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O primeiro dia de serviço é um reconhecimento de terreno. O que fazer e como fazer dependem do espaço, disposição material, e um pouco de movimento. Organizei tudo num plano. De uma ponta a outra, entre portões e telhas, 40 metros de muro compacto. Cimento envergado para fazer divisas. O dono T. M. me disse que tinha tentado, e se cagado todo. Surpreso que o branco da cal respingou colorindo. Um homem naquela idade, bem nutrido, e com o cérebro em perfeito estado deveria supor que isso acontece. Mas a vida tem dessas. Logo ele se colocou a negociar valores, dias, serviços.

T. M - Como vai ser a diária?

Dimas - Para caiar? 100. Coisa rápida.

TM - Mas temos que ver isso aí. Tem que ser bom pra mim o valor. Eu tô pagando.

Dimas - Tem que ser bom para os dois. Sem pagar, sem serviço. Eu estou trabalhando.

Pensei que eram dois dias, pra fazer pegar bem no muro. Gosto de saborear as coisas. Fazer a cor surgir. Acho que a visão do feito é tão boa para quem faz do que para quem contrata. Há um alcance, uma conquista. Um tempo vivo. E por isso, dei garantia do trabalho. De uma ponta a outra, pequenos problemas para acertar. E entre muitas conversas, ouvia ele dizer sobre coisas que estavam fora do prumo. Acertos além do normal, coisas já diferentes a serem feitas. Mais do que o serviço seria. Não deixei faltar.

Vi aquilo tudo como um grande laboratório. Tudo era observável. Tudo era entendível. Tudo era diferente e ao mesmo tempo semelhante. Era um vizinho. Conhecia ele por fora, e agora estava dentro. Observava detalhes em coisas que antes eram borrões de memória. Sua casa, ascética. Parecia feita à uma espécie de ficção de cimento. Dois andares, planejada. Entrada para um jardim, duas passagens para o fundo. Chão de porcelana. Sem muitos efeitos vivos. Um silêncio. Cachorros presos. Tudo parecia estar em sentido. Posto às ordens do Tenente. À casa ele se referia como um “filé de badejo”. Ouvi essa expressão em sua conversa com o homem da imobiliária, que tinha chegado a sua casa pouco depois de mim, enquanto acertava alguns dos buracos na base do muro. Coisa comum.

Na rotina valorizei o bem da coisa. Trabalhei com cuidado. Cuidei para que o combinado fosse cumprido. Enquanto ele se gabava para o homem da imobiliária, massei nas partes. Vi uniforme e preparei outros movimentos. Ele percebia de longe os meus. Talvez já pensando de longe em me colocar para fazer outros serviços. Não entendia que tudo aquilo era parte de uma mesma coisa. Preparação de um antes para o depois. E logo me lançou a outros serviços. Vamos ver… vamos ver… de cá pra lá, surgiram telhas, frisos de porta, portões. Em um deles ele misturou gasolina com verniz. Tudo borrado, mal feito de quem não sabia. Ele com toda a postura de autor, não justificava, insistia. Vi tantas coisas, que de um dia para o outro tive que parar e caiar o muro.

No final do dia nenhum acerto. Só pagava na hora do almoço do dia seguinte. Parecia ter o costume. Não quis saber de fazer diferente. De manhã, em cada dia, era uma cena comum. A tinta acrílica que ele trouxe do fundo de casa não aderiu à madeira do portão. O esmalte branco com que ele estava pintado fez escorrer destoando o branco do fundo do branco novo. Sua insatisfação se fez presente sem rodeios. E ele, com a camisa do grupamento de infantaria paraquedista, vibrava em um tom de advertência. Como se algo fosse me acontecer já que não ficava no seu agrado.

T. M - Isso aqui, olha. Não pode. Eu que tô pagando, não posso te ensinar a fazer. Isso aqui tá uma merda, concorda comigo?

Dimas - Isso acontece. É normal. Trabalhar com tinta tem dessas coisas. Vai pingar, mesmo com jornal no chão. Acontece. Mas é fácil diluir e limpar. Quanto às manchas, como eu te falei, a tinta que você me deu não serve.

T. M - Mas temos que usar o que tem. Não é isso? Eu quero vender a casa, não quero gastar dinheiro. Temos que inovar. É assim que se diz no quartel. Então é isso que você tem que fazer.

Dimas - Eu estou sendo sincero e honesto com você. Assim não vai ficar bom. Demanda mais tempo. Precisa lixar, usar outro tipo de tinta. Assim você só tem aparência.

T. M. - Vai fazer e depois a gente vê. E faz um rodapé cinza também. Nessa medida da primeira madeira do portão. Para esconder os buracos. Vai ter visita na quinta feira e no fim de semana. É bom que você esteja aí. Eles vão te ver trabalhando.

