top of page

Décimo Quarto Dia

Autor: Thiago Sento Sé


REVISTA MENÓ | 5° edição | Conto do Vigário





O ano estava chegando ao fim e eu tinha acabado de ficar mais velho. Sentia mais do que nunca o peso da idade sobre os meus ombros. Mas naquela manhã em especial eu tinha conseguido dormir cerca de sete horas e me sentia disposto e até um pouco animado, vislumbrando as férias de verão. O sol estava muito agradável e a estrada tranquila.


Depois de duas horas e meia, e cerca de 140 quilômetros dirigindo, o relógio marcava 11:20 e eu já estava a poucos minutos do meu destino, com tempo suficiente para almoçar e fumar um cigarro antes da primeira aula do dia. No rádio o locutor acabava de anunciar Bob Dylan e eu cantava animado. Ainda na BR o carro na minha frente diminuiu a velocidade e ligou rapidamente as luzes de alerta. Repeti o movimento. Aquela era uma pista de velocidade, e qualquer motorista por mais inexperiente que fosse sabia o que aquilo poderia significar.





Meus piores pensamentos foram se tornando realidade pela janela da direita do meu carro, no acostamento da pista. Um Toyota preto tinha deixado um rastro de borracha queimada no asfalto, o para-brisa completamente destruído. Embaixo dele uma bicicleta branca, retorcida. Uma pessoa saia do carro, enquanto outra corria em sua direção. Outras se aproximavam da mureta. A falta de socorro indicava que o acidente tinha acabado de acontecer. Uns vinte metros à frente do carro um corpo caído. Minha atenção se voltou diretamente para a perna partida em uma fratura exposta, pendurada apenas pelo que parecia um conjunto de músculos e pele. O corpo estava em uma posição fetal, em parte virado para a mureta, a outra parte, virada de uma forma que só era possível por causa das múltiplas fraturas, virada em minha direção. A roupa levantada pela violência deixava a pele das costas aparente. Uma pele completamente cinza, talvez pela perda de sangue, mas também muito suja do asfalto... a cabeça voltada para mim, revelando um olhar vazio, como o de um mock-up de filme de terror. Porém, o sangue que saía em abundância pela boca e nariz da vítima era bem vivo. Todo aquele horror diante dos meus olhos também era bem real. O carro da minha frente encostou, e por um segundo pensei em fazer o mesmo, afinal, estava com horário de sobra, mas não havia nada que eu pudesse fazer ali, além de saciar minha curiosidade. Eu já estava horrorizado o suficiente.


Sempre que vemos um acidente na estrada, e isso é mais comum do que se possa imaginar, uma chave vira, e isso muda completamente o nosso astral. Mas quando vemos um corpo caído, completamente destroçado, é diferente. Eu sentia vontade de vomitar. Não pela mistura de ossos e músculos, sangue e pele expostos ao sol, acompanhados de longe por estranhos urubus, mas pela violência que estávamos todos sujeitos nesse mundo.


Peguei o retorno à esquerda, desci pela pequena ladeira e estacionei na escola. A coisa piorou. Os alunos alvoroçados anunciavam a tragédia aos berros, a vítima era uma criança. A sobrinha de Antônia, uma funcionária da escola... um desses cabides de emprego da prefeitura que você não sabe nem qual é a função ali. Mas o fato é que eles falavam que Antônia havia saído louca para BR ao saber da notícia. Não houve como ter aula no turno da tarde. Metade da escola tinha ido para a estrada ver a tragédia com seus próprios olhos. A funcionária teve uma crise nervosa na pista e precisou ser socorrida pela diretora, os alunos acompanhavam tudo de perto, e alguns mais excitados até riam do entretenimento macabro da vida real. O assunto durou até o turno da noite, e conforme o tempo passava iam surgindo detalhes.


- Ela entrou no meio da pista com a bicicleta e parou! Parou! No meio da pista. O carro veio e pegou em cheio!


Falavam que a jovem de 12 anos sofria de depressão e tinha resolvido tirar a própria vida. Outros diziam que a menina estava grávida. Envolvida com drogas. Alguns falavam em “macumba”. Mas nada correspondia com a realidade daquela família conhecida por todos no bairro.


Na volta, quando passei em frente ao local a área estava isolada. Passava das 22hs e o corpo coberto da menina ainda esperava para ser removido. Não haviam mais curiosos disputando lugar na mureta, nem pessoas excitadas correndo de um lado para o outro. Ninguém. O lugar estava vazio e o show havia terminado. Apenas o corpo com sua bicicleta, o carro envolvido e uma viatura da PRF.


