“Além do que se vê”(2024): Jxão e Sabat transformam a ansiedade em rap direto da Baixada
- Pivete
- 26 de abr.
- 9 min de leitura

No cenário musical independente da Baixada Fluminense, onde a arte brota entre escombros de abandono e pulsa nas frestas do cotidiano, surge Além do que se vê, EP de Jxão e Sabat. Mais que uma obra musical, o disco é um manifesto íntimo que revela as camadas invisíveis da mente ansiosa, ao mesmo tempo em que denuncia, com poesia e sensibilidade, os silêncios impostos à juventude periférica.
O trabalho, com cinco faixas que se encadeiam como cenas de um curta-metragem nunca filmado, é uma imersão emocional na montanha-russa psíquica de quem sente demais num mundo que pouco escuta.

Jxão, oriundo do Parque Eldorado, Duque de Caxias, carrega nas letras a urgência de quem cresceu em um território onde a ausência do Estado é tão presente quanto os sonhos que insistem em sobreviver. Ao lado de Sabat, produtor da mesma região, os dois fundam a Efígie, produtora e gravadora independente que não apenas abriga o EP, mas simboliza a materialização de um corre coletivo, artesanal e afetivo.
A proposta do projeto é clara desde o princípio: dar forma a um ciclo de ansiedade com honestidade emocional. A abertura com "Copão de 700" é envolvente — um funk dançante, repleto de elementos reconhecíveis da festa, da rua, da curtição, mas que esconde nas melodias uma tristeza latente. É o início do ciclo: o extravasamento que camufla a inquietação interna, o corpo que dança enquanto a mente grita.
Sabat define com precisão esse contraste: “mesmo sendo um som animado, as melodias puxam pra um lado mais triste”.
O beat é ambivalente, e é nesse ponto que reside sua força — como um sorriso que antecipa a queda.

A segunda faixa, "Sobre Viver", mergulha no momento da crise. Aqui, a sonoridade escurece, as reflexões se adensam, o peso das palavras se alinha ao peso do beat. A ansiedade, antes dançante, agora é sufocante. A vida, enquanto sobrevivência, exige esforço constante, e a faixa dá conta de transmitir essa tensão. É um momento em que o rap reencontra sua primeira função: ser denúncia e desabafo, ser verbo que escancara aquilo que é negado. Jxão mostra domínio técnico e emocional ao trazer essa vivência de forma não caricata, mas real, próxima, familiar a quem sente o mundo de forma acelerada.
No meio do EP, "Oração (interlúdio)" marca o ápice da crise. É uma faixa experimental e imersiva: trovões, chuva, batidas cardíacas — o som pulsa como um corpo em colapso. Mas, ao final, a calmaria. O que começa como desespero vira silêncio. Não se trata de cura, mas de alívio momentâneo. A sonoplastia, pensada com detalhes quase cinematográficos, é prova do cuidado estético da dupla. Sabat e Jxão não produzem faixas: constroem atmosferas.
As duas faixas finais compõem o “pós-crise”. "Quanto Tempo" é reflexiva, com instrumental minimalista que valoriza a voz e a palavra. Sabat ousa ao tirar a bateria e permitir que o texto respire — uma escolha rara, que evidencia a confiança no conteúdo lírico. Já "Única Regra" traz cor e leveza. É a superação sem triunfalismo, um novo fôlego após o sufoco. Como diz o próprio Sabat, é a fase em que se vê a vida com “outras cores”. A colaboração com Moza na construção do beat reforça o caráter comunitário e colaborativo do projeto.
Mas Além do que se vê não se sustenta apenas por sua coesão estética e emocional. Ele também fala sobre o fazer artístico como resistência. Nas entrelinhas das entrevistas com os artistas, percebemos o cansaço de quem precisa ser tudo: artista, produtor, social media, gestor, contador, designer.
“Imagina um time de futebol em que o atacante tem que ser goleiro às vezes”, diz Jxão, numa analogia precisa.
O EP é, portanto, também um grito contra a precarização da arte na periferia, onde a ausência de investimento não impede a produção, mas a torna mais exaustiva.
A independência, nesse contexto, não é uma escolha estilística. É uma imposição. E é daí que nasce a potência do projeto. Jxão e Sabat estão inseridos numa cena vibrante da Baixada Fluminense — onde coletivos, batalhas de rima, produtores e artistas constroem redes de criação com poucos recursos e muito afeto. O EP é resultado dessa trama afetiva, onde nomes como Gebê, Emanuel Sant, Jomboh e Moza aparecem como braços que ajudam a dar forma ao sonho.
No fim, Além do que se vê é mais que um retrato sensível sobre ansiedade. É um trabalho que reivindica a arte como campo de existência possível para quem sempre teve que brigar por um lugar para respirar. Jxão não quer apenas rimar — quer viver daquilo que o salva. E Sabat produz não para o mercado, mas para sua própria história e a de seus parceiros.
Como eles mesmos deixam claro, “se vier estabilidade, ótimo. Mas se for sem arte, não vale”.