Dimas - Vou continuar o serviço. Quando terminar te chamo para você ver.

T. M. - Entendeu o que eu falei garotinho?

Dimas - Entendi.

Senti uma gastura com aquele ambiente. Mas colocava meus fones no ouvido e ignorava a presença dele. Tentava me comunicar com os cachorros, me aproximando, assobiando de longe, e em pouco tempo se acostumaram comigo. Latiam de longe. Abanavam o rabo. Quando conseguiram fugir, se aproximaram. Levei o trabalho com rigor. Enquanto o dia passava, olhava as nuvens no céu, sem grandes expectativas. O que elas traziam com o vento, suas formas na pintura, imaginava seus movimentos. Voltei a estar diante do muro, pronto para executar os finalmentes, o combinado de início. 40 metros adiante, cal diluído. Tudo pronto. Fiz tudo de que ia começar. A cal é um pó de base. Serve para proteger da umidade e evita o aparecimento de fungos. Diluído reflete o seu branco seco. Um composto químico, calcário esfarelado. Normal que na aplicação respingue em um canto ou outro. Coisa simples de resolver. Atento, carregava no bolso um pano para secar os excessos. Na paz, concentrei os movimentos com a respiração. Via os detalhes. Os rios que se cruzavam verticalmente. Carregando os primeiros traços de cor. Escorria, marcando seu percurso. Evitava os fins prolongados. Uma mão sobre a outra, até que tudo ficasse igual. De começo, molhado, depois caiado. Assim foi, do contorno do jardim, até chegar ao corredor.

No corredor, antes de começar, vi as fissuras. Antecipei o movimento, e segui o rumo. Descasquei toda a área. Encontrei as bolhas. Lixei tudo até ficar homogêneo. Emassei. Tudo conforme o necessário. Sem maiores problemas. Enquanto esperava secar, olhei para as telhas que cobriam o muro. E dei uma lixada para começar a pintura. Ali do alto da escada percebi o vento que vinha do leste. Era chuva forte. Fragatas bem lá no alto. Fugindo do litoral ou jogando suas asas para o interior. Avisei que com chuva que chegava não tinha como continuar. O risco era grande e não serviria. Poderia sujar o chão, ou estragar o que já se tinha feito. Expliquei para que entendesse. Sabia do que falava. Não por mim, mas pelos mestres pescadores da praia de Itaipu que me ensinaram. T. M. claro que duvidou.

T. M. - Faz isso que a gente vê depois. O que importa agora é continuar. Quero isso tudo pronto até quinta. Como eu disse, quero vender a casa. O que importa agora é que fique diferente do que está. Depois, quem comprar que dê um jeito. Se pintar vai ficar bom né?

Dimas - Depende do que você considera bom. Não vai ficar da melhor forma. Vai mudar de aparência. Eu lixei, a tinta vai pegar. Mas com chuva pode estragar tudo. Se quiser posso começar a cal no murinho dos fundos. Como é a primeira mão não vai ser problema.

T. M. - É, faz isso. Adianta isso pra mim. Com esse vento pode secar mais rápido também. Você não acha? Antes de chover o vento secar? O que importa agora é isso feito, direitinho. Não quero ficar falando. Tendo que te ensinar o seu serviço. É com capricho? Tem que ser no capricho. É como fazemos na caserna.

Dimas - Beleza. Vou adiantar aqui. Depois te chamo.

T.M - Me lembra de te mostrar as janelas que eu passei verniz. Vou acertar com você pra fazer pra mim também.

Ali da sacada, de onde ele estava, eu já via os borrões. Borrões escuros, que denunciaram o desperdício. Enquanto gritava para os cachorros, quis fazer um assunto. Contar uma história. O ouvi de costas enquanto continuei a caiar o murinho dos fundos. Observava os cantos, delimita os campos de agir, preenchia lacunas. O movimento não se encerrava, sem que a cal fosse revirada no fundo do balde. Movimento contínuo, 10 metros na distância para a esquerda. Enquanto ele contava:

T.M. - Um dia eu estava na frente de casa. Na sacada também. Avistei mais ou menos nessa distância, em que está eu e você, uma pessoa agachada. Assim mesmo. Isso perto do meu muro. Balançando o mato. Ficou ali uns 30 minutos. Comecei a desconfiar. Tô eu aqui, avisando para sair. A pessoa não responde. Passou 1 hora. Já tinha bebido os meus aqui. Peguei minha pistola e mandei o primeiro. A pessoa apareceu, me olhou e saiu correndo pro final da rua. Depois fui saber quem era.

Dimas - Quem era?

T. M. - Era uma moça que mora ali na curva. Filha daquele rapaz que morreu. Aquela que carrega um monte de lixo pra dentro de casa. Acho que é maluca.

