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Convergências Tecnodiversas: do desvelamento para a transformação cosmopolítica



Dentro do contexto da Educação, da Ciência e Tecnologia e da produção de Discurso, percebemos a prevalência, nestas áreas, de uma teleologia predominantemente monotécnica. Este desencanto chegou em um bom momento. Estávamos iludidos frente aos encantos tecnológicos que emergiram na pandemia de COVID-19, sobretudo aqueles relacionados às "novas" metodologias ativas de ensino nas escolas.

No entanto, após a leitura de alguns teóricos contemporâneos, como Bruno Latour, Yuk Hui, Grégoire Chamayou, por exemplo, aterramos e nos situamos dentro de um complexo espaço sociotécnico e político modulado por disposições tecnopolíticas organizadas pelo algoritmo. Tal percepção dentro desta Matrix ubíqua, naquilo que Merleau Ponty desenvolve, chegamos à fenomenologia da percepção do contexto híbrido da realidade atual.

Sabemos que ainda é pouco, pois, em devida analogia, nossa consciência é de um “recém-nascido” que abriu os olhos para tentar entender o que se passa no limiar de um complexo imunológico que nos dava segurança em troca de controle de nossas vidas. Sim, percebemos que as tecnologias, pautadas na monotecnicidade atual, nos desabrigam e nos desafiam. Estes dois últimos conceitos são aqueles que Heidegger demonstrava que a técnica moderna já desenvolvia: o controle das energias naturais na objetificação do mundo e consequentemente o desenvolvimento de uma teleologia utilitarista de maximização dos recursos para um fim calculado. Dizendo no zeitgeist atual, estamos dentro de esteiras digitais sendo alimentados por dados que desprendem nossa atenção em troca de envio de energias (nossos dados pessoais, nossos olhares, nossa atenção) para retroalimentar este Leviatã multifacetado que podemos chamar de complexos industriais-digitais de entreterimento e informação ruidosa presente sobretudo redes sociais.

O pano de fundo destas matrizes controladoras, da constituição algorítmica de si, é aquilo que Byung-chul Han, Grégoire Chamayou, Vladimir Safatle, Christian Dunker, dentre outros, vão desvelar (aletheia) sobre o neoliberalismo. Mais que um sistema econômico, o neoliberalismo pode ser considerado um sistema de ontologias marcadas pelo desenvolvimento individual como fonte primeira e última de energia que alimenta as engrenagens do mercado, da cultura, da intersubjetividade, e, em última instância, da nossa própria existência. Ao invés de energia direta, a produção de dados passa pela autoprodução de identidades imagéticas que dão o tom da vida e, como Guy Debord já nos alertava há mais de cinquenta anos, são os compostos relacionais de nossa vida.

A espetacularização do mundo passa pela espetacularização de si. Os ritos cotidianos se tornaram fonte de produção de imagens que vão desencadear uma rede de trocas mútuas de informações, desdobrando-se em uma rede de produção infinitesimal de imagens compartilhadas sobre nós mesmos, criando novas esferas de discurso e de políticas de identificações, constituindo seleções e gostos que, sob a lógica do algoritmo, criam as rédeas e os cabrestos da condução da humanidade na tecnosfera. Dito de outra forma, a aparência de liberdade nos enclausura cada vez mais nos próprios dados em que autoproduzimos ao falarmos de si constantemente. Nesta teia narcisista, criamos nossas gaiolas de ouro virtual, ou melhor dizendo, nossas bolhas imunológicas de gostos, estéticas, preferências que, ao invés de ampliarmos nossos horizontes, nos coloca cada vez mais em cavernas platônicas muito bem organizadas.

Como falamos anteriormente, apenas abrimos os olhos. As teias que amarram e sugam nossa energia vital, nossa pulsão criativa, nossa poiesis, ainda estão em nós. Estamos tentando tirar fio a fio, mas sabemos de nossos limites enquanto seres situados neste contexto. A arte, a educação, a vida ainda nos está presa dentro destes fios. Mas já perguntamos entre nós, como sair? Como superar este complexo sociotécnico algorítmico? Ainda estamos com respostas evasivas, talvez ainda bem ingênuas e superficiais. Mas já percebemos que é necessária uma nova postura, um engajamento heurístico, abertura e construção de fissuras e de disrupções tecnodiversas nas nossas atuais áreas de interesse. Por isso a ideia de escrever tais proposições nesta forma de manifesto ensaístico. Ou de um ensaio manifestado.

