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Dorival Caymmi e o elogio da superficialidade: Uma Leitura de Canções Praieiras

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Em uma entrevista polêmica Darcy Ribeiro afirmou que os intelectuais colonizados se esforçam por ser cavalos de santos dos grandes autores europeus.


Em um movimento contrário, pretendo me esforçar para perceber a singularidade de uma realidade que me olha de volta e a qual me reconheço; e se for necessário escrever sobre esses tais grandes, que seja para convidá-los a sentar à mesa e não em minhas costas.


Pretendo escrever um ensaio sobre Dorival Caymmi, um dos inventores do ser baiano, que esconde em seu repertório um tipo de experiência estética que nos proporciona o orgulho de participar da mesma cultura e língua que o autor.


Um nordestino, como muitos, que teve que ir ao sudeste para entrar no mercado da música. De seu vasto repertório irei selecionar, sem pretensão de ser original nessa escolha, o álbum “Canções praieras” e a música “João Valentão”.



Dorival descreve a vida do povo brasileiro, principalmente, o povo do literal: pescadores, suas esposas, as dificuldades da pesca, o amor, o medo do mar e a saudade de sua terra.


O mar Quando quebra na praia É bonito É bonito O mar Pescador quando sai nunca sabe se volta Nem sabe se fica Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos Nas ondas do mar O mar Quando quebra na praia É bonito É bonito

Nessas temáticas populares, Caymmi não parece se esforçar para dizer o quão bonitas elas são, por exemplo, em “O Mar” ele canta: “o mar é bonito, é bonito”. Não vamos encontrar muitas metáforas, isto é bonito como um girassol, como aquilo, isso e etc, a canção é literal sobre o litoral. Ele parece se omitir de inventar um mundo, parece só descrevê-lo; a vida dos pescadores, suas amarguras, amores, os lugares lindos de sua terra: a Bahia.



Cerca o peixe, bate o remo Puxa a corda, colhe a rede Ô, canoeiro, puxa a rede do mar Vai ter presente pra Chiquinha E ter presente pra Iaiá Canoeiro, puxa a rede do mar

Mesmo em canções como “A lenda do Abaeté”, quando o tema envolve uma lenda de um lugar que deve ser em alguma medida temido e admirado como a lagoa do Abaeté, lugar de espiritualidade para religiões de matrizes negras e indígenas e manifestações espirituais, esse estilo é mantido.



Nos versos o baiano consegue nos transmitir medo da lagoa do abaeté dizendo: “no abaeté tem uma lagoa escura. Arrodeada de areia branca”. O timbre e seu violão fantástico se encarregam de transmitir esse afeto, mas não é desprezível o fato de ele apenas descrever a areia, as águas escuras; o mistério é narrado a partir da superfície do mundo.


Essa vida encantadora e superficial que nós encontramos nas músicas cayminianas não é um paraíso, no qual o sofrimento não existe, ele é apenas elaborado de maneira diferente. O mar, ou talvez, o Mar é um cenário incontornável em Caymmi, fonte de sustento, alimento, de beleza, mas também de angústia das mulheres dos pescadores que não sabem se irão ver seus maridos que foram a Ele.


As moça de Jaguaripe Choraram de fazê dó Seu Bento foi na jangada E a jangada voltou só

Porém, essa ambiguidade não afeta a beleza do mar, lembrando os versos de Gonzaguinha sobre a vida: “Ah, meu Deus, eu sei, eu sei. Que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita. É bonita, é bonita e é bonita”.


É importante dizer que essa simplicidade esconde uma filosofia extremamente rica; uma vida afastada dos germes dos desejos não realizados, de mundo avesso ao homem e que o obriga a interiorizar e criar uma realidade diferente daquele que existe para amá-la.


Freud se dedicou a interpretar os sonhos e os relacionar com desejos frustrados ou não atendidos na realidade e se dedicou a explicar a partir do inconsciente sofrimentos e transtornos que não se explicavam por sintomas físicos.