Dimas - Sei quem é. Família antiga aqui. Ela é esquizofrênica.

T. M - Dou graças a Deus que não acertei. Imagina o remorso que eu ia ficar. Ainda bem que eu errei. Se eu mato ela nunca ia me perdoar. Mas, depois me lembra de falar com você onde eu quero passar verniz.

Ouvi lá de dentro que tinha outra pessoa na casa. Uma mulher. Apareceu já passando. Desapareceu por entre os cômodos. Não sei se fingindo se esconder, ou evitando de encontrar ele diretamente. Ele a chamou, escutei ele dizer.

T. M.- Olha o vidro da janela. Aquilo está limpo?

A mulher respondeu se esquivando, já antecipando aos finalmentes. Largou a vassoura com pano molhado que passava pela casa num canto. Catou um pano, borrifou um líquido sobre ele. E tratou de ilustrar toda a vidraçaria.

Foi nesse ínterim que ele saiu de casa e foi até mim para acertar o serviço. Já era o fim do dia, 17 horas. De minha parte, considerava finalizado o dia. Tudo nos conformes. Material guardado. Acertaria os detalhes para o fim, no dia seguinte. Ele veio caminhando pelo corredor. Braços para trás. Inspecionando meus fazeres. Tinha percebido o bom andamento. Parede lisa e caiada. Muro caiado. Os fundos da casa também. Pegou no dinheiro e me olhou. Perguntou (na dúvida?) quanto era minha diária. Tentando acertar para uma meia no dia seguinte. Apontando já para outros pontos na parede, onde queria uma pintura de tinta normal. Numa delas, ele se queixava da mancha de óleo queimado na parede. De sua autoria.

Dimas - Minha diária aqui é 100. Para caiar. Qualquer outro serviço vamos ter que negociar os termos. Dependendo do que você quer podemos fazer em meia diária.

Com um sorriso no canto da boca ele começou a falar

T. M. - Mas aí você chega às 8 horas? Sai que horas?

Dimas - Meia diária, significa meia diária. Metade do valor é a metade do dia.

T. M - Você acha que dá para fazer? Preciso disso pronto. Amanhã vão visitar a casa. Se precisar de você por mais tempo, dependendo do serviço, como vai ser?

Dimas - Não depende do serviço. Dependo do tempo para fazer as coisas bem feitas, de acordo como elas devem ser feitas. E para isso eu cobro o equivalente. É o preço.

T. M. - Tá bom, vamos ver garotinho. Vamos ver isso aí. Olha só, vi aqui a base do murinho, está com uma mancha verde.

Ele pegou uma enxada no canto e começou a raspar sobre a superfície do muro. Esperando resolver o problema. Em vão, não conseguia. E eu já me permitia rir dessas investidas. Percebi o quão ridículo ele se prestava com aquele personagem.

T. M - Viu, é por isso que eu fico puto. Essas sobras aqui. Esse esverdeado. Não pode. Eu tô te pagando pra resolver isso pra mim. Preciso pegar uma enxada pra te mostrar como faz. Tá vendo? Concorda comigo?

Dimas - Eu passei a escova de aço. O esverdeado ainda vai aparecer durante um tempo. A cal vai puxar. Isso demora um tempo. Amanhã você vai conseguir ver.

T. M. - Tá certo. Vamos ver amanhã. Você chega às 8 horas, não é?

Dimas- 8 horas estarei no seu portão.

T. M - Toma seu dinheiro. Acho que esse vento vai secar essa cal que você passou antes da chuva chegar. Não acha? Não tem problema se chover também. Tem que mudar a aparência para amanhã. Com você pintando e o material espalhado, a pessoa que vai vir amanhã ver a casa não vai reparar tanto assim. Pode ir, até amanhã.

Dimas - Até amanhã.

No caminho pra casa, fui caminhando. Refletindo sobre muita coisa. Passados recentes. Tempos de faculdade, coisas que aprendi. Tudo fazia mais sentido agora. As coisas não tinham acaso, ou eram fruto de um mal entendido. Como tudo aconteceu em ordem, não me lancei fora do tempo. Me pus a analisar naquela noite as atitudes do Tenente. Via antes de tudo uma necessidade de afirmação da autoridade, um poder da força. Uma dignidade travestida pela coerção, pelo enfraquecimento do outro. Fazia mais sentido ainda, quando me lembrei de algo que ele deixou escapar sobre o seu passado. Vinha do Sul. Era herdeiro de terras, de um grande fazendeiro, que tinha seu mando exercido sobre uma pequena cidade próxima a Caxias do Sul. Gabou-se satisfeito deste trisavô. Feliz pelas conquistas de sua vida. De quem nunca trabalhou para si, antes que os outros se vissem obrigados a fazer.

