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Samba é resistência, não covardia!

Por Iago Menezes e Letícia Costa



O samba é um movimento de resistência, não de covardia. Trata-se de um gênero musical brasileiro que surgiu no início do século XX no Rio de Janeiro, impulsionado por pessoas pretas, miseráveis e à margem da sociedade, frequentemente consideradas minorias, embora saibamos que não o são. O samba sempre desempenhou o papel de amplificar as vozes pretas e periféricas, mas, desde sua criação, também reproduziu preconceitos como homofobia, machismo, racismo e outros, que persistem até hoje.


Os ambientes que abrigam instrumentos como cavaquinho, pandeiro, repique, tantan e violão muitas vezes servem como locais acolhedores. Devido à efervescência cultural negra, pretos e pretas sentem-se à vontade, acreditando que nesses lugares não serão vítimas de violência. Infelizmente, essa não foi a realidade na madrugada da última quinta-feira (18) para a sexta-feira (19) no Casarão do Firmino, uma roda de samba na Lapa, capital fluminense.


O cotidiano feminino de pancadas foi mais uma vez cantado por Cartola nos anos 70. Tal situação se desenrola em uma realidade que parece impossível de ser transformada e a voz feminina subjugada e maltratada é impotente:
Eu fui tão maltratada
Foi tanta pancada que ele me deu
Que estou toda doída
Estou toda ferida
Ninguém me socorreu
(Vou te contar tintim por tintim, Cartola, s/d.) (FAOUR, 2006).

Ao ler esse relato no stories de um amigo em uma rede social, que estou compartilhando agora, imediatamente busquei um posicionamento do espaço Casarão do Firmino, onde frequentei bastante nos últimos anos e tinha um certo apreço. No entanto, deparei-me com postagens de eventos na casa ocorrendo normalmente, com stories do espaço lotado, como se nada tivesse acontecido. Isso já no domingo, dois dias após o incidente, sendo que a nota oficial só foi divulgada às 19 horas. A nota, isentando o espaço de culpa, carecia de qualquer demonstração de solidariedade, mesmo diante do relato das vítimas que afirmaram terem sido espancadas por quase 30 homens, configurando um espancamento coletivo, semelhante aos fenômenos explorados no documentário "A Primeira Pedra" de 2018, dirigido por Vladimir Seixas e disponível na Netflix.


A Primeira Pedra investiga a onda de linchamentos no Brasil e mostra como essa violência, praticada muitas vezes por pessoas que se consideram "cidadãos de bem", tornou-se cotidiana.
A Primeira Pedra - Documentário de 56 min. Produção Couro de Rato e Canal Futura Direção de Vladimir Seixas

Não vou me estender sobre o relato da @zurialm, que em seu último post já dá detalhes suficientes para entender que se trata de um covardia com requintes de ódio e transfobia que vitimou essas mulheres pretas, que acreditavam estar em um espaço seguro e respeitoso. Local onde seus corpos deveriam ser respeitados, algo que não ocorreu.  Se faz necessário, também, ser contra a violência que rolou contra os seguranças do Casarão do Firmino. Após serem atingidos por garrafas de vidro, eles foram socorridos, prestaram depoimento e realizaram exame de corpo de delito (algo que enfatiza o caráter discriminatório sofrido pelas três mulheres, pois elas se quer foram socorridas de imediato). 


Em sua maioria, as pessoas que fazem a segurança dos eventos são pretas e pobres, orientados, muita das vezes, a agirem com truculência, ou pior, não são orientados de como devem agir nessas situações -  refletindo a cultura agressiva que paira sobre as profissões que exercem a segurança em bares, casas de show, festas e afins.


Nos anos 30, o renomado Ari Barroso compôs uma música a partir de um conflito que presenciou nas ruas do Rio de Janeiro (FAOUR, 2006), em que ordena e justifica a violência explícita sobre a mulher, afinal elas são perigosas e provocadoras. O espancamento da mulher é necessário para mantê-la em seu lugar, para manter a ordem social estabelecida:
Esta mulher
Há muito tempo me provoca
Dá nela! Dá nela!
É intrigante
Tem veneno e mata gente
Dá nela! Dá nela!
(Dá nela, Ari Barroso, 1930) (FAOUR, 2006).