Entrevista com Jxão
Sobre a caminhada e a identidade artística
1. Você começou a compor em 2012, mas só em 2019 entrou no estúdio para gravar. Como foi esse processo de amadurecimento até sentir que era a hora de lançar sua voz para o mundo?
A distância entre sonhar em ser algo e de fato perceber que você pode ser o que almeja é bem grande. Até um certo momento da minha vida, ser músico era um sonho impossível, algo muito distante de tudo que já tive acesso. Mas chegou um momento em que eu estava tão confiante que não tinha mais pra onde correr. Eu já respirava rap 24 horas por dia. Quando entendi meu potencial e o que eu poderia fazer, decidi que era a hora de começar a mostrar pro mundo tudo que tenho a dizer.
2. O nome do EP é Além do que se vê. O que existe além da superfície do Jxão artista? Qual é a essência desse trabalho e a mensagem central que você quis transmitir?
Além do que se vê é um EP sobre ansiedade. É a narrativa de um período da vida de uma pessoa com a mente ansiosa. A forma como as coisas vão de 0 a 100 num piscar de olhos, e de 100 a 0 da mesma forma. A ideia principal era retratar esses altos e baixos de uma forma fluida, mostrando que tudo na vida são ciclos — e que, apesar das noites ruins, a manhã sempre vem.
3. Você carrega a Baixada na sua vivência, no seu corre e nas suas letras. O que significa ser um artista de Duque de Caxias na cena atual? Quais são os desafios e as potências desse lugar na sua trajetória?
(não respondeu diretamente essa pergunta, mas abordou em outra resposta:) Um das consequências de envelhecer é ir percebendo sua insignificância perante um mundo tão infinito. Tenho tido muitas reflexões sobre a vida e a forma que tudo gira. Mas meu bairro sempre vai ser uma das minhas prioridades. Cresci num lugar abandonado pelo Estado, onde as pessoas não têm acesso nem ao básico. É impossível que eu não fale e tente chamar atenção pro descaso que ocorre por aqui. Cantão espera por asfalto e saneamento básico até hoje.

Sobre as letras e os sentimentos no EP
4. Seu som transita entre a crítica social e a música sentimental. Como você equilibra essas diferentes facetas na sua escrita e no seu processo criativo?
O que mais define como vai ser minha composição é o agora. Tento ao máximo entregar o que estou sendo e sentindo naquele momento. Se eu tô apaixonado, quero falar de amor. Se tô revoltado com algo, quero criticar. Se algo do passado me atravessa, falo sobre isso. E se não tô sentindo nada, não consigo compor nada. O trabalho de equilíbrio é mais voltado pros lançamentos terem alguma conexão, mas não é obrigatório. Tento dar à minha arte a maior liberdade possível.
5. No EP, "Copão de 700" traz um lado mais cria, funk e escrachado; "Sobre Viver" soa como um desabafo; "Quanto Tempo", com participação do Mad, tem uma pegada introspectiva; e "Única Regra", com Vitória Biral, carrega um tom motivacional e de esperança. São múltiplas emoções e perspectivas. Qual foi o fio condutor que guiou a composição dessas faixas?
A ideia do EP surgiu quando pensei em fazer um curta-metragem sobre ansiedade. Fiz cada faixa pensando em um momento desse curta:
Euforia e felicidade (faixa 1)
Neuroses e questionamentos (faixa 2)
Realinhamento mental e espiritual (faixa 3)
Processo de cura e reconstrução (faixa 4)
Alívio e uma euforia mais calma (faixa 5)
6. O EP tem um interlúdio chamado Oração. Essa oração tem algo de especial para você? Como surgiu a ideia de incluí-la no projeto?
Todas as faixas do EP têm algo especial pra mim. Cada uma diz um pouco sobre o que já passei, vivi e vivo. Uma das minhas maiores influências é Rico Dalasam. Ddga é um álbum que salvou a minha vida, e foi muito importante pra mim externar isso e referenciá-lo nessa oração.
7. Suas letras trazem muito da realidade, mas sem abrir mão de uma certa dose de esperança. O que te faz continuar sonhando dentro da gravidade de um sistema que parece puxar tudo pra baixo?
O que me dá esperança é saber que nada me completa mais do que a arte. Se for fazendo o que amo, vou me sentir satisfeito. O que vier disso é lucro. É difícil não enlouquecer num lugar onde o financeiro vale mais do que tudo, mas sei que estaria mais louco ainda se me dessem dinheiro e me tirassem a arte. A gente busca o caminho do meio pra que as duas coisas estejam juntas.

