top of page
  • Instagram
  • Facebook
  • Twitter
  • YouTube

Cria de Bel

  • Foto do escritor: Pivete
    Pivete
  • 26 de mai.
  • 3 min de leitura

ree

O "bem", às vezes, me parece tão limitado. Tão hipócrita, tão autoritário. E é por isso que não julgo as crianças que se identificam com o suposto vilão da história. Porque o herói — esse tal "lado certo" — quase sempre obedece a regras arcaicas, reproduz sistemas injustos e ignora o que não cabe em sua armadura. O vilão, ao menos, tem o privilégio de ser o que é. De não esconder a origem, o CEP, o rosto.


Oruam é isso. É alguém que caminha com o peito aberto pela contramão, que não se submete ao que não respeita. Isso me faz pensar sobre respeito — algo que, sim, é importante. Mas num mundo que te desrespeita o tempo inteiro, o respeito vira um contrato de via única. É como amar quem nunca te amou de volta.


ree

Às vezes, ouço os pequenos só pra lembrar quem fui. Porque neles ainda mora um pedaço meu que não se corrompeu. Ainda me sinto uma criança em muitos momentos — principalmente quando sou forçado a crescer de novo, a cada novo baque.


Sou cria de Bel. Se não fosse, seria o quê? De onde? Belford Roxo me pariu e me moldou. Pouca gente sabe, mas a primeira vez que pisei naquele solo e subi aquele morro, chorei. Chorei não por medo, mas por memória. Era como se aquele chão me reconhecesse antes mesmo de eu me apresentar. Terras fluminenses onde o filho chora e a mãe não vê. E eu vi. Vi minha mãe, vi as ausências, vi os dias em que viver parecia teimosia.


ree

Não romantizo. A Baixada é dura. É fome, é sirene, é cansaço. É abraço também — mas até o afeto vem com marcas. Eu sei de onde vim. E tenho orgulho, mesmo que esse orgulho venha atravessado por perdas, ausências, medos. A vida ali nunca foi confortável. Por isso, desde cedo, aprendi a sonhar. Quando o som dos tiros ecoava, quando minha mãe demorava a voltar do trabalho, quando o ônibus atrasava e o estômago reclamava — o que me restava era imaginar. Era sonhar com outros mundos possíveis.


O tempo passou, e fui me transformando. Morri inúmeras vezes nesses últimos anos. Me senti Belchior — um latino-americano perdido, com pouco dinheiro no banco e uma mala cheia de perguntas. Vagando por cidades, de casa em casa, tentando quebrar o ciclo de dor que me trouxe até aqui. Achei que, ao romper esse ciclo, tudo ficaria mais fácil. Mas descobri que a tragédia tem seu próprio fascínio. E que a farsa — essa que muitos chamam de estabilidade — pode ser mais cruel que a dor.


ree

Tenho sentido falta do marasmo. Da paz silenciosa que talvez eu nunca tenha realmente conhecido. Escrevo pra adiar a morte, como quem paga uma dívida infinita. E entre uma linha e outra, me escuto. Falo sozinho, converso com o eu que fui, com o eu que ainda quero ser. São diálogos curtos, mas carregados de imagens. Em nenhuma delas, infelizmente, está você — esse alguém que talvez eu ainda invente.


Lembro da escola. Daquele lugar onde o mundo ainda era vasto e cheio de possibilidades. Foi lá que nasceu o Iago, o Pivete. Foi lá que li Ferrez, Paulo Lins. Que descobri a potência da palavra e o poder da organização. Que me vi — finalmente — no espelho de uma literatura que me reconhecia. Sempre quis ser professor. Um desejo que, por um tempo, foi silenciado pela dureza da realidade. Mas cá estou, voltando ao chão que me formou. E se tudo der certo, continuarei aqui, na mesma sala onde sonhei, ensinando a sonhar.


Ensinar, pra mim, é mais que ofício — é sobrevivência. É romper o ciclo com afeto e escuta. É fazer da sala de aula um território livre, onde até o silêncio tem significado. Agradeço a cada professora, a cada mestre, a cada líder que me viu. Eu vou honrar.


ree

Não sinto falta da insegurança do Rio. Daquele estado de alerta constante por ser preto, por ser pobre, por carregar o CEP errado. Experiências como a do Igor Melo atravessam todos nós. A bala não erra endereço, o sistema sabe bem onde mirar. E quando acerta, o policial sorri. O negro é que paga, mesmo com todas as provas.


Se você discorda, tudo bem. Fé na tua caminhada. Mas eu não escrevi isso pra você. Escrevi pra mim. Pro menino que ainda sonha. Pro adulto que resiste. Pra criança que nunca se despediu.

Sou cria de Bel. E disso, eu nunca fugi.



Комментарии

Оценка: 0 из 5 звезд.
Еще нет оценок

Добавить рейтинг
logo.png
  • Branca Ícone Instagram
  • Branco Facebook Ícone
  • Branco Twitter Ícone
  • Branca ícone do YouTube

Todos os Direitos Reservados | Revista Menó | ISSN 2764-5649 

bottom of page