Na semana seguinte, no jantar do turno da noite, parei na grade da cozinha e um braço moreno da cor dos povos originais me esticou o prato, me olhou com olhos que mais pareciam dois lagos negros, sorriso branco como uma porcelana brilhante. Me desejou boa noite. Eu me virei e saí. Mudo, cheguei na sala de professores e comi aquela comida maravilhosa. O silêncio foi interrompido por um dos colegas, que elogiava a comida da nova merendeira. Num estalo respondi sem medir as palavras:


- Realmente, maravilhosa!


Meu colega urrou sem a menor categoria e uma professora me olhou com cara de reprovação.


Não era preciso olhar mais de duas vezes para aquela moça para se sentir encantado. Quando voltei para devolver o meu prato agradeci, e elogiei a comida, procurando seus olhos. Ela me olhou com seus olhos que agora pareciam dois buracos negros, infinitos, e agradeceu com seus dentes brilhantes.


- Obrigada, amanhã eu faço mais para você.


Aquilo me desceu como uma comida, que erra o caminho na garganta. Não disse nada. Ela se virou com meu prato, aproveitei a deixa, como se aquilo tivesse sido uma conversa e fui embora.


As horas me esmagavam e eu me sentia cada minuto mais cansado. Cheguei ao final do último tempo como quem chega ao final do último round. Peguei minha bolsa vesti a jaqueta e virei o café. Como de costume, parei no bar em frente para tomar uma Coca-Cola.


Acendi um cigarro enquanto esperava o colega que voltava de carona comigo até a cidade vizinha. Já passavam das 22hs e a rua estava vazia e escura. O zelador já havia apagados as luzes da escola e agora o único ponto de luz vinha do bar onde eu estava, o outro ficava a uns 90 metros, já na rodovia federal, no alto de uma pequena ladeira, no cruzamento que dava acesso a BR. O restante da rua consistia de um lado o muro da escola e o muro do posto de saúde, e do outro um conjunto de lojas, miseráveis, todas com suas portas fechadas. Nada funcionava depois das 22hs naquele bairro pobre e minúsculo de beira de estrada, até mesmo o bar, vazio já se preparava para fechar.


Haviam passado sete dias da morte da menina e as imagens do acidente ainda permaneciam frescas em minha memória. O velho portão da escola rangeu sobre seu próprio peso e meu colega saiu acompanhado da nova merendeira. Toda de branco, ostentando uma cabeleira preta, escura como aquela rua.


- Gente vocês podem me dar uma carona até o Engenho Velho?


- Claro, é caminho - Respondeu meu colega, fazendo parecer por um instante que ele era o motorista daquele belíssimo carro vermelho brilhante.


A moça prontamente agradeceu, e entrou no banco do carona antes de todo mundo. Enquanto eu guardava minha mochila na mala meu colega interrogava a funcionária nova.


- Como você chama?


- Marta, mas pode me chamar de Matita.


- Você mora no Engenho Velho?


- Não. Quer dizer, sim! É que estou morando lá com minha tia.


Como o próprio nome sugere, o Engenho Velho era uma grande fazenda de cana-de-açúcar do século XVIII. A ruina da sede se destacava ao longe, e apenas as casas dos antigos escravizados haviam sobrevivido a crise. Atualmente se resumia a lotes isolados no quilômetro 274 da BR, e a única referência era o Manteigão, um restaurante na beira da estrada, que ficava aberto 24hs, com higiene e direitos trabalhistas igualmente duvidosos.







Dentro do carro eu fechei meu cinto, girei a chave e o motor rugiu como um animal. Tinha chegado a minha hora preferida do dia e tudo ia bem, mas depois dessa orquestra explosiva o que se seguiu foi uma mistura estranha e sinistra de terror. Antes mesmo que eu ligasse os faróis, quando olhei para a rua escura que estava prestes a cursar, vi um estranho grupo de pessoas vestindo preto dobrando a esquina e vindo em nossa direção. Com o susto soltei a embreagem e o carro morreu dando um salto violento para frente.


- Que porra é essa?


- Botou gasolina no carro?


Urrou o meu colega com a cabeça entre os bancos.


-Tomou uma no bar professor?


Falou a moça ao meu lado, soltando em seguida uma gargalhada.


