Um Mar Pra Cada Um, Um Amor Pra Cada Corpo: sobre afetos negros, resistências íntimas e o desafio de amar em tempos de ódio estrutural
- Pivete
- 8 de jun.
- 7 min de leitura

Quantas vezes você já amou — e, dessas, quantas foram verdadeiras?
Eu sei: você descreveria mil sintomas diferentes, contaria histórias, relembraria momentos. Ocultaria talvez os ruins, ou enfatizaria? Mas o que importa é que algo existe aí. Será que isso, por si só, já é prova de que você amou?
Quando penso no meu corpo como território, quando me reconheço como um ser político — consciente de que meus atos são agentes transformadores da minha história e de tantas outras — percebo o quanto o desejo é poderoso. Ele move instituições. Ele desestabiliza estruturas.
Depois do meu último término, decidi ler bell hooks.
E isso reconfigurou minha vida. Sem falsa modéstia: entender o amor além de um sentimento — como uma ética de vida — realmente mudou tudo. O amor condiciona nosso modo de viver. É um diacrítico importante: entre a apatia e o enfrentamento das desigualdades, entre a miséria e a empatia; da idolatria de ditadores carismáticos ao fanatismo, possessividade, nacionalismos extremos e genocídios em massa. O que chamamos de amor é, muitas vezes, máscara para outras coisas. Ou ausência de si mesmo.

Demorei para entender que eu também podia ser alguém digno de receber amor — e, mais ainda, digno de retribuir. Eu não sou aquele desenho que me fizeram. Não sou a caricatura que vi na televisão. Quando volto a Beatriz Nascimento, quando escuto Luedji Luna, penso em Um Mar Pra Cada Um. Nesse mundo, o bom mesmo é estar debaixo d’água. Que a maré me leve, às vezes, para a faixa de areia. Mas que não demore a me buscar de volta. Ao nosso oceano.
Na falta de dinheiro para comprar livros novos, volto aos antigos. Tudo sobre o amor é a bola da vez. Antes, reli O Negro Visto por Ele Mesmo, de Beatriz. Como dialogam! Só quando o povo negro se reconhece é que percebe que é digno de amar e ser amado. Amor como ato político. Como dizia hooks: o pessoal não é pessoal — é político.
Nossas relações, escolhas e posturas implicam em ações e transformações no mundo. Somos acolhidos ou rechaçados por conta de quem somos e de como amamos. Você pode ser amado na favela e na pista, mas pela estrutura, será sempre o inimigo. Amor não é fraqueza nem irracionalidade. É coragem. É projeto. Também é potência: anuncia a possibilidade de rompermos o ciclo da dor e da violência.
Caminhar rumo a uma sociedade amorosa é, talvez, nosso maior desafio revolucionário.

Aprendi a gostar mais da minha companhia.
Ainda que nos fins de semana venha aquela vontade louca de estar junto, já não me coloco tanto mais no fluxo. Me permito estar onde quero estar.
Racismo, sexismo, homofobia, imperialismo e exploração — tudo isso também se atravessa no amor. Quem pode amar quem? Quem tem o direito de desejar? Quem é alvo desse desejo? E com que consequências? Com quais remédios? São tantos corpos em disputa nessa cidade. Tantas batalhas. Tantas delimitações, indivíduos tentando definir as fronteiras do meu ser. Quando é que vou poder simplesmente ser? Quando terei o direito a esse amor que foi sequestrado por você?
Como desenvolver minha capacidade de amar em um mundo que adota a diferença como filosofia, o ódio como norma, o patriarcado como estrutura?
Será que é só desejo — pelo seu corpo, seu olhar? Ou é porque gosto de te escutar? Seus lábios movendo, sua língua cortante chicoteando poderosos e medíocres. Será que é sua potência, sua desenvoltura, sua gostosura? Será que amar é simplesmente um jogo de perde e ganha? Uma hierarquia da qual preciso me proteger para não cair em servidão?

Eu só sei que o amor é uma ferramenta poderosa de libertação.
E ele alimenta outra ferramenta que nos foi tirada desde o sequestro: a autoestima. Essa mesma que os europeus roubaram junto com as nossas riquezas — porque ela não combina com a suposta superioridade que querem nos vender. Mas é essa autoestima que nos sustenta. Mesmo ferida, ela se manifesta em corpos tão ricos quanto fortes. O amor — o nosso amor — é revolucionário.
Nosso, porque sobreviver individualmente já é resistência, mas é na coletividade que somos potência.
Tudo sobre o amor: novas perspectivas mostra como somos ensinados, desde a infância, a ter ideias equivocadas sobre o amor. E como nossa sociedade ignora o fato de que precisamos aprender a amar. Achamos que nascemos sabendo, mas hooks nos lembra: o amor não está dado. É construção. É ação. Exige definição. Exige prática.

Quando ouço o último álbum da Luedji, Um Mar Pra Cada Um, com seus instrumentais e profundidades — de quem já viveu debaixo d’água — sinto que o tema não é só relação interpessoal, nem um sentimento misterioso. É código. Conduta. Relação de poder. Suposições baseadas em estereótipos. Corpos políticos. Limites do ser. A dificuldade de compreender o outro. Seus gestos, olhares, silêncios. E isso é essencial quando nos comprometemos a compartilhar a intimidade.
Muitos ainda acreditam que amar é transformar dois em um. Mas talvez a mágica seja perceber que são dois. Com individualidades, tempos e questões. Talvez a parada seja se encontrar — mesmo estando no outro.
Um mar pra cada um, sem se curvar às marés alheias.