Em um caso emblemático, ele atendeu uma mulher que mancava sem nenhuma lesão constatada em sua perna; o trabalho de análise concluiu que ela desejava o esposo da irmã.


O sintoma aparece na clínica como metáfora: “dei um passo em falso”, então ela se pune e esconde a causa de seu sofrimento, duro demais para ser aceito pelo consciente. Entre a perna que manca e a verdade escondida, há uma metáfora e a necessidade de uma interpretação.


O sucesso de algumas obras de arte, para Freud, se explica pela capacidade do escritor em expor essas tramas de maneira dissimulada, e com esse disfarce permite a nós vivermos, mesmo que apenas na imaginação, os nossos desejos proibidos.


A peça de Édipo é o maior exemplo deles, que para o autor revela o tabu do incesto e transmite de maneira segura ao leitor, o acesso a esse desejo inato a todos. Sem ceder completamente às teses freudianas, a qual temos críticas, quem nunca teve uma catarse ao fim de uma obra, chorando compulsivamente, sem saber o porquê?


Mas as belezas de Caymmi se explicam de maneira diferente. Em “João Valentão”, ouvimos a história de um homem que “pra dar bofetão. Não presta atenção e nem pensa na vida”. João é descrito como um homem violento, talvez estupido, que como um touro bravo age e reage ao que lhe der na telha, sem ter que mediar as frustrações que a vida em sociedade nos impõe.


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João, ao se expressar e não pensar, acaba por produzir uma alma sem profundidade. Profundidade, camadas, necessidade de interpretar metáforas que escondem um desejo, tudo isso é tarefa de psicanalista que deve encontrar nos nossos gestos, atos falhos e sonhos os desejos escondidos.


O paciente adoece pela potência não expressa e cria um mundo de ilusões próprio.


Esse valentão estúpido e sem profundidade só pode se encantar com a beleza daquilo que é simples, belo e sem camadas, a superfície do mundo é o lugar que ele pode descansar e encontrar o prazer.


Nessa estória, o que encanta João é principalmente o mar, a praia e uma morena bonita. Caymmi então nos apresenta um dos versos mais bonitos da música, ao ouvir o ronco do mar, ao se acolher ao lado de sua amada e contemplar o entardecer o valentão adormece:


E assim adormece esse homem Que nunca precisa dormir pra sonhar Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.

Pretendo dar uma peruada como analista, sem ser, e dizer que o que nos encanta tanto nas músicas de Dorival não é o reconhecimento como Freud diz, mas a diferença de vida brutal. A diferença da superficialidade, para a profundidade.



Recentemente recebi uma foto, tirada em minha casa, a qual habito a anos, de um ente querido; no fundo havia uma parede rosa, porém percebi que não sabia dizer com certeza qual era aquela parede e percebi também que não lembrava direito quais eram as cores dos cômodos da casa.


Que será isso senão o sintoma de uma vida centrada na profundidade? E confesso sem medo pois sei que não estou sozinho. O mundo hostil nos obriga a criar um mundo interno confortável e nos afastar do contato cruel com a realidade, de uma sociedade marcada pela competição.


Mas João, estupido e brigão, não recorre às profundezas dos sonhos, do inconsciente; a única profundidade que lhe encanta, talvez pela diferença, é o mar.


A onda do mar leva A onda do mar traz Quem vem pra beira da praia, meu bem Não volta nunca mais

Mais atenção ao mundo, suas ambiguidades e a necessidade de enfrentá-lo e admirá-lo, tal como os pescadores em busca de seus sustentos e a incerteza da volta, e tal como João valentão que sonha acordado com o real.


Talvez essa seja a provocação que Caymmi tenha me deixado. Mas não podemos ser ingênuos de pensar que Caymmi, diferente de todo artista, consegue apenas descrever sem criar.



O álbum “Canções Praieiras” termina com “Saudade de Itapoan”; ficamos com a impressão de que suas músicas são dedicadas à saudade de um nordestino que veio a sudeste para ganhar a vida, como tantos outros.


Este é o verdadeiro elemento trágico, ser forçado a abdicar de uma terra sem necessidade de dormir para sonhar.



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