Me afastei dessas ideias, enquanto caia a noite. Decidi correr. Fiz um longo percurso. Com força, mantive o ritmo por um longo período. A respiração no prumo. Afastando as ideias de limite. Me impulsionei intensamente. Subia ladeiras como se fossem descidas. Dava saltos entre as calçadas. As ruas se cruzavam sob os meus pés. Os transeuntes não me viam. Eu era o silêncio da noite. A chuva caiu como de esperado. E não me incomodei com ela. Tirei a blusa e deixei correr pela pele como uma benção. O vento frio me aqueceu, e levou todos os meus medos embora. Avistei de longe um ponto alto. Mirei nele com o espírito. Aumentei o ritmo. Evolui. A mente firmou o corpo, e o corpo já se guiava. Sem fraquezas.

Na manhã do dia seguinte ainda senti essa força presente em mim. Cada passo era firme. A postura reta. O olhar, penetrante. Renovador. Determinado. Preparei o meu café como de costume. Um copo de limão com água. Bananas, granola e mel. Minutos depois uma sensação de desconforto. Suspeitas de que o dia estava torto. Coloquei meu macacão e fui. Bati na porta do Tenente às 8 horas. Como combinado. Ele a abriu. Não olhou em meus olhos. E fez com o braço para que eu entrasse.

T. M. - Bom dia!

Dimas - Bom dia! Vamos ver o serviço de hoje?

T. M - Sim, vamos lá atrás.

Dimas - Viu se a chuva chegou antes ou depois da cal secar?

T. M. - Vamos ver agora. Olha perto do murinho. Ontem eu tive que ficar limpando isso tudo aqui. Respingou em tudo. Ficou uma merda. Vai ter que fazer outra vez. E a parede também que eu te pedi. Respingou em tudo.

Dimas - Eu falei a você sobre a chuva, que iria escorrer.

Já me respondeu sem disfarçar, revirou o corpo apontando para as partes do muro já elevando o tom de voz.

T. M. - Isso é serviço de preto!

Olhei para o relógio e pensei: “8:10”.

Dimas - Vamos parar por aqui. Acabou o serviço agora. Isso que você falou eu não posso admitir. Vou finalizar o que já tinha combinado. Pela minha palavra. Mas não aceito receber seu dinheiro. Não trabalho para um racista.

T. M. - Que? Como assim? O que eu quis dizer não foi isso. Tá tudo sujo, era isso. E eu não falei serviço de preto. Falei serviço preto. É diferente. E se você olhar, tá respingado nas folhas. Tá ou não tá? Eu fiquei limpando, passando a vassoura. Não pode assim, porra! Olha você, concorda comigo?

Dimas - Não! Eu te avisei sobre a chuva. Que iria acontecer. Depois eu resolveria. Agora, como eu disse, não posso admitir mais nada. Acabou o serviço. Fiz um juramento e não quebro a minha palavra. Sou um professor de História. Sei onde você quer chegar.

T. M. – E daí? Minha irmã também é professora. Você quer ver hierarquia mesmo? Olha lá, olha para as plantas. Está tudo branco. Serviço preto.

Dimas - Isso nem tem lógica. Você me ofendeu. E ofende amigos meus. Não tem conversa. Minha palavra não tem preço. E você não vai me comprar, nem me convencer do contrário. Farei o combinado de antes, pela minha palavra. Depois vou embora.

Vi que ele não se sentia nada bem com as palavras que escolhia. Minha reação foi espantosa para ele. Devia estar acostumado a ter esse tipo de atitude. A não ser repreendido. A ter essa suposta força, uma autoridade torpe, que esperava minha cumplicidade. Jamais deixei baixar minha cabeça. Nem com seu pedido de desculpas que veio no desespero, um último recurso. Um pequeno passo. Mas nada que me fizesse voltar atrás.

Dimas - Posso até aceitar seu pedido, mas será apenas para que essa discussão acabe. Não vou esconder o que eu sinto. O que eu senti com as suas palavras. Isso não posso fazer. Não é da minha índole. Está feito. Eu sou preto. E não temo as suas palavras. Elas não me atingem. Se você soubesse fazer, teria feito. Mas depende de alguém que faça isso pra você. E eu não estou nada disposto a trabalhar para um racista.

Depois disso ele apareceu ainda mais ridículo. Cheio de palavras, me chamando de amigo, forçando relações. Me oferecendo coisas. Andando ao meu lado enquanto terminava o prometido. Ele elogiou o meu trabalho no portão. Fingindo contato, querendo apaziguar, estabelecer uma trégua. Me firmei, recusava. Pedi distância para terminar. Já estava ridículo. Ele veio lá de dentro. Altivo, com um pote de ovos de codorna nas mãos, me ofereceu com os olhos de lado. Um deles no garfo. Pedindo clemência. Ali era a hora, a minha vez. Não pedi licença, fui embora. Deixei tudo onde estava. Olhei para ele nos olhos. Firme. E percebi que ele já não acompanhava o meu ritmo. O que dei foi a resposta, ao mesmo tempo que retirava o chão dos seus pés. Saboreei sua queda, sem nenhuma pressa de vê-lo se esborrachar.

