Antes de sermos únicos, fomos muitos
- Pivete

- 22 de jul.
- 7 min de leitura

Há 50 mil anos, o mundo era povoado por muitas humanidades.
Não é metáfora. É fato científico.
Durante séculos, a ciência foi sequestrada para servir ao império. Categorias como “raça” e “civilização” foram usadas para justificar dominação, escravidão e genocídio. Mas a própria ciência, quando se liberta da colonialidade, nos ajuda a recontar a história. Este texto é um convite a lembrar que nunca fomos um só tipo de humano - e que a ideia de uma humanidade superior é uma invenção feita à força de sangue e apagamento.

Enquanto os Homo sapiens caçavam e migravam pela África, pela Europa e pelos desertos da Ásia, outras espécies humanas também caminhavam sobre a Terra. Os Neandertais resistiam ao frio europeu. Os Denisovanos cruzavam as montanhas da Sibéria. Os pequenos Homo floresiensis viviam em cavernas na ilha de Flores, na Indonésia. Nas Filipinas, o Homo luzonensis deixava pistas de sua existência, quase como um sussurro que só agora conseguimos ouvir.

Todas essas espécies humanas viveram ao mesmo tempo.
Por milênios, compartilharam o planeta, o fogo, as cavernas, o silêncio das noites. E, algumas vezes, mais do que isso: compartilharam o próprio sangue. Cruzaram entre si, se encontraram, deixaram descendência. A prova disso vive dentro de nós: pessoas asiáticas e europeias carregam traços genéticos de Neandertais. Povos da Oceania e do Sudeste Asiático trazem Denisovanos no DNA. O Homo sapiens - essa espécie que se espalhou por todos os cantos -não chegou sozinho.
Ele se misturou.
Ele aprendeu.
Ele foi muitos.
A ideia de uma única humanidade pura e superior? Uma farsa moderna.

A biologia não reconhece raças humanas. A ciência genética mostra que a diferença entre duas pessoas negras pode ser maior do que entre uma negra e uma branca. A cor da pele, aliás, é só uma resposta ao sol. Mais melanina sob o calor africano; menos sob os céus nublados da Europa.
A cor da pele é adaptação. Não é hierarquia.

O mito da raça foi uma ferramenta de dominação
A raça não foi descoberta - foi inventada.
E não pela ciência, mas pela guerra. Não nasceu de uma curiosidade pelo outro, mas de um desejo de controle.
Antes do tráfico transatlântico de africanos, não existia “raça negra” como identidade biológica inferior. Havia povos, etnias, culturas complexas com nomes próprios: iorubás, bantos, jejes, haussás, ashantis, entre tantos outros.
Mas quando os navios negreiros cruzaram o Atlântico, tudo isso foi reduzido a uma categoria única, desumanizante: negro.

Não como cor de pele, mas como condição social de coisa a ser explorada.
Enquanto isso, os invasores europeus se nomearam “brancos”, “civilizados”, “superiores”. Esse binarismo racial serviu para justificar a escravidão, o colonialismo e o extermínio. A raça virou uma máquina ideológica para organizar a desigualdade, legitimar a pilhagem, silenciar a resistência.
Ao classificar povos inteiros como “primitivos”, “atrasados” ou “sem alma”, o colonialismo autorizou o roubo de terras, a imposição de línguas, a destruição de culturas e a conversão forçada.

Tudo isso sob o discurso de “progresso” e “missão civilizatória”.
O racismo científico - com suas medições de crânios, hierarquias evolutivas e zoologias humanas - não foi apenas pseudociência. Foi tecnologia de dominação. Foi a intelectualização do genocídio.
Até mesmo Darwin, cuja teoria da evolução é revolucionária, foi distorcido. Criaram a farsa do “darwinismo social” para dizer que os mais “aptos” deveriam governar os menos “aptos” - como se a exploração fosse uma lei natural. Como se o racismo fosse biologia e não política.

A pseudociência do racismo também encontrou seus apóstolos de jaleco.
Cesare Lombroso, o “pai da criminologia moderna”, dizia que era possível reconhecer o criminoso nato pela forma do crânio, pela largura do nariz, pela cor da pele - pela aparência.
Sua teoria era simples e monstruosa: algumas pessoas já nasciam más. E essas pessoas, quase sempre, se pareciam com os negros.

O Brasil foi o laboratório perfeito para essa ideologia doentia. Depois da abolição da escravidão, não veio reparação, mas perseguição. A liberdade virou uma espécie de liberdade vigiada.
As elites brancas passaram a temer a presença de milhões de pessoas negras fora das senzalas.
E então surgiu a proposta explícita: criar um código penal específico para ex-escravizados, como se eles precisassem de leis próprias para serem contidos.
Ser negro virou sinônimo de suspeito.

A vadiagem virou crime. O batuque virou perturbação. A religião virou feitiçaria. A cultura negra foi tratada como ameaça à ordem pública.
Enquanto isso, a branquitude se escondia por trás da neutralidade. Os mesmos que herdaram terras, bancos, escolas e sobrenomes fingiam que a igualdade já tinha chegado, enquanto o Estado construía cadeias onde antes havia senzalas.