Aquele estranho cortejo só poderia ter relação com a morte da menina, todos de preto, em sinal de luto. Todas mulheres. Já no final da fila, no meio delas, uma chamava a atenção com sua linda cabeleira. Passou pelo meu lado na janela, bem ao meu lado com sua cabeleira caída, encobrindo parte do rosto. Apesar do meu olhar direto ela me ignorou. Era muito parecida... Meu corpo gelou de medo. Olhei novamente para a moça no banco ao meu lado. Minha carona era alguém muito parecida, porém mais velha, mais séria e mais triste do que a moça na rua. Olhei novamente para o grupo, o dono do bar prestou reverência ao cortejo e baixou a porta. O barulho do metal me fez despertar para a voz da merendeira que me chamava.


- Como é? Está tudo bem? Você está me assustando!


- Você está branco!


- Você tem uma irmã?


- Ué? Não gostou de mim? Tá querendo saber se tem alguma igual no mundo?


E riu novamente uma risada sinistra.


Procurei pelo espelho retrovisor, e o que vi foi apenas a escuridão do fim da rua. Acelerei mudo pela estrada. O papo entre os dois foi animado. A moça foi a primeira a descer, nas margens da BR. A vi sumir por dentro da estrada de terra que levava ao pequeno bairro que se formava ao redor da antiga fazenda do século XVIII.


- Que gata! Toda cheia de malícia pra uma caipira, você viu?


- Cara, vi uma mulher igual a ela, naquela procissão.


- Que procissão cara? Tá louco é? Já tá vendo a mulher em tudo quanto é lugar?


E urrou novamente se batendo no banco do carro.


Na outra semana, nem o professor, nem a merendeira apareceram para trabalhar. Meus colegas da escola diziam que ele não havia dado notícia. No refeitório quando perguntei para uma das merendeiras sobre a funcionária nova uma senhora me repreendeu.

- Fique longe daquela moça, aquela menina é uma Matita.


Voltei para a sala dos professores com meu prato, me perguntando o que era aquilo. Aquilo não me era estranho. Foi então que o coordenador me perguntou o que havia. Então eu perguntei:


- O que é Matita?


- Ah, você ficou escutando aquelas tias da cozinha né? Essas pessoas daqui acreditam nessas coisas...coisa de caipira, de gente velha, supersticiosa e ignorante.


Aquilo não me convenceu, mas pouco me interessava expor toda a história, e me fingi satisfeito. Me levantei e fui fumar meu cigarro, mas me lembrei que o último tinha virado fumaça na hora do recreio da tarde. Fui até o bar em frente à escola, mas lá quase nunca tinha cigarros.


-Maldição!


Caminhei pela rua escura até um restaurante, que ficava em uma parada rodoviária, do outro lado da BR, a alguns metros depois do retorno. A BR estava deserta. Acendi um cigarro na frente do grande restaurante. Enquanto fumava apreciava a rodovia. O pedágio altíssimo garantia um asfalto liso como um tapete, luzes de led e placas reflexivas. Senti um estranho carinho por aquele lugar, que por anos eu cruzava, acelerava e sentia prazer em ir e vir. A cena era de uma beleza solitária, digna de um quadro de Hopper. Sem uma explicação lógica eu me abaixei e toquei o asfalto com a ponta dos dedos. Dei meu um último trago e ainda agachado apaguei o cigarro no chão. Me levantei e atravessei a pista deserta para voltar, contemplando a minha sombra no asfalto. Do outro lado, no alto da ladeira, na encruzilhada vi o estranho cortejo novamente.






Dessa vez eu estava só. Cheguei para o canto da estrada para aquele estranho cortejo passar. Tentei encarar as figuras no rosto, mas não conseguia. De alguma forma meu instinto me dizia que eu deveria permanecer de cabeça baixa, em sinal de respeito ao luto daquelas mulheres. Foi quando senti alguém me pegando pelo braço. Uma pele morena como a dos povos originais, os cabelos negros como a escuridão daquela rua, agora me carregava naquele cortejo fúnebre. Ainda sem conseguir levantar os olhos reconheci a sobrinha de Antônia. Com uma das as pernas penduradas ela era carregada por outras duas senhoras que seguiam ao meu lado. Senti pavor e tentei voltar... Foi quando vi meu corpo caído no chão da rodovia.


64 visualizações

Posts Relacionados

Ver tudo

Uma dura na virada do século

Por Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho Certo dia, quando eu ainda era jovem, estava de férias da faculdade, desempregado, duro de grana, mas sem grandes preocupações. A ausência de compromisso vali

bottom of page