Dimas - Tudo muito fácil pra você. Suas palavras, suas posturas. Desde quando eu cheguei tenho percebido. Não há respeito. Quer se sentir forte sobre os outros. E você espera que aconteça comigo. Você quer me cobrar o silêncio. Abaixar minha cabeça. Curvar o meu corpo. Ter minha força nas suas mãos, fazer dela o que quiser. Mas não me conhece. Não faz ideia de quem eu sou. E do que me move. É contra isso que eu luto. Pessoas como você eu vejo a fraqueza de longe. Há tempos. A mesma fraqueza de antes. Depende da cor para se valer. Mas meus valores são outros. Meus ancestrais são minha força. E nela você não pode tocar. Aqui você não me alcança. É pequeno. E o que diz é vazio como a sua alma.

Vou embora. Não quero o seu dinheiro. Racista!

Deixei o Tenente falando sozinho nos fundos da casa à venda. Saí pela porta da frente. Cabeça levantada, olhos fixos no horizonte. Aos poucos recuperava alguns sentidos. Percebi o som dos fones atingindo meu ouvido. Tocava Exu do Blues. Enquanto caminhava pela rua, volta pra casa, a voz de fundo dizia:

“O que é ser um Bluesman?

É ser o inverso do que os outros pensam

É ser contra a corrente

Ser a própria força, a sua própria raiz

É saber que nunca fomos uma reprodução automática

Da imagem submissa que foi criada por eles

Foda-se a imagem que vocês criaram

Não sou legível, não sou entendível

Sou meu próprio Deus, meu próprio santo

Meu próprio poeta…

Se você não se enquadra ao que esperam

Você é um Bluesman”


Por Ademas Pereira

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A consolidação da urbanização brasileira ocorreu em meados da década de 1970, contemporânea à formação das primeiras metrópoles e expansão das cidades médias. O censo do IBGE, divulgado no início daquela década, demonstrava em números o acréscimo significativo da massa populacional que dava nova forma e função a esses centros urbanos. No horizonte das iniciativas e projetos de futuro para um Brasil moderno, a urbanização era um passo necessário. Rumo estabelecido em promessa política com a alcunha de nacional desenvolvimentismo, rumo este que, em paralelo a industrialização, se fazia enquanto um sinônimo da realização do progresso. Neste processo, trabalhadores pobres, de diferentes origens, se concentravam nas franjas dos grandes centros urbanos industrializados, como Rio de Janeiro e São Paulo. Motivados por promessas de um futuro melhor, alguns deles sucediam verdadeiras peregrinações, vindos de diferentes estados do nordeste, com o objetivo de se fixar nas áreas em que a diversificação e dinamização da economia oferecia, ao menos em tese, melhores condições de sobrevivência. Cenário este já retratado em 1933 por Tarsila do Amaral, em seu quadro “Operários”.

A questão urbana no Brasil permanece presente. Urbano sem dúvidas, ele se tornou. Mas a custo de que? De quantos? 50 anos depois, a cidade, emergente, é o lugar comum, cotidiano, em que vemos e vivemos a desigualdade. Nas encostas dos morros, estampado nos jornais, a cor e o sangue da desigualdade. Brasil dos nossos dias. Que um dia sonhou ser um país de todos, mas esqueceu, ou escolheu esquecer, o seu passado, suas origens. O processo de urbanização, a formação das cidades, acompanhou os ímpetos da modernidade. Esta, por sua vez, foi a esperança infantil de se alcançar intencionalmente um novo lugar no tempo. Abandonar suas raízes agrárias. Distanciar-se do latifúndio, da lavoura arcaica. O futuro, viria às pressas. Então na espera do progresso, foi estampado na bandeira. Projeto de um novo Brasil. Mas como? A custo de que? De quantos?

Indústria e cidades são simbiontes. Para crescer, uma precisa da outra. E estas das gentes que vivem e produzem. A custa das vidas, de muitas delas, a cidade entrelaça o trabalho à produção racionalizada, moderna. Ela faz surgir o progresso, enquanto anseios humanos. Demasiadamente humana, é como esta surge. E não apenas por uma única razão. Se falamos em pares, fica mais fácil a compreensão. A desigualdade tem sua origem na ganância. A ganância, no dinheiro. O dinheiro que é poder. Com ele, se compra e se vende. Se compra o trabalho, que se vende, e o futuro. Se rende, é só para alguns, poucos. E talvez esses nem conheçam a cidade que deve ser vista. No Brasil, a industrialização foi financiada com dinheiro dos cafeicultores. Herdeiros da riqueza gerada com a escravidão. Os herdeiros da escravidão, descendentes, nem a terra tiveram direito. Ficaram nas encostas.

