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O que a vida tem sido

Autor: Roberto Brito


REVISTA MENÓ | 5° edição | Contos e Crônicas





Ninguém está bem. Todos andam acordando de humor virado. A vida tem sido aquele gosto acre de vômito, aquela ardência antes do vômito sair pela boca e pelas narinas.


A vida tem sido o que ela realmente é, sem maquiagens, sem edições, sem remendos, como uma sucessão de copos sujos na pia.


A vida tem sido o apodrecer de um abacaxi em cima de uma pia qualquer, assim como absorventes apodrecem dentro da lixeira do banheiro.



A vida tem sido aquele sebo de recém-nascido, aquele romantizado quando o bebê nasce, mas odiado inclusive pela mãe ao ter que o beijar pela primeira vez.


A vida tem sido aquela sensação de pós masturbação culposa, aquela sensação do esperma escorrendo pela coxa e da pressão arterial diminuindo vagarosamente enquanto você se sente mais deprimido do que antes.


A vida tem sido uma embriaguez de destilado barato, de gosto ruim, aquela embriaguez de ficar tonto e ver tudo girando rápido demais.


A vida tem sido um texto chato de um professor ranzinza que insiste para seus alunos se apresentarem diante de suas câmeras privadas.


A vida tem sido uma avalanche de merdas todos os dias, mas que você as ignora em nome de uma sobrevivência vazia e sem sentido.


A vida tem sido a piada daquele humorista do Youtube que você inveja por não trabalhar formalmente e ganhar pelo menos o dobro do que você, mesmo não tendo seguido carreira acadêmica.


A vida tem sido aquele pote de iogurte esquecido na geladeira, que você lembra de manhã no café, tem sido o último pão mofado do saco de pão, o queijo prato mofado na tigela, o feijão que azedou, a linguiça ensebada que você come.


A vida tem sido o medo de infartar por levar uma vida miserável e tediosa e por conta dessa mesma vida miserável você compensa sua tristeza comendo porcarias e rindo diante da TV.



A vida tem sido um fingimento de felicidade obrigatória e um sentimento também de uma convivência obrigatória com as pessoas que você odeia.


A vida tem sido aquele ônibus lotado no retorno do trabalho, ou aquele engarrafamento, ou aquele acidente fatal de moto que você vê e pensa “ainda bem que não foi comigo”.


A vida tem sido o corte que a lâmina de barbear faz no rosto liso do pós barba; melhor, a vida tem sido aquela ardência da loção pós barba que arde primeiro e depois deixa aquele prazer de ardência gélida.



A vida tem sido um filme pornô onde ninguém é protagonista do prazer de ninguém.


A vida tem sido aquela breve brisa da janela, de quando você percebe que ficou por tempo demais dentro de casa.


A vida tem sido aquela olhadela no espelho, aquela percepção de ver a vida passando diante dos olhos quando você acorda às seis horas de uma manhã de segunda-feira.


A vida tem sido uma segunda-feira.


A bem da verdade, a vida tem sido o que ela sempre foi, mas parece-me que, de uns tempos para cá, tudo ficou tão mais nítido e evidente, que não tem mais parecido ser. A vida tem sido o que sempre foi.




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