Por uma vida além do trabalho
- Pivete
- 13 de dez. de 2024
- 3 min de leitura

A gente não deveria nem estar discutindo escala 6x1. Por que essa correria insana? Saímos de casa ao amanhecer, nos esprememos em trens lotados, enfrentamos pessoas, coisas, demandas. Vivemos num caminho sem volta, dedicando nosso tempo, nossa energia, nossa existência para alimentar uma máquina que nos consome e nos leva à autodestruição.
E para onde vai tudo isso que produzimos? Segundo Jean Baudrillard, autor do livro “Sociedade do Consumo”, vivemos numa era em que o consumo não é apenas sobre necessidade, mas sobre o desejo e a imposição de símbolos. O consumo alimenta uma lógica de excesso: produzimos, descartamos, destruímos, repetimos. É um ciclo vicioso que transforma pessoas e objetos em descartáveis.
Documentários como “Conspiração Consumista”, na Netflix, mostram que tudo acaba no mesmo lugar: mares, desertos, aterros sanitários. Ironia: tudo vira lixo. A reciclagem não dá conta da nossa ganância. O plástico está aí, persistente. Até hoje, ninguém viu o primeiro plástico desaparecer. Criamos algo eterno — e ele parece que vai durar mais que a gente.
Mas ninguém pensa nisso. Não dá tempo. Existem muitos dispositivos para nos manter ocupados, alienados, explorados: a escala 6x1, a violência policial, a educação pública sucateada, a desigualdade econômica e social, o descaso com a cultura. Como diz Bauman, as armadilhas do consumo e das redes sociais nos prendem. Soma-se o racismo estrutural e tantas outras amarras. Nossos olhos e ouvidos estão tampados; nossos corpos e mentes, aprisionados.
Somos escravizados por um sistema que não só explora nossa força de trabalho, mas também nos humilha, violenta, descarta. Quando não servimos mais, ou quando nos tornamos inconvenientes para a exploração, somos jogados fora. Quebrados física e mentalmente. Pessoas que deixaram de viver para serem peças dessa grande máquina. No fim, o que sobra? Nada. Nem as memórias boas. Os raros momentos de folga, perto da família, são insuficientes para compensar o que perdemos.

Nasci num lar onde meus pais só me viam nos contra-turnos. Até que, um dia, minha mãe me deixou numa creche em São João de Meriti, enquanto precisava vender sua força de trabalho. Lembro dela me buscar no fim do dia. Eu estava sujo, cagado. Olhe para os lados: todas as crianças estavam assim. Era uma creche numa cidade-dormitório. Um lugar onde a classe trabalhadora se amontoa, cercada pelo descaso e pela violência.
Todos nós, filhos da classe trabalhadora, crescemos assim: sujos, aos cuidados de outros trabalhadores ou dos nossos próprios familiares, igualmente vítimas desse sistema. Um ciclo sem fim.
Já parou para pensar por que São João de Meriti tem bares, igrejas e farmácias em cada esquina, mas não tem museus ou teatros públicos? E Belford Roxo, com tanto descaso? O Rio de Janeiro não é só cartão-postal. Esses lugares são símbolos de uma desigualdade que segrega e priva.

Eu deveria ter lido “Vigiar e Punir”, de Foucault, na escola. Mas, claro, ninguém dá esse mole para os “Terror da Bel”, cheio de revolta, tu vai deixar eles aprender questionar o sistema? Se tivesse lido naquela época, talvez entendesse mais rápido os Cieps onde estudei. O meu era um pouco mais cuidado, mas isso não importa. Nosso tempo foi sequestrado, nossa cultura foi rebaixada, e nossa vida foi moldada para se ajustar a uma lógica que nos oprime.
Essa realidade me toca profundamente. Meus pais vieram de uma geração que não teve tempo. E eu também não tenho. Nosso tempo de viver foi sequestrado para produzir coisas — sempre da forma mais barata, apertando o parafuso humano um pouco mais, tudo em nome de uma economia que precisa crescer sem limites.

Mas no fim, a gente não quer tanto. Queremos um mundo mais justo. Tempo para viver. É por isso que digo: não tem o que discutir. Com tanta gente desempregada, é hora de criar novas escalas, dividir o trabalho, distribuir o tempo. Sabemos fazer isso.
Quem acorda de madrugada, pega trem, metrô, ônibus, trabalha oito horas e volta para casa para repetir tudo no dia seguinte sabe: isso não é vida. Não é utopia pedir mais tempo.
Nem estamos inventando nada, o inventado é o que está posto. Essa exploração incessante não é uma lei natural. Pelo contrário, estamos destruindo a natureza e a nós mesmos por conta dessa obsessão pelo lucro.
Por mais gente como Rick Azevedo. Por mais Movimento VAT no mundo.
Essa escala 6x1 tem que acabar. Vida além do trabalho, já!
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