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Quem pode ser criança?

Laura Vieira (@laura.vieiraa)

Iago Menezes (@Visualbypivete)





Pão com manteiga e café com leite, às vezes com achocolatado, a mãe grita pra ir tomar banho. Veste o uniforme da escola, bate o sinal, presta atenção, brinca, conversa, recreio, lanche, volta pra aula, escreve, copia, almoça, alguém busca na escola ou volta com os amigos, chega em casa, brinca na rua, pé sujo, toma banho, janta e vai dormir. Assim, de segunda a sexta, todo dia é parecido, se não fosse a imaginação de criar e aprender algo novo todos os dias.


Assim é um dia normal de uma criança, quando se pode ser criança. Mas, no Rio de Janeiro, nem toda criança pode.


Tem uns que são: “Pivete, Moleque, Novinha, Menor, Tralha, Bebel”.

Qualquer coisa, menos criança.




Fazem as mesmas coisas que as outras mas entre uma vírgula e outra teríamos que adicionar um “entra entra entra, abaixa, corre corre”, a viatura passando com o fuzil apontado para fora, o policial encarando, o estrondo seco da bala que acerta algum lugar.


A criança tem medo do bicho papão, do escuro, de olhar debaixo da cama. Pivete também tem medo disso tudo, de deixar o chinelo virado, de ir pra sala da diretora, de perder a brincadeira.


Ninguém tem medo de criança, mas tem medo de pivete.


Dizem que Pivete é perigoso, é “protótipo de criminoso”, as nuances entre a infância, a pré-adolescência e adolescência, não são consideradas, dos 0 aos 17 anos, “sabem bem o que estão fazendo”. Assim, justificam qualquer brutalidade contra as crianças da favela. Aos olhos do Estado, da favela pra dentro, não existe criança.

Se não conseguirem argumentar que ela estava no lugar errado, fazendo coisa errada, filha de gente errada, vão apontar que o futuro está dado, que pra esse ‘menor estar no erro’ é apenas questão de tempo.



As mães, familiares, professores, esses conseguem ver as crianças que vivem ali, inventivas e diversas, dignas de cuidado, chamego e beijinho na ferida. É uma infância que só se vê de perto. Aqueles que passam na rua com medo também as percebem mas, só como alvo. Quem cuida, convive, ama, são a linha de frente na defesa dessa infância que precisa ser vivida.


Em 2022, somente no Rio de Janeiro, morreram dez crianças vítimas de “balas perdidas”. Balas perdidas que sempre acham crianças periféricas, pretas e pobres. Balas essas que não rasgam o ar dos mais ricos, mas que viajam em determinados cep’s e acertam certos corpos. Balas que são direcionadas, tem endereço certo, logo, são tudo, menos perdidas.


É um projeto de Estado, é política de extermínio. No Estado do Rio de Janeiro, crianças são assassinadas, cotidianamente, seja indo para escola ou já dentro da escola; voltando para casa depois de deixar sua irmã mais nova na creche ou já dentro de casa brincando com seus primos; brincando na sala de casa ou na frente de casa. voltando de kombi com a mãe para casa ou no sofá assistindo tv; esperando a avó, na frente de casa, para comprar um lanche. Crianças assassinadas, famílias destruídas e um futuro perdido.


São crianças mortas, dentro de caixões pequenos, carregados por parentes desolados. Boa parte delas atingidas por balas da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Mortas pela política de segurança pública herdada dos governos anteriores, que o governador em exercício Cláudio Castro continua a implementar. Uma maldição rogada que mata até quem ainda não nasceu. E, não tem ECA que tenha conseguido assegurar o direito à vida dessas crianças.



Quando a polícia invade uma escola pública no meio de uma comemoração de páscoa, invade uma instituição de ensino, repleta de crianças, às duas horas da tarde, com fuzis e caveirão. Toda a comunidade sente, se preocupa, já foram elas essas crianças. Gritam: São apenas crianças!


Já os policiais, não entendem esses gritos, ouvem mas não entendem, pensam: onde que tem criança aqui? aquele ali é pivete, cadê criança?


Chamamos pelas nossas crianças e eles nos ouvem chamando por “bandidos”.


No corrente ano a pauta sobre a redução da maioridade penal volta às manchetes, muito em decorrência de massacres perpetrados por adolescentes contra seus colegas e professores dentro de escolas. Vivemos em um país que lida com a segurança pública de maneira reativa, “aconteceu, prende”, ignorando julgamento, prevenção e ressocialização.

Dessa forma, quando acontecem casos marcantes, o “tem que prender” não demora a aparecer nas conversas, programas jornalísticos e grupos de whatsapp. Se não tem idade suficiente para prender, muda a idade, reduz, manipula até caber aqueles que querem prender.


Este tipo de proposta é levantada por setores da população que ao temerem tanto a violência urbana, acreditam que o melhor é prender e matar qualquer um que potencialmente possa causar dano. E, quando se pensa nesse tipo de situação no cotidiano da cidade, qual imagem passa na cabeça dessas pessoas sobre o “potencial” assaltante?


O Pivete.



Mesmo sem fazer nada, mesmo parada, a criança, que para uns é pivete, é a primeira ameaçada com esse tipo de política. Na desfaçatez de uma emenda constitucional, todos de 16 anos serão iguais, sendo que na prática já não são tratados igualmente, deixando ainda mais vulneráveis as crianças e jovens da favela.


Eles não escutam mas a gente diz, dizemos para nós mesmos, sabemos, são crianças.

Crianças que desenvolvem traumas, pânicos, raiva, tristeza. Que se comparam com outras crianças que têm o direito de ser crianças, de ter infância, de ter medo do bicho papão e não do caveirão.


CONTRA A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL!

FÉ NAS CRIANÇAS!





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