de 2020 – 2021. Agora, durante o ano de 2021, não sei se vou trabalhar na terceira parte, mas sei que vai sair alguma coisa. Porém não estou com pressa, tá ligado? Estou pensando mais em trazer meu trabalho para rua, fazer show.


INFLUÊNCIAS

Desde muito cedo, ainda na década de 1990, eu fiquei muito interessado por hip hop e rock. Eu nasci em 1995, quando despontaram o Rappa, Nação Zumbi e Charlie Brown, essas bandas que são rock, mas um rock brasileiro. Esses grupos me introduziram a outras bandas de rock, lá de fora, como Red Hot Chili Peppers. Bandas que também misturam tudo: misturam com funk norte americano, misturam jazz, punk, enfim. E aí você vai formando isso tudo, né? Eu ouvia coisas novas, ouvia Zeca Pagodinho, Racionais MCs, um monte de gente diferente, não tem como sair outra parada.

A minha antena não está virada lá pra fora primeiro, estava virada pra cá, mas acredito que faço uma música universal. Tipo assim, eu acredito fazer uma música que toca em todos os lugares. No app consigo ver onde toca, e vejo que minhas músicas tocam em vários lugares que nunca imaginei que tocariam. A minha primeira antena está sintonizada aqui no Brasil, eu não quero fazer uma música que soe como música lá de fora, eu quero fazer uma música daqui de dentro. Mas é algo global, sabe? Até nisso acho que a história me deu muitas ferramentas, porque sempre tive as influências, mas o olhar de historiador me abriu um leque, um universo.


NÔMADE?

Eu acho que o NÔMADE é a expressão de um processo e de uma trajetória. Essa trajetória está tanto no campo físico quanto no campo emocional. Físico porque durante o processo de gravar o EP, eu costumo dizer que eu “morei” no estúdio. Durante o ano de 2019 tive que transitar entre o Méier, Duque de Caxias, Vila da Penha, Campo Grande e Bangu para conseguir gravar. É por isso o termo NÔMADE. Além de ser um termo histórico as pessoas falavam: “porra mano, você só anda com essa mochila gigante de camping nas tuas costas?” Isso porque eu ia trabalhar e depois ia direto para o estúdio. Um amigo tinha um estúdio em casa e ele me deixou viver no estúdio. Era um cômodo pequeno e eu dormia num colchão dentro do estúdio. Então, no campo físico da trajetória está essa questão. Há lugares. E nesses lugares a gente tem referências diversas. No campo emocional é o caldeirão de emoções que estou sentindo o tempo todo.


MEMÓRIA

Eu falo uma frase na música: “história é filme, não é foto”. Isso é uma coisa que eu costumo dizer em sala de aula para chamar atenção de que não é possível a gente compreender a nossa existência sem relacionar ela com a memória, com a memória histórica. Pensar que às vezes uma pessoa vai sair na rua e vai falar: “Pô, mas qual a diferença do meu vizinho que é preto e eu sou branco na hora de ingressar em uma universidade pública? Por que cota?” Mano, você está falando isso porque você está vendo a realidade como se fosse uma foto, uma coisa estática que começou ali. Somente quando você vê a história como um filme, que você entende que algo fez aquilo acontecer.


“...História é filme, não é foto

Que no escuro mantém

Pra revelar o hoje

Num retrato

Em que passado não vem…”


A gente nasceu e o filme já estava rolando. É assim com Duque de Caxias, que é Baixada Fluminense. Era pra ser um polo cultural, uma cidade turística. Mas por que, não é? Por que a praça se chama Praça do Pacificador? Tudo isso está bem errado, né? Duque de Caxias não foi pacificador. Ele é tido como pacificador, mas foi um genocida do caralho, entendeu? Mandou matar crianças na guerra do Paraguai. Ele viveu uma parte da vida dele aqui, se eu não me engano, acho que é isso. E a cidade leva o nome dele. Então, o que você espera de uma cidade que leve esse nome quando você leva pro campo da política, das relações sociais, da política pública. É isso, é como você falou mesmo, é senhor de engenho. A sociedade, os pretos e pobres estão sendo diretamente pressionados de cima pra baixo sem muita opção.

Mas a gente não pode achar que as pessoas são vítimas desse processo, dessa pressão e que elas são passivas. A gente nunca foi passivo. A gente é forte pra caralho! Em todos os campos, mano. A gente vive pra caralho em todos os campos, e a gente consegue ser ouvido porque não tem como ignorar. Tem uma frase do Crioulo dita no programa da Marília Gabriela que eu acho fascinante. Ele falou que você pode dizer que o gigante não existe. Até ele começar a pisar nas flores do seu jardim. E aí quando ele pisar, essa conta não vai ser ele que vai ter que pagar. Alguém vai ter que pagar o jardineiro. Entendeu?


Deixa eu falar, deixa eu falar

Cheguei, cheguei

Acerta a conta com o passado

Futuro não se faz fiado

Ou a memória cobra depois

Entenda o recado de Zumbi

Mandela, Zapata, Malala

Memórias serão feitas aqui

Nós

Por

Nós

E mais nada!


*Iago Menezes de Souza, vulgo Pivete

Colunista da Resenha do Pivete, Editor Adjunto da Revista Menó.

Mestrando em Antropologia, Graduado em Ciências Sociais e Graduando em Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense e Técnico em Computação Gráfica.

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