O Brasil é um país continental. Mas a terra sempre foi o seu problema. Terra onde estão fincadas suas raízes. Raízes que persistem em se aprofundar. Desta terra, com tantas riquezas, se extraiu ouro branco, amarelo e o negro. E para isso se fez transbordar o sangue das gentes. Por terra, se fez guerra, por terra se conquistou. A nobreza se fez por terra, e através da guerra no passado nos governou. Herdamos da colonização uma sociedade hierarquizada. Sociedade que considerava o trabalho manual um defeito mecânico. A raiz da desigualdade, era, portanto, a mesma da riqueza. O trabalho. Proveito de uns. Direito herdado. Pensão vitalícia. Exploração feita através da terra, da propriedade, e da segregação. Esta indústria arcaica, a lavoura, deu forma às primeiras vilas, aos primeiros núcleos de poder, que dariam origem às cidades. Historicamente, foi através da cidade que se governou o interior, se conquistou as gentes e se fez a colonização, por generais de milícias.

Tempos se passaram, aproximadamente quatro séculos, até que abolida a propriedade sobre corpos negros, os escravizados, enraizados nessa terra, livres, ficaram a ver navios. Não mais em negreiros em que se fez o tráfico para o cativeiro. O novo cativeiro, era o social. O poder não se rendia, a terra herdada não se dividia. A República foi proclamada. Reação provável à abolição. Sem um plano de reforma da estrutura fundiária, muitos deles permaneceram nas fazendas, trabalhando para seus antigos senhores. Outros se amontoavam nas encostas, formando as periferias. Criminalizados por seus hábitos, suas culturas, ficaram em zonas de exclusão, onde a segregação e o preconceito eram sintetizados pela cor da pele.

Lembram-se dos sonhos de modernidade e progresso? Já estavam se realizando. Com eles o Brasil se tornaria uma nova sociedade. Era a esperança que vinha a navio, importando o branqueamento. Imigrantes europeus ocupavam as cidades, que rapidamente cresceram e se encheram dos mais diferentes tipos de gente. No fundo, permanecia o poder das oligarquias, dos grandes proprietários de terra, industriais. A hierarquia do campo moldava a cidade, e o processo de urbanização. A mestiçagem, vista como positiva, essência do povo brasileiro,, era glorificada como a evidência de que vivíamos em uma democracia. As ruas das cidades aos poucos adquiriam bem aos poucos um tom popular. Ocupavam as ruas os movimentos de massa. Suas festas. O carnaval. A cidade se enchia de cor. A rua, o espaço urbano movimentado, dava novos sentidos ao Brasil. Tempos se passaram, até que esses sinais pudessem se inverter. Aparentemente abandonando o seu passado rural, mas ainda arraigado a ele, surgiam as estradas de rodagem, o automóvel e o confinamento urbano. O sonho da capital. Neste novo solo, mais concreto, a raiz das desigualdades estava encoberta.

Eis aqui este novo lugar no tempo. Feito no improviso. O Brasil delirou, enquanto os campos se esvaziavam e as cidades se enchiam, em se tornar uma potência. E foi, sendo, tornando-se foi através da exclusão social e da segregação. Formas de se manter os princípios e os valores de uma sociedade hierarquizada. Dos inumeráveis golpes militares que sofreu, o último, até então, que durou 21 anos, foi reação ao mesmo tempo reação às propostas de reforma agrária e ímpeto modernizante. Uma nova raiz para um novo tipo de sociedade, uma nova forma de exclusão social. A crise urbana foi a própria urbanização sem planejamento, desigual, propositalmente. Periferias e conjuntos habitacionais para os mais pobres, beiras de praia e condomínios de luxo para classe média. Jardins para a elite. Foi este o progresso atingido pelo golpe. Pela força da desigualdade histórica. Pelo amor ao poder e à força.

