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O ponteiro da velocidade marcava 165 Km/h. O som não estava ligado. O dia era de sol, não estava quente e nem frio, era apenas um claríssimo dia de sol. Dentro do carro só se ouvia o barulho do motor. O destino era certo, apesar de a vontade não ser assim tão precisa. O carro andava, mas, e se por um instante, só por um instante, ele desse um puxão para o lado para ver o que poderia acontecer, afinal de contas, quem poderia se importar com isso? Ele tinha família, pessoas próximas, mas quem sentiria isso mais que ele?

Assim, o carro seguia sua direção, implacável, ao mesmo tempo em que a incerteza também o guiava. Talvez fosse assim a vida. Quem poderia se importar? Seria normal alguém pensar coisas como aquelas? Talvez... Quem pode imaginar o que se passa na cabeça de alguém. Não seria suicídio, apesar de ter uma enorme chance de as pessoas sofrerem, mas quem poderia sofrer mais que ele?

O homem seguia, controlando e se sentindo controlado. Controlado pelo quê? Controlando o quê? De nada adiantava pensar naquelas coisas aquela altura da vida. Mas, com tudo aquilo, o que mais ele poderia querer? Tanta gente querendo tanta coisa, quem seria ele para desejar algo? Qualquer coisa... O que poderia custar? Ao universo, ao presidente... sei lá, a qualquer um que tivesse mais do que ele…

Uma curva, o que poderia acontecer se ele passasse reto? A curva passou. O carro ainda está na pista, afinal de contas, talvez ele não fosse um piloto tão mau assim... quem poderia saber? Só entrando na cabeça das pessoas para ter certeza, e isso, pelo menos algum tempo atrás, era impossível, menos nos casos de cirurgia ou necrópsia, aí era diferente, mas no resto... impossível! Hoje, as pessoas não podem ter tanta certeza, olhem os anúncios... Às vezes só de falar já aparecem! Às vezes a gente só pensa... Será que apenas ele pensava? Não dava para saber!

Pedágio... Alguém deve sofrer mais que ele! Trabalhando ali... Vai saber, mas deve sofrer no final das contas, não pela vontade dele, mas pelo sofrimento mesmo! Pelo menos ele tinha dinheiro pra pagar, ainda que sobrasse pouco depois, pelo menos a moça do guichê não saberia, a menos que ela fosse bem sagaz ou uma cartomante... Mas, quem teria tempo para jogar cartas aquela altura do campeonato? A vida, talvez...

Voltamos à estrada. Do zero. Recomeçar! Coitado do homem, o carro dele estragou, não esse, mas aquele outro! Ele é qualquer um, não conhecemos, mas coitado, não é fácil ficar com o carro estragado! E se o dele estragasse também? Deus o livre! Mas e se acontecesse? Já pensou? Deus o livre! Coitado do homem! Ficar na mão nunca é fácil! Talvez não precise do carro, vai saber... Mas à pé também é complicado! Os homens das cavernas não precisavam de carros, nem sabiam o que era... Hoje o tempo é outro! Não comemos carne crua também! Já inventaram o fogo! Graças aos homens das cavernas! Só quem come carne crua hoje em dia é japonês e quem já tem farinha em casa. De resto? Mais ninguém!

Estamos quase lá! Nenhum acidente. Ninguém vai chorar... Não hoje, algum dia! Talvez... Tem gente que é forte e não chora. Tem gente que é forte e também chora. Não dá para saber o que está na cabeça de ninguém. Só a internet lê pensamentos!

O destino está chegando, mas poderia ser mais longe! Que ideia tola, quem poderia querer ir para mais longe com o ponto final tão perto? Quem pode imaginar o que cada um precisa...? Vai saber…

Seu destino era o que era, e estava perto. Ele já conhecia, mas, vai que, repentinamente, algo apareça e