Mas a criminalização nunca foi só jurídica. Ela sempre foi estética e simbólica. Nossos corpos são lidos como perigo. Nossas vozes, como afronta. Nossos passos, como ameaça.
A cultura negra - da capoeira ao candomblé, do samba ao funk - sempre foi perseguida, abafada, proibida.
Cito, Aimé Césaire:
“Minha boca será a boca dos infortúnios que não têm boca; minha voz será a liberdade dos que se curvam no cárcere do desespero.” | My mouth shall be the mouth of those calamities that have no mouth, my voice the freedom of those who break down in the prison holes of despair.

Mas não era só o batuque ou o corpo preto que assustava.
Era a memória do levante. A lembrança da espada. A elite brasileira vivia sob o fantasma de um passado que insistia em não se calar.

Eles lembravam da Revolta dos Malês, quando negros islamizados tomaram as ruas de Salvador em 1835 com uma disciplina que desmentia todos os estigmas. Era alfabetização em árabe, era articulação tática, era fé em Allah e faca na mão. Não era desordem - era projeto.
E lembravam ainda mais, com pavor disfarçado de civilização, da Revolução do Haiti: a primeira e única revolta de escravizados do mundo que venceu. Venceu os franceses, venceu Napoleão. Venceu a lógica da escravidão.

Aquela pequena ilha no Caribe virou o pesadelo das casas-grandes das Américas. A ideia de que negros poderiam se levantar, se organizar e se libertar não cabia no mundo que os brancos queriam manter. E o que é uma ideia perigosa senão uma ameaça ao império?
Por isso, o Iluminismo, que prometia liberdade, igualdade e fraternidade, também foi usado com freio.

As luzes eram seletivas. A liberdade era para alguns. A razão, para os mesmos de sempre. Mas a fagulha acendeu - e muitos pretos acenderam junto. E essa chama nunca mais se apagou.
Só que o medo branco não ficou parado. Virou política pública.
No Brasil, o projeto era explícito, se não dava pra expulsar os negros, era preciso "diluí-los". Assim nasceu o mito do embranquecimento, a crença de que, com o tempo e o sangue, o país se tornaria branco.

Uma eugenia tropical. Uma distopia pintada com tintas científicas.
Vieram os incentivos à imigração europeia. Veio o discurso de que “melhorava a raça”. Veio a exclusão dos negros das políticas de cidadania, trabalho qualificado, escola, terra. Veio o esquecimento forçado.
E tudo isso foi feito com carimbo oficial.
O Estado quis apagar a população negra do futuro. Não conseguiu. Mas nos deixou sequelas que até hoje carregamos nos ombros, nas estatísticas e nas ausências.

E como se não bastasse os Malês, o Haiti e a força da ancestralidade negra em marcha, teve também a Revolta dos Alfaiates, ou dos Búzios, em 1798, na Bahia. Inspirados pelas ideias do Iluminismo e pela Revolução Francesa, homens negros, pardos e livres sonharam com uma república igualitária, onde "todos seriam iguais sem distinção de cor ou posição".
Era um levante de trabalhadores urbanos, soldados, artesãos, com maioria negra - que ousaram pensar o Brasil com fim da escravidão, salários dignos e democracia racial.

O sonho deles era perigoso. Tão perigoso que o Estado logo tratou de matar os líderes e apagar suas ideias. Mas não conseguiram apagar a semente.
Porque a ideia de liberdade nunca mais voltou pro tronco.
E, no entanto, o mito da superioridade racial construiu impérios, justificou genocídios, desenhou fronteiras que ainda hoje matam.

Mas esse mito desmorona diante da verdade ancestral: somos misturados desde sempre. Viemos de cruzamentos, de migrações, de trocas.
A diversidade não é erro, é origem.
A biologia não reconhece raças humanas.
Mas o colonialismo, sim.
Como escreveu Frantz Fanon:
“O colonialismo não é uma máquina pensante, não é um corpo dotado de razão. É a violência em seu estado natural, e só se curva diante de uma violência maior.”

O que chamamos hoje de "humano" não nasceu pronto.
Foi fabricado por muitas mãos, muitos corpos, muitos tempos. Se hoje estamos aqui, é porque fomos capazes de conviver com a diferença e aprender com ela.
Antes de sermos únicos, fomos muitos. Antes da supremacia, havia convivência, mistura, diversidade, cruzamento. É hora de lembrar que o ser humano é uma invenção feita de encontros. E que a ideia de superioridade racial é uma mentira bem contada, armada com navios, canhões e mãos brancas.

Não somos um erro da natureza nem um projeto inacabado da Europa. Somos herdeiros de muitas humanidades, somos prova viva de que a pluralidade é potência - e a pureza, uma ficção perigosa.
Então, quando alguém disser que existe uma humanidade superior, lembre: antes de sermos únicos, fomos muitos.
E talvez a nossa força esteja justamente nisso: em não sermos uma coisa só.
Fontes Bibliográficas
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de José Laurênio de Melo. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017










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