Em meio a Ditadura Militar, milhares de brasileiros passavam fome, não tinham casa. Eram torturados, física e psicologicamente. Tolhidos de seus direitos políticos fundamentais atuavam na resistência indireta. Outros partiram para a luta armada. Os artistas se engajaram na luta democrática. Narraram as ruas, levaram às ruas a voz que precisava ser ouvida. Nem todos eram conhecidos. Muitos permaneceram anônimos, como a cidade faz acontecer quando se está junto à multidão. Alguns deles usavam os muros da cidade para expressar sua revolta. Outros a música, o teatro, o cinema. “Gota D'água”, peça de teatro de Chico Buarque e Paulo Pontes, narra a história de Joana, mãe pobre abandonada num conjunto habitacional, de uma cidade que a faz anônima. Mãe, que retira forças de sua dor, para anunciar o fim, a gota que falta, a maré que se retrai e impulsiona a ressaca. E em único ato reverte o curso da história. Se juntaram ao coro democrático os movimentos sociais, as massas de trabalhadores industriais e os grevistas. Com eles as ruas se juntaram nas manifestações das diretas. Com eles nas ruas a democracia venceu.

Herdamos esse passado. Herdamos essa democracia. Hoje, fazemos as cidades, e damos novos sentidos a ela. E mesmo que alguns façam apologia aos crimes históricos dos militares, nas ruas o movimento de oposição se articula. Mostrando que as cidades podem ser reinventadas. E elas impulsionam a transformação. O meio urbano reflete a vida humana como um prisma. No dia 24 de Junho de 2021, manifestantes incendiaram a estátua de Borba Gato, bandeirante conhecido como um dos símbolos da fundação de São Paulo.

Hoje as ruas mostram a recusa do povo em relação a este passado, mandando um sinal para o futuro. Prova de que a cidade como a história é cheia de encruzilhadas que oferecem caminhos possíveis para serem trilhados. Os passados são presentes. E a luta é dura. Hoje vemos o regresso conservador se manifestar na política institucional e no cotidiano. As opiniões dos tiozões de padaria se tornaram argumentos políticos viáveis. Enquanto uns defendem o progresso predatório a qualquer custo. No passar da boiada. Os mesmos que defendem a eliminação das comunidades indígenas e dos seus territórios. A PL. 490 é mais uma expressão desse passado arcaico insolúvel. Grilagem em terras indígenas, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, acompanham um movimento de segregação nas cidades, com os novos planos urbanísticos sendo votados pelas prefeituras a fim de favorecer a especulação imobiliária. Estamos diante de um impasse. Enquanto rangem no fundo da sala as ameaças de golpe por parte de Bolsonaro e seus Generais Aliados, o passado se faz presente. Deseja romper o tecido do tempo. E nós, sabendo que o presente é autor do passado e do futuro, devemos agir. É preciso imaginação para se compreender o tempo e mais ainda para criá-lo.

Disseram certa vez que a catástrofe dá início ou põe fim a um tempo. Pergunto se hoje vivemos um princípio de futuro ou se já rompemos com o passado. De qualquer forma, o que existe é um novo desafio, um novo mundo, um “novo normal”, novas possibilidades, outros caminhos, cidades ainda mais anônimas. Sem rumo. E cada vez mais como James Joyce vejo que a história é um pesadelo ao qual estou tentando acordar.


Por Ademas Pereira

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Fala MeNÓzada, cheguei com pé na porta. O título já mostra que, como me falaram uma vez nestas lives da vida (redundâncias tecnológicas), eu seria como o Coach do Caos… 

Ironia, a mais fina flor da crítica, é fundamental para minha postura. Com um sorrisinho de canto de boca, inicio o meu debate sobre educação questionando seu fim. Oras, eu sou o colunista de educação, e já implodirei a minha própria coluna? Sim, meus caros, no momento em que escrevo, todo processo no qual estamos acostumados, desde a socialização, o processo de interação, apreensão da realidade e aquilo que chamamos de realidade, não será nada mais como antes.

Não fui eu quem quis criar essa zorra toda, tampouco foi “do nada”. Mas, um fato histórico para que o velho edifício da educação formal implodisse de vez, foi a “pauta mundial, o megaevento” : a pandemia global da COVID-19.

É óbvio que nada estava bom, mas com as medidas de isolamento social, vimos que o modelo tradicional, cartesiano (1), alinhadinho, todo quadradinho, não faz mais jus às atuais condições terrestres. O pensamento derivado de seu modelo analisa a nós, os seres humanos, como vasilhas vazias prontas para despejarmos todo tipo de conhecimento, este qual irá nos condicionar a tomar atitudes dentro daquilo que nos foi ensinado.

Pois é, meu nobre, este tipo de modelo ainda é dominante em nossa sociedade. E tem gente que ainda acredita que funciona. Mas, a pandemia… Voltamos ao debate.

A pandemia institucionalizou, em uma escala global, a mediação tecnológica como mecanismo de manutenção do ensino e da aprendizagem. Se antes o ato de ensinar era basicamente transmitir todo tipo de conhecimento para outra pessoa, este tipo de construção já não nos é suficiente. E se aprender basicamente significa o ato de adquirir conhecimento e mudar nosso tipo de comportamento ou atitude perante uma situação (antes aprender a dirigir, por exemplo, nós apenas sabemos gritar, e depois, aprendemos a gritar com o sujeito que nos está a frente, atrapalhando nosso caminho), percebemos que existem diversos outros tipos de aprendizagem. Mas que há, de certa forma, um limite nas formas atuais de aprender.