Você já se perguntou a dificuldade de uma mulher negra amar?
E as violências que ela sofreu, disfarçadas de afeto? Eu não conheço a dor da carne, mas já vi cicatrizes visíveis e invisíveis demais. Homens que nunca aprenderam o que é amor — ou confundiram com posse e violência.
Naquela casa, poucas vezes vi beijos. Menos ainda, palavras bonitas. Talvez nunca vi nada que me fizesse acreditar naquele relacionamento. Era mais reclamação do que amor. E um saudosismo barato de uma época que talvez nunca tenha existido.
Olha esses dois. Eles não se amam. São meus espelhos, mas espelhos trincados — como os seus, como os de todo mundo. É um ciclo. Quem não me ensinou a amar, também não aprendeu. Na verdade, recebeu tudo, menos amor. De um mundo que, em nenhum momento, buscou simplesmente nos amar.
Meus pais não se amaram?
Talvez nem tenham me amado. Será que algumas situações tão dolorosas podem coexistir com o amor? Eu sempre fui a criança tímida. Fui violentado ainda novo. Abracei pouco. Tinha receio até de andar sem camisa, com medo de novos toques. Com uma ansiedade paralisante, uma culpa devastadora, uma vida já tão dura.
Eles não sabem o que é amar — seja nas suposições da minha avó, de que a gente deveria ter apanhado mais, seja nas brigas dos meus pais, seja na reprodução desses gestos por mim e minha irmã. Mas mesmo que não seja o amor que desejo, foi o que eles tiveram. E o ato de tentar, minimamente, em certos momentos, ressignificar o que já estava incrustado em nossas vidas — o gesto de criar um ser que, em algum momento, se colocou à disposição de romper esse ciclo — já é uma forma de amor.
Amar, às vezes, é um ato de tentativa, mesmo quando inconsciente.

A primeira vez que convivi com uma família que praticava o amor foi com uma branca, no Sul do Brasil. E ela me amou. Eu senti. Foi aí que entendi: minha luta não é contra indivíduos — é contra estruturas.
Às vezes, fico em choque com seres tão cínicos, que matam, exploram, apagam — ou só reforçam, todos os dias — sistemas de desigualdade e exclusão contra povos específicos. E, na revolta dos mesmos, fingem não entender. Quem bate esquece. Mas quem apanha, não. Corpos tão violentados vão se revoltar. O sonho do oprimido é ser opressor. E o amor se esbarra no ódio, com a mesma intensidade.
Talvez, amar — em nossa sociedade — seja mesmo um privilégio.
Como se eu tivesse que reinventar o amor só porque ele não cabe na sua caixinha, na sua fórmula personalizada, na sua realidade. Amor tem contexto. Não confunda as coisas. O que se vende por aí é produto. Pare de banalizar. Cuidado ao nomear. Amor não é só química, mágica ou uma força invisível. Não é só feriado, data comemorativa ou jargão publicitário.
Amor é ação. É prática. É uma escolha. Em toda sua diversidade de significados, exerça-o.

Diga a verdade para mim: quem eu sou nessa festa? Quem eu sou para você?
Aprendemos a mentir. A omitir. Vivemos em uma sociedade em que a mentira gera lucro. Já estamos na era da pós verdade. A mentira virou ferramenta de sedução, de dominação. Você quer me monopolizar. Quer que eu seja seu. Mas você nem é seu. Você nem se tem. Sua mentira criou um outro que não é você. Seja verdadeiro. Sei que não aprendeu isso nos seus cursos, diplomas ou cargos. Mas seja verdadeiro. Sua mãe não teve tempo para te ensinar. Seu pai talvez até tenha ensinado o contrário: que é bom inventar.
A infidelidade do lar, homens que vivem mentiras que não disfarçam a fraqueza, apenas a escancaram.
Tenho um compromisso com o amor. Especialmente com o amor-próprio. Alguns questionam minha positividade, minha busca por outros caminhos, minha tentativa de escapar da dor — mesmo que rápida, mesmo que provisória. Mas eu assumo esse compromisso como uma ferramenta positiva, transformadora. Seja dentro ou fora da sala de aula, quero estar em ambientes que, mesmo com todas as dificuldades, me permitam amar.
Amar minha prática. Minha entrega. Minha história.

Aceito o fardo dessa forma de vida.
Mas que eu tenha, ao menos, a liberdade de sonhar, idealizar, criar e executar. Quero ter o direito de me amar e de exaltar minhas partes boas — sem ter que me submeter a você, sem ser confundido com egoísmo ou egocentrismo.
Não sou eu que estou exigindo algo de ti — é você que tem medo do que vê em mim.
Entre livros, músicas, experiências, curvas e olhares, construo um amor que é político. Teorizo porque sinto. Sento nesta cadeira, coloco a mão sobre o teclado e escrevo. Um caminho rumo a uma sociedade mais amorosa. Que não se interrompam mais vidas como a de Beatriz Nascimento. Que se leiam mais mulheres negras como bell hooks. Que a música de Luedji Luna continue inspirando uma forma de amar sem tanto egoísmo, sem tanta posse.
Porque o amor é uma ação.
E toda ação, quando feita com consciência, é política.
E toda política que nasce do amor…
é coletiva.
Komentari