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“Eu ainda tenho um coração”(2023);



“Eu ainda tenho um coração”(2023); eu ainda sinto tudo aquilo que me aflige. Eu sou ainda aquele 'neguinho' de pé descalço, correndo atrás de pipa, cheio de medo de morrer nas mãos da polícia, porém agora tensionando a margem em busca da paz financeira que muitos herdeiros nasceram. E quando eu vencer, todos aqueles que estiverem comigo na falta vão estar presentes quando sobrar.


Se em 'Esculpido a Machado' (2021) Leall se apresenta para o público como um dos maiores letristas do rap nacional, expondo seu íntimo e todos os atravessamentos que compuseram a trilha sonora da sua vida, mas sempre preciso na ideia de que só nós podemos mudar nosso destino, mesmo quando estamos presos nas pedras amarelas, nos desfiles bélicos, entre a cadeia ou morte.


Em 'Eu ainda tenho um coração', ele já se apresenta como um rapper negro em ascensão, que mesmo com uma condição financeira melhor e sendo um dos rappers mais promissores da cena, sendo elogiado pelo KL Jay (Integrante do Racionais Mc’s), ainda passa pelas mesmas contradições, obviamente que agora com benefícios. Este álbum do Leall é uma leitura do que é ser um negro jovem, rico e famoso em seu nicho, em um país onde ser negro é no mínimo insalubre.





“Onde que nó taria?” Essas reflexões, de sempre buscar pensar além do que se passa diante dos seus olhos, são um dos maiores dons do Leall. Ele questiona tudo, tensiona a margem, reclama de um sistema que ele sabe que só convive em suposta harmonia, pois tem dinheiro suficiente para apaziguar a besta. E se as coisas não tivessem dado tão certo, onde estaríamos?



“Sensação de Liberdade” é um dos clássicos do álbum, do beat de Nagalli e Rocco até o feat, só tem perfeição. É sensação de liberdade, só sensação mesmo, pois na verdade é determinada pelo seu poder financeiro. Então, mesmo se sentindo livre, Leall sabe que se encontra escravo do dinheiro - talvez por isso a próxima faixa seja “Malefício do Dinheiro”. Leall é incisivo nessa, como em todas as outras. Ele conta um episódio de racismo que sofreu no aeroporto voltando de um show, onde ao comentar com o parceiro de selo “Big Bllakk”, o mesmo apontou que ter dinheiro não necessariamente te torna livre. Podemos entrar aqui em um grande debate teórico, mas o rap de Leall é autoexplicativo. BK entra na faixa de forma sensacional. Eu o considero o melhor rapper brasileiro; não ousaria nem comentar sua participação, ela fala por si só."



“Malefícios do Dinheiro”, “Sem Saudade”, “Interlúdio”, “O Crime e a Música” e “Disritmia” seguem a linha de Leall de observar as contradições e refletir sobre elas. Entre a pobreza e a riqueza, entre o microfone e a arma, correndo atrás de algo que é negado desde o berço.


Vivência Maldita é o resultado de todos aqueles demônios que não vão simplesmente para debaixo da terra. Podemos alcançar todos os nossos objetivos na vida, mas as marcas de uma infância recheada de violência, medo e ódio não se cicatrizam tão facilmente. Na faixa com a participação de Sain e scratches de Erick Jay, vemos que o que levamos da vida não são apenas as partes boas. Não adianta tentar preencher esses vazios, pois você ainda tem um coração.



Talvez ter um coração seja isso, seja sentir, mesmo que essas coisas não façam mais parte de sua realidade. Você sente, pois ainda carrega o mesmo coração da época em que viveu aquilo. Ele segue na mesma frequência de batida, mesmo que do lado de fora você seja uma pessoa diferente. Leall, como um bom idealizador de álbuns - um dom que muitas vezes é visto como preciosismo, mas que cria uma experiência única no consumo da obra - deixa ao final seu coração exposto. É aí que vamos nos deliciar com a melhor faixa do álbum, na minha humilde opinião.


A verdade é que, no fundo, tudo isso é sobre ego. Mesmo que tenhamos chegado até aqui sem nada deles, quando nós temos, somos equiparados àqueles que sempre tiveram tudo. “Besteira”, que facilmente pode ser uma lovesong, com um sampler lindíssimo de Bebel Gilberto cantando “Preciso Dizer Que Te Amo”, uma obra-prima de beat de Babidi, se transforma desde seu primeiro verso. Não é sobre os assédios das amigas quando se conquista os valores necessários para ser abusado. Eu sinto a vitória a cada passo, mas sei que ao tropeçar, eles estarão lá prontos para dar fim em mim. Eles vão te aplaudir lá fora, neguin', tenha cuidado. É tudo sobre ego. Vão falar que eu estou cego, sei que vão querer dar fim na minha felicidade em alcançar meus sonhos. Tudo isso é besteira. Um bom malandro sabe o que almeja. Um bom malandro sabe sambar.



“Eu ainda tenho um coração” com outro lindo beat de Babidi, onde sampleou “Que Nem Maré” de Jorge Vercilo, resume o conceito do álbum em dois minutos. “Medo de Quase Nada” é uma atualização de “Posso Mudar Meu Destino”. Agora temos medo de quase nada, pois ainda existem inseguranças que insistem em bater em nossa porta.


“Eu tô vivendo um sonho, preciso me agradecer pela coragem / Graças a cada perrengue, cada momento de dificuldade / Eu me lembro tão bem de todos os processos, de todas as fases / De todas as dores, todos amores e oportunidades, oi / Medo de quase nada, apenas de perder meu filho (Grr, baow) / De me perder pelo caminho e não saber voltar pra casa / De não saber fechar o ciclo e confiar em gente falsa / Eu sinto medo do destino, porque sou eu que escrevo as cartas…”


Para finalizar, Leall ainda tem uma pedrada no bolso: “Julho de 2001”, verdadeiramente um grito de liberdade, um grito de aceitação, de um entendimento de que mesmo com todas as contradições, somos guerrilheiros, a cada dia mais fortes do que no dia anterior. Somos frutos de luta, de conquista.


“Era julho de 2001, mais um neguinho na rua / Mais um filho de mãe preta, mais um de canela russa / Mais um sonhando com tudo, sem nenhum medo do mundo / Mesmo com as armas na nuca / Bem no meio da divisa, entre a palmeira e o muca / E eu peço perdão por todas às vezes / Todas as crises, todas as cicatrizes / Causada pela sede, o meu final vai ser triste / Sou como um peixe na rede, que enfrenta o medo e tentando fugir, resiste…”


Ouça Leall, “Eu Ainda Tenho um Coração” está disponível em todas as plataformas digitais.



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