Mas, também, não posso ignorar que o Brasil é o país que mais mata pessoas da comunidade LGBTQIAP+ no mundo inteiro, e que esses corpos só foram espancados por representarem o que representam. Isso me leva a crer que se fosse um gringo, um branco, um heterossexual, e não um corpo trans, a organização teria apenas chamado a polícia ou intervido de maneira efetiva para preservar a integridade de todos os envolvidos, como seria esperado de um estabelecimento sério nessas situações. E o pior, quando as vítimas conseguiram escapar do espancamento, algo que foi quase impossível, mesmo após conseguirem um táxi, foram retiradas, a força, do veículo para continuar sendo agredidas. Quando finalmente encontraram uma viatura policial, foram rechaçadas mais uma vez devido a quem são, sua cor, sua aparência, sua sexualidade. Tá se ligando nas camadas de invisibilidade, estigmatização e ódio que compõe essa covardia institucionalizada e estruturada no seio de cada cidadão dessa nação atrasada, escravagista e “cristã” ? 


Uma mulher trans ter que afirmar que tem um emprego "digno" para poder ser atendida por um policial é, no mínimo, preocupante, especialmente em um país onde a cada 34 horas um LGBTQIA+ é morto. Isso apenas evidencia algo que qualquer pessoa que não vive no mundo da Marvel já sabe: a polícia no Brasil não protege o cidadão, mas sim o status quo, o capital, aqueles que eles consideram ser o "cidadão de bem". Servir e proteger?



No final, o único lugar onde a comunidade trans consegue apoio é entre eles, é em sua bolha, seja presencial ou online, nas pessoas que se solidarizam com a causa. São indivíduos que compreendem que podem ser as próximas vítimas e entendem que, se tais situações se tornarem normais, a qualquer momento poderão se tornar alvos. Conhecemos os demarcadores sociais mais evidentes nessas vítimas: sua cor, seu sexo, seus traços e trejeitos.


Na última década do século XX, Zeca Pagodinho continua fazendo sucesso com a mesma receita para a mulher que “vacila”, ou seja, não cumpre seu papel, qual seja cozinhar, lavar, limpar ou ser fiel:
Sem falar na tal faixa amarela Bordada com o nome dela
Que eu vou mandar pendurar Na entrada da favela
Mas se ela vacilar vou dar um castigo nela
Vou lhe dar uma banda de frente
Quebrar cinco dentes e quatro costelas Vou pegar a tal faixa amarela Gravada com o nome dela
E mandar incendiar Na entrada da favela
 (Faixa amarela, Zeca Pagodinho, Jessé Pai, Luiz Carlos e Beto Gago, 1997) (FAOUR, 2006

Não se enganem, o olhar de quem promove a violência é seletivo; eles sabem que podem - com base no senso comum - atacar, ofender, espancar, e, felizmente, neste caso específico, não chegaram ao extremo de matar. É aqui que me assusto com a falta de solidariedade de um espaço de alegria, que, querendo ou não, é moradia de um gênero musical de luta, resistência e reivindicação de direitos. Este ambiente não deveria, de forma alguma, se omitir diante de uma covardia contra pessoas negras. O samba, mesmo com alguns exemplos de músicas que exploraremos durante a semana, nunca foi um espaço aberto para a covardia.



Sabemos que o espancamento é um fenômeno de uma época em que os negros recebiam castigos físicos por qualquer coisa que contrariasse a mente perversa do branco colonizador. Negros eram pagos ou beneficiados para servirem de armas contra outros negros, e a violência sempre foi um instrumento para domesticar corpos que não se adequavam a uma determinada visão. Fico triste ao perceber que o Casarão do Firmino é cúmplice dessa visão, um espaço com potencial de transformação e união, que deveria repudiar práticas tão antiquadas quanto as que ocorreram. No entanto, posso afirmar que, mesmo assim, o samba continuará sendo um instrumento de luta.  Infelizmente, não sei se é o caso do samba tocado no Casarão do Firmino. 


Fonte:


“A MULHER E O SAMBA: A VIOLÊNCIA CANTADA”

de Ana Maria Martins Amorim.

ISSN 1980-8887 (on-line)


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Modelo e irmãs foram atacadas e ofendidas por um grupo de homens quando saíam do Casarão do Firmino




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