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Quando criança, eu desejava ser branco.

Entre o céu e o inferno encontra-se o negro brasileiro que busca apenas um cantinho no mato só seu, ouvindo o som do riacho, correndo atrás da sua pretinha ao som de Djavan. Você deve estar se perguntando: “Sério mesmo que ele disse isso no Dia da Consciência Negra?” Deve estar me julgando: “Sério que ele disse que quando criança queria ser branco?” Sim, por alguns anos da minha vida, eu quis ser branco. Ser preto sempre foi associado ao lado ruim; meus pais brincavam sobre "clarear" a família. O grande intelectual das relações étnico raciais brasileiras, Munanga, já explicou que o “embranquecimento”, que já foi um instrumento publicamente apoiado pelo Estado Brasileiro, não acabou com os pretos, mas destruiu toda a sua subjetividade.


Eu quis ser branco. Ser preto era ruim demais; tudo de negativo era atribuído à minha cor. Na minha cabecinha de criança, ser preto consequentemente me tornava pobre. Ser pobre é um saco; por muitos anos, sonhei em ter um computador da hora que desse para jogar os games do momento. Só consegui aos 27 anos; antes disso, me sentia atrasado, como se largasse em último na corrida da vida, na corrida da meritocracia. Pobre, preto e marginal. Agora, eu adoto com gosto a marginalidade, mas por muito tempo me fez ser ansioso, imediatista e consequentemente fatalista. Baixada Fluminense, Belford Roxo, Bom Pastor. Tiroteios, assaltos, polícia, bandido, traficante, milícia e muitas mortes. Ver meus amigos morrerem e se tornarem invisíveis, mortos duas vezes, concretamente e simbolicamente, vivo somente na lembrança dos familiares, às vezes nem se tornam números.


Os olhares sempre me perfuraram o mais fundo possível. Por muito tempo, andei de cabeça baixa, não falava, buscava a invisibilidade. Passei boa parte do meu ensino médio assim, com medo de morrer, de fracassar, de apanhar, de estar no lugar errado na hora errada. No concreto projetado por Niemeyer e pensado por Darcy, eu vi nos livros da biblioteca, que abria uma vez por semana por falta de funcionários, uma visão crítica do mundo. Nos livros de Paulo Lins e Ferréz, vi que minha realidade não era puro acaso, que eu não deveria querer ser branco, que minha cor é única e também é protagonista desta história. Com o tempo, fui questionando tudo, ficando puto com um mundo que só me maltratava. Comecei questionando o ambiente escolar, decidi que seria presidente do grêmio; precisava lutar pelas outras crianças. Comecei a acreditar que poderia mudar o mundo. Virei presidente, refundei a entidade municipal com meus colegas, organizamos uma manifestação que mobilizou mais de dez mil pessoas. Sobrevivemos, mas o medo de morrer sempre esteve ali.



Beatriz Nascimento, em seu ensaio “Racismo na Mídia”, aborda como a televisão é um grande instrumento de reprodução de estereótipos e representações negativas sobre pessoas negras. Ela utiliza o seriado Sítio do Pica-Pau Amarelo [1977-86] para explicitar essa caracterização negativa atribuída ao negro. Ao questionar uma criança preta que assistia o seriado sobre qual personagem era seu preferido, a criança enumerou todos os personagens, menos os negros, especificamente a Tia Nastácia, a qual resumiu como “medrosa” e “boba”. Obviamente, estamos falando de uma obra de um eugenista; Monteiro Lobato foi um escritor que simplesmente teve um livro proibido de ser publicado nos Estados Unidos por ser racista demais para o povo norte-americano, e olha que estamos falando da década de 1920, o infame livro “O Presidente Negro”.


Eu não queria ser branco por achar a cor branca bonita; na verdade, eu queria ser aceito. Mais profundo ainda, eu queria conseguir me aceitar. Na minha ótica de fodido, sem ter tanto letramento racial como agora - e ter certeza da minha próxima afirmação -, mas na minha cabeça, ser branco era muito mais fácil. Ser preto é uma miscelânea de preocupações: ficar pobre, morrer, medo de fracassar, de não conseguir ajudar seus pais. Uma porrada de obrigações prematuras e de oportunidades tardias. Toda vez que rolava tiroteio lá em “Bel”, eu me escondia no banheiro, ficava me protegendo nos azulejos e planejando uma vida fora daquela loucura. Ficava muito preocupado com minha mãe, que tinha que descer o morro às 4 da manhã para ir trabalhar, esperar o ônibus nas ruas desertas de Bom Pastor; até hoje é a mesma rotina, que Deus continue a abençoar minha rainha.


Por muito tempo, o sofrimento da minha mãe não foi uma questão central em minha vida; eu naturalizei algumas situações, o estranhamento foi construído. Quando vi situações antigas com outros olhos, com um pensamento mais crítico, entendi o sofrimento que aquela mulher negra passou para criar dois filhos na Baixada Fluminense. Ela sem pai, vinda de Itaperuna, sem estudo, conseguiu, na base de muita garra, criar seus filhos e viver dignamente. Fez supletivo enquanto trabalhava de copeira, andava mais de trinta minutos a pé depois do trabalho para conseguir chegar no cursinho e se formou técnica em enfermagem. Vi uma postagem outro dia que me fez questionar muita coisa... Por muito tempo, acreditei que minha mãe não gostava de Fast Food; ela sempre comprava o nosso e, na vez dela, dizia que não estava com fome. Depois que descobri que ela fazia isso por falta de grana, entendi o quanto era abençoado por ter aquela mulher como mãe.

Tem coisas que a "branquitude" nem tá ligada, que em seus pactos narcísicos não chega, uma astúcia que temos de berço. Quem nasceu sem nada, com fome de tudo, não se abala tão fácil. Eu passei por todas essas situações difíceis, mas continuei de pé. Busquei cada dia ser mais eu, entender de onde vim, quem represento, quem vestiu essa cor antes de mim. Comecei a ler, questionar; entre Fanon e Guerreiro Ramos, há muita lenha para queimar. Entendi da branquitude, do colonialismo, das amarras do genocídio e da violência estatal, sua necropolítica. Tenho orgulho demais da minha cor, do meu povo. Orgulho de ser um homem preto que tem consciência do que ser preto representa. Zumbi, Dandara, Luiz Gama, Machado de Assis, Leila Gonzales, Abdias do Nascimento, entre outros. Dizer sobre meu desejo infantil de ser branco é denunciar o racismo que atribui um caráter negativo para a negritude.



Uma das maiores felicidades que carrego é ter a possibilidade de ouvir de muitas pessoas que fui um dos primeiros a falar sobre empoderamento racial com elas, sobre a necessidade delas buscar um letramento mínimo sobre o assunto, para se empoderar não só esteticamente, mas também do pensamento negro. Entender que todos os avanços, que ainda são poucos, mas necessários, que tivemos nos últimos anos são resultado de inúmeras lutas do movimento negro brasileiro. Que nossas crianças nunca desejem ser diferentes do que são só para serem aceitas, que nunca reneguem sua cor por conta de um sistema que mata, criminaliza e humilha o nosso povo. Por um dia 20 de novembro, sem nenhum corpo negro estirado no chão, por uma reivindicação de consciência para eles, pois para nós nunca faltou. Fé.


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