Ou seja, a pandemia foi a cereja do bolo para mostrar a crise da educação que vivemos. No Brasil, além desta crise existencial, todos os problemas de estrutura da educação, desde os níveis familiares, vicinais, comunitários e os institucionais – tendo a escola como referência principal – tiveram rupturas definitivas.

Eu, como educador há mais de dez anos, e aprendiz desde quando me conheço como gente, já percebia as fragilidades existentes desde sempre. Mas, como pensador, refletir sobre o modo de educação atual é fundamental para a gente repensar e refletir (2) sobre que futuro queremos para nós e para nossos descendentes.

E aí entra a tecnologia… Muitos pensam que ela é a solução de todos os problemas da educação. Mas é apenas uma ilusão achar que a tecnologia é um mero instrumento de aperfeiçoamento das nossas capacidades. Ela também é uma serpente chocada de um ovo mais perverso. A tecnologia também é um meio político de controle, manipulando nossos pensamentos e condicionando nossos modos de pensar, a partir de esquemas computacionais construídos e desenhados para determinado tipo de estímulo e resposta. Ou seja, nós entramos em “tubos” bem desenhados e muito atraentes, mas nem sabemos para onde ele vai realmente nos levar e tampouco quem construiu já previu todos os caminhos possíveis. Vivemos afogados em um maremoto de informações, a dizer, uma infodemia.

Ao invés de libertar, a educação (3) numa perspectiva tecnocrata, otimista demais, relega o problema atual das fake news, da desinformação e do negacionismo como meros ônus a “libertação tecnológica”, e que nós, seres civilizados, conseguiremos superar isso usando as ferramentas digitais com organização política, diálogo e esclarecimento.

Mas, como disse no começo, não creio que apenas com o uso “bem intencionado” conseguiremos nos desvencilhar destes “grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil…” (4). Muitos pensadores contemporâneos nos sinalizam que devemos ir, além da mera denúncia, mas da apropriação e da construção de alternativas. Isto de fato é aprender no atual contexto que vivemos. É saber usar, a poiesis (5), a arte de saber-fazer e (des ou re)construir caminhos verdadeiramente libertadores para nós e para a Educação como um todo.

A partir desta reflexão que tentarei trilhar esta coluna. A educação que conhecemos, de fato está em extrema unção. Basta desligar os aparelhos – literalmente – e enterrá-los. Mas a educação é uma condição singular de nós, seres humanos. Somente somos o que realmente somos devido sermos educados para ser. Então, nesta perspectiva multidimensional da Educação é que iniciamos nosso novo caminho. Como Hermes, para a Filosofia Grega; ou então como Exu, para a Cosmologia Afro Brasileira, mostrarei caminhos, encruzilhadas, desvios e possibilidades. A escolha de seguirmos por tais caminhos que, com certeza traz medo, insegurança e outros sentimentos de dúvida, pois tudo é novidade, é nossa. De livre escolha.

Vamos cumprimentar o Mr. Mayhem (6) e tomar um café com ele.

Antessala do Hades, março de 2021.


Por Robson Campanerut da Silva @sociocampa


Notas:

1 Cartesiano deriva de René Descartes, filósofo iluminista que construiu boa parte do arcabouço da forma de construção do conhecimento moderno. Sua frase mais conhecida é: Penso, logo existo

2 Refletir, aqui, uso no modo de “Diante do espelho” também, naquilo que a Sociologia chama de reflexividade: momento de analisar o contexto em que vivemos, mas, também, o que nós somos e no que estamos nos tornando ao viver aquele contexto analisado.

3 Tecnocracia é um sistema de organização política e social fundado na supremacia dos técnicos, da tecnologia e dos sistemas derivados dela.

4 Trecho do nosso Hino da Independência. Quem conseguir de primeira entender os sentido deste verso, eu te dou um doce. Somos escravos da própria linguagem oficial.

5 Poíesis (do Grego Antigo: ποίησις), em português poíese, relacionado à técnica “poiética” (poética), indica a ideia de criar ou fazer. Poiesis tem um componente forte que é a criatividade e ressignificação humana. O brasileiro é tão bom em poíese que temos um termo próprio para isso: a gambiarra. Nas próximas edições poderemos aprofundar o significado e os usos da gambiarra.

6 Mayhem é um termo que significa caos, confusão, desordem. Na série “Sons of Anarchy”, os detratores da gangue de motociclistas eram, num eufemismo bem sarcástico, levados a conhecer o Mr. Mayhem.



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