Sobre o corre independente e a cena da Baixada
8. Você já falou sobre sonhar em mudar o mundo e trazer visibilidade para o seu bairro. Hoje, como você enxerga esse sonho? Ele se mantém o mesmo ou se transformou ao longo do tempo?
Tenho refletido muito sobre isso. Mesmo que eu viva 100 anos, como mudar algo que vem de milênios? Mas meu bairro continua sendo prioridade. A luta continua sendo por visibilidade, por chamar atenção para o descaso.
9. O trampo independente exige que o artista esteja envolvido em todas as etapas, da criação à divulgação. Quais têm sido os maiores desafios e aprendizados desse corre?
Como diz o Emicida, fazer rima é a parte mais fácil. A parte mais difícil é o processo burocrático antes do lançamento, principalmente por sermos só eu e o Sabat fazendo tudo. É como um time onde o atacante tem que ser goleiro, o técnico joga de volante e o presidente vira lateral. Fazemos tudo que podemos, sonhando com o dia em que teremos uma equipe completa.
10. Você menciona que artistas da Baixada te inspiram mesmo sem saber. Quem são essas referências e o que você enxerga de mais potente na cena daqui?
A cena da Baixada Fluminense é uma das mais ricas do Brasil. Minhas inspirações são muitas: Afroditebxd, Jazzaoquadrdo, Suavepreta, Natö, Maui, Joazz, Clfezobeat, piordesign, entre outras pessoas envolvidas com arte que tive o prazer de conhecer. E também os produtores culturais que fazem a parada acontecer de verdade. A importância disso só será entendida lá na frente.

Entrevista com Sabat
Sobre a produção do EP
1. Como foi trabalhar com Jxão na construção de Além do que se vê? Qual foi a principal direção sonora que vocês buscaram?
O processo foi bem natural. Eu e o Jxão já trabalhamos juntos há alguns anos. A gente sempre busca se divertir no processo, sem forçar a criação. A direção foi criada a partir do tema “ansiedade” e, com base nisso, criamos a identidade do EP. Busquei colocar o sentimento que cada faixa passa no seu devido lugar.
2. A produção musical é tão crucial quanto a letra na hora de transmitir uma ideia. Como a estética sonora do EP fortalece as mensagens que Jxão quis passar?
A estética do EP já diz muito por si só. Cada beat acompanha o momento emocional da faixa:
"Copão de 700" é funk animado, mas com melodias tristes
"Sobre Viver" é densa e introspectiva, com batidas pesadas
"Oração" tem sons de chuva, trovões e coração, que viram calmaria no fim
"Quanto Tempo" é reflexiva, sem bateria, para destacar os vocais
"Única Regra" tem uma vibe de alívio, com beat iniciado pelo Moza
3. O EP tem beats que misturam rap e funk, criando uma sonoridade bem autêntica. Como foi a escolha dessas influências e referências?
A gente pensou em como a juventude vivencia essas emoções. Usar o funk na faixa de abertura era uma forma de retratar desejos comuns — festas, drogas, liberdade — mas com uma camada de melancolia. Cada referência foi pensada para dialogar com o tema da ansiedade.

Sobre o mercado e a cena independente
4. Produzir um artista da Baixada num cenário ainda muito centralizado em outros polos é um desafio. Como você enxerga esse movimento de descentralização da música no Rio?
É sempre um desafio. A gente, da Baixada, quase nunca tem investimento ou incentivo. Acabamos criando nossas próprias oportunidades e abrindo nossas próprias portas.
5. No corre independente, o produtor muitas vezes extrapola a parte musical e acaba ajudando na estratégia do artista. Como foi essa parceria com o Jxão nesse sentido?
Esse EP foi uma colaboração completa, desde a ideia até subir nas plataformas. Tivemos apoio de amigos como Emanuel Sant e Jomboh no audiovisual, Gebê no release, entre outras contribuições.
6. Qual faixa do EP você sente que mais te desafiou ou representa sua identidade como produtor?
A que mais me desafiou foi “Quanto Tempo”. É uma música simples, com poucos elementos, o que me fez demorar a enxergá-la como finalizada. A que mais me representa é “Copão de 700”, porque consegui colocar muito da minha identidade como produtor, especialmente nas experimentações com funk.
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