Brincadeiras à parte, o debate tridimensional é apenas um primeiro passo de organização de nossas reflexões. Não estamos sozinhos, mas dentro desta rede inicial, precisamos nos conectar com nossos convergentes a fim de fortalecer a divergência frente ao aceleracionismo e do sincronismo monotécnico, monocultural, monopolítico e monoexistencial que a tecnologia contemporânea, no contexto neoliberal de uma pseudoliberdade pautada na vigilância ascendente de Si, dente ao Outro, ao Diferente, nos impõem de forma cada vez mais sedutora.

A incorporação da própria crítica passa por isso. O desenvolvimento das Teorias Críticas nos mostra que conseguimos chegar a um nível de desvelamento bastante complexo. Chegamos aos meandros da mente, da existência humana, do discurso, demonstrando diversos e complexos mecanismos de constituição e de dominação das nossas (inter)subjetividades. Isso também, de modo infeliz, se tornou um dado de aprimoramento do próprio controle do corpo e da mente humana.

Diversas técnicas outrora criticadas e desveladas, na teleologia iluminista, se tornaram bens, valores aplicáveis e replicáveis para a consolidação e para o refino da própria dominação do ser humano. Para o Iluminismo, cujo universalismo é voluntarista, portanto irrealizável, contraditoriamente irrealizável em uma perspectiva universal. Daí sua dimensão contraditória: ser universal a partir do individual ou do voluntarismo individual. Muitas críticas decoloniais mostram a face deste ser humano universal. Tal ser humano tem gênero - masculino; tem classe social - burguesa; tem cor, raça, etnia - branco caucasiano; e tem sexualidade - heteronormativo. O ponto de vista universal parte deste condicionamento político-ontológico. Nós, seres periféricos dentro da divisão ontológica mundial, ou nos adaptamos àquilo que nos é dito como incontível - como a corredeira de um rio, ou tentaremos criar alternativas locais e diversificadas de existência, de conhecimento e de saberes.

Tomando as epistemes dominantes, como subvertê-las? Mais que isso, como construir, dentro das tecnologias, cosmovisões? Não tem como negar a técnica ocidental hegemônica. Ela veio para ficar. Política e economicamente, ela está mais forte do que nunca. As maiores empresas mundiais estão todas dentro do contexto monotecnológico. As disputas políticas atuais são políticas de tecnologia. Mas, ainda temos a coletividade, a inventividade, a diversidade e a apropriação crítica como “despertar”.

Não gostamos muito da palavra despertar pois ainda nos remete ao contexto Iluminista e etnocêntrico de estarmos valorativamente acima e superior aos demais. Nem queremos tal pretensão. Mas como pensadores do discurso, sabemos que a percepção nos remete à reflexividade muito importante dentro do atual contexto. Parar para pensar num mundo cada vez mais submerso em informações hiperproduzidas é um desafio cada vez mais importante. E pensar sobre onde estamos e para onde vamos, no fluxo informacional das redes digitais, já vale muito o esforço.

Dito isso, pensamos que, ao desenvolver uma percepção e uma reflexão (re)situada, podemos criar uma práxis transformadora e disruptiva, trabalhando elementos do desvelamento (a desconstrução e o desabrigar ainda é importante para o próprio aterramento latouriano) com práticas e ações que podem criar as fissuras e desconstruções deste castelo monotemático. A poiesis, ou seja, a arte de fazer de forma reflexiva e crítica, se pôr no lugar ao invés da mera reprodução, é um caminho a ser percorrido. Precisamos pavimentar esses caminhos. Hermes e Exus nos guiarão nesta cosmotécnica, baseando-nos na diversidade ontológica, imagética e analítica de nós mesmos.

Dentro das esferas de interesse de discussão, como bem dizia o velho Paulo Freire, ainda é fundamental o desenvolvimento aprofundado das competências técnicas e disciplinares para a própria transformação enquanto ser-formador. Vamos, portanto, em busca de destrinchar práxis (Marx e sua rede sociotécnica estavam corretos em sua proposição de análise do contexto concreto para o desenvolvimento de uma teoria pautada na ação e uma ação pautada na reflexão teórica) disruptivas e tecnodiversas. Como fazer? Ah, isto saberemos no percurso, na ação-reflexão. Mas é a partir desta perspectiva que agora pautamos o nosso engajamento daqui em diante.


Coletivo Terral

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