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Meu amigo Gesus: a marcha dos bêbados

Por Marcelo Sophos


Certa vez, como muitas outras, fui na casa de um amigo que ficava nas imediações da Glória-RJ, um bairro centenário que já teve seus auges. Chegou a ser a região com mais embaixadas na cidade do Rio de Janeiro, sendo considerado uma das regiões mais nobres da cidade, por conta da proximidade com antigas sedes imperiais do governo. A arquitetura, influenciada pela francesa, dão aquele ar de superioridade parisiense. Como as coisas mudam, no geral para a pior. Hoje é um bairro decadente da zona sul do rio, os moradores até buscam com as autoridades uma melhoria no local, ou eles mesmos em iniciativas próprias buscam conservar e arrumar uma coisa ou outra, apesar das dificuldades.


Sendo um bairro de conexão com o centro do rio, e como a maioria dos centros, é sujo, mal cuidado, praticamente abandonado, salvo nas “bolhas”, como ruas específicas, barzinhos cults descolados ou a bela Praça Paris. No geral o centro do rio é uma lixeira, repleto de moradores de ruas, prostituição, tráfico de drogas e claro pivetes cracudos oportunistas e ladrões em potencial. Volta e meia aparecem nos noticiários algum assassinato brutal por motivo banal. Sendo assim, algumas dessas loucuras urbanas acabam por se espalhar pelas adjacências dos bairros vizinhos como a Glória, Catete e Laranjeiras, como disse, é uma Zona Sul falida, e também sou cria dela. Apesar de tudo, como um sádico, a amo.


Meu amigo Gesus, esse era um dos últimos apelidos que recebeu, não apenas por sua aparência lembrar um messias latino americano com ar de boas graças, de pele branca e cabelos lisos, mas também por seu jeito humanista e pacifista; morava num apartamento bem em frente aos pontos de prostituição das mulheres trans (travestis como chamávamos, não por preconceito, mas pelo costume antigo, estávamos evoluindo ainda e não havia, se não me engano novos conceitos). Ao lado, alguns bares lotados por seu público fiel de trabalhadores sedentos por uma cerveja gelada depois de uma semana inteira de exploração. Virando a esquerda, na Rua Joaquim Silva, ficava o famoso Beco do Rato, caminho sempre certo quando rumávamos para a Lapa, a boemia carioca.


Fumamos um baseado venenoso da comunidade local, o morro Santo Amaro, um amigo havia feito o corre uns dias antes da PM fechar a favela. Chapados, seguimos nosso caminho. Íamos encontrar uns amigos numa espelunca de um sobrado caindo aos pedaços, próximo dos Arcos da Lapa. Lá sempre tocava uns hard rocks, heavy metal, punk, grunge, sempre nessa pegada do gueto e underground. Se a cidade é uma selva de pedra tem uns lugares que são pura barbárie.


Assim que descemos para rua, já fomos recebidos com um abrir de roupas de uma das meninas trabalhadoras da noite, revelando meio quilo de pica preta. Logo perguntou se queríamos fazer um programa a três. Apenas agradecemos o convite e seguimos sem nem olhar para trás para um dos bares do Beco do Rato, onde pegamos uma breja gelada e seguimos rumo ao nosso destino.


– Aqui é sempre assim. Já me acostumei, as que me conhecem de vista, sabem que sou morador e nem falam nada. – Sorria Gesus enquanto abria sua lata – A parada é sempre respeitar, ainda mais que eu moro aqui tá ligado.


– To ligado família. A parada é essa mesmo. Te falar, quem vai tá lá? Mosca vai? Andrezinho? Ele falou que tava com uma boa. Quero só ver!


– Cara, acho que babou pra ele. Deu mó merda. Última vez que soube ele tava pirado de tanto tomar chá de trombeta lá no Sana. – Gesus só balançava a cabeça. – Um outro camarada disse que foi fumar lá na casa dele, e ele não tava falando nada com nada. Surtou mano! Achava até que era mulher. Loucura total! Na real é melhor até ele não ir.


– Eita porra! Tu viu o doidão? – havíamos passado por um cara todo vomitado – Sextou família. Lapa já ta o fervo e nem é meia noite ainda. Mais que merda essa parada do Andrezinho, foda mano, tomar esses alucinógenos direto mexe com a cabeça, to fora. Desde aquela vez que nós tomamos Zabumba, ta ligado? Puta que pariu pior experiência da minha vida, nunca mais.


– Porra nem me lembra! To sequelado até hoje! Mas acho que vai tá um pessoal lá da filosofia do IFCS[1]. Banda maneira, meu primo toca nela. Sempre tem uma galera. – Gesus virou sua lata com vontade, estava uma noite quente típica do verão carioca.


– Pô, dependendo do clima, sei lá, se acabar cedo, to pensando em chegar lá no Garage, brotar lá na rua, no Zeca, sei lá. Uma mina gótica que to na pilha de pegar vai tá por lá.


– Nem vou, esses rocks são muito pesados pra mim. Mas cai matando família, mina gata? – Gesus ria. Eu sabia que ele não iria. Sempre ia sozinho pra Praça da Bandeira, mas encontrava uns colegas e primos de Caxias por lá.


Fomos trocando ideias, as ruas foram ficando cada vez mais lotadas. Passamos pelo famoso e hoje extinto Asa Branca, casa típica de forró. Algumas portas de entradas nos velhos sobrados, próximos a um dos pontos de ônibus, eram verdadeiros portais para inferninhos quentes, tocando seus funks e uns eletros da época, as luzes negras e vermelhas davam aquele ar obscuro. Uma vez entrei num desses lugares que cobravam 10 reais para entrar, nesse tempo um show maneiro custava uns 30 reais, ou seja, paguei caro. Adivinhem, me fudi, tinha porra nenhuma lá dentro, ninguém literalmente e dezenas de pessoas do lado de fora. Pensava que estava bombando, que iria me dar bem com alguma gatinha do funk. Só perdi minha grana. Acontece. Esse meu lado funkeiro fica para uma outra história.


Os Arcos da Lapa se destacavam ao fundo, para trás estava o Circo Voador. Haviam todos os tipos de pessoas circulando: playboys da alta sociedade carioca, zona norte, baixada fluminense, turistas de muitos países e Brasis, fora os encostos locais, espíritos que se perderam em drogas e bebidas que rondavam por lá. Simplesmente uma grande mistura de estilos, gêneros e classes. As ruas eram tomadas por carros barulhentos com seus sons altos, o trânsito lutava para andar e não atropelar um jovem bêbado que ainda aprendia a beber. Esqueci de mencionar o cheiro, não existiam banheiros, então a urina forte e fresca era constante, por vezes pulávamos seus rios ou poças que marcavam permanentemente os muros, pedras ou árvores, que adaptadas a acidez corrosiva, sobreviviam mais que colunas de concreto dos viadutos cariocas.


Atravessamos e chegamos na parte das barracas de comidas, ali o cheiro era maravilhoso, carne sendo crepitada na chapa para os deliciosos podrões, cachorros quentes, espetinhos de todos os tipos entre outras iguarias como macarrão instantâneo no estilo yakisoba. Até o fim da noite comeria um “completão da casa”, ou iriamos passar numa lanchonete quase 24h. Também tinham barracas de drinks com campirinhas coloridas e saborizadas com frutas, Gin, cachaça, rum, vermute, conhaque, tequila, vodka e uísque. Normalmente, as minas que compravam junto com o público LGBTQI+ ou algum ostentador que comprava energéticos de marca.


Chegamos ao gramado do outro lado da rua, já em frente aos Arcos, reduto do rock da galera da baixada fluminense. Sempre encontrava uns primos e amigos de Caxias ali. Vinho direto do galão. Suas camisas pretas de bandas, correntes, cabelos compridos, alguns emos, grunges, punks, davam o tom do “nosso território”. Fumamos com eles uns baseados, cigarros e uns goles de uma pinga braba sem rotulo que um rapaz de moicano semi-mendigo nos ofereceu em troca de fumar com ele.


Nas ruas, a política da boa vizinhança, da camaradagem e do fortalecimento, são fundamentais para sua sobrevivência. Saber chegar, respeitar e saber sair. Sempre que puder troque, mesmo que ideias, evita cara feia e um “não” mal colocado, mas não seja dado, pra não parecer otário. Pois o cheiro de trouxa e vítima, a malandragem sente de longe. Atividade sempre, ligado, pra não ser a bola da vez, nem pros canas, nem pras ruas. Como diria Bizerra, “malandro demais, vira bicho!”


As bandas que tocaram no sobrado foram épicas, o rock rolou solto, as rodas punks foram puro respeito. As minas góticas e da Era Vitoriana estavam lindas demais com suas correntes e aparências vampirescas, uma trevosa de olhar sedutor e cabelos loiros me fizeram logo desistir de ir para outro lugar. Batia cabeça no cover do Green Day como possuída por uma entidade maligna. Me apaixonei na hora.


Encontramos outros amigos: Esquerda, Fimose, Tim Maia (como ele dizia, o primeiro e único), Goathi, Cabelinhos de Anjo, Ronron, entre outros malandros que formavam nosso bonde. Os apelidos exóticos vinham das profundezas das almas atormentadas por seus traumas e características físicas, ninguém ligava, eram outros tempos. Tatau me passou uma dose de pinga, que viramos sem piscar feio. Curtimos a noite inteira. As trocas de beijos com a gata, as rodas tribais de punk e altos papos filosóficos existenciais sobre a vida pós a morte foram o tom da noite, até Nietzsche e a morte de Deus foram citadas por um camarada que cursava filosofia. Grande noite!


Peguei o contato da mina antes de perdê-la de vista, nem nos despedimos adequadamente. Se chamava Mariana, ou Mary. Anotei seu celular (não havia internet móvel ainda) e peguei seu número de ICQ (tipo Whatzapp dos anos 90 que só funcionava no computador. Fumamos nosso último baseado, mal apertado por sinal. Gesus babou severamente na confecção. Hoje em dia, virou gourmet, usa de sedas especiais e piteiras profissionais. Enfim, nos juntamos com os que iam embora.


A longa marcha dos bêbados! Era assim que chamávamos nossa caminhada de volta. Lapa sentido Laranjeiras. Vê no maps do Google: Arcos da Lapa, Av. Mem de Sá, Rua da Lapa, virou na Rua Joaquim Silva, Beco do Rato, Av. Angusto Severo, seguindo pela Rua da Glória, Rua do Catete e Lg. Machado. Íamos Gesus e eu largando os encostos pela jornada. Ele ficou ali pela Glória mesmo, as vezes eu caía na casa dele, não essa noite. No fim era apenas eu, solitário no último trecho. Feliz pela conquista da noite, com promessas de continuação. “Bom dia” sorria o porteiro que já estava acostumado a me acompanhar de quinta a domingo quando retornava como um zumbi para casa. Um Zumbi Sorridente.


Fim


[1] Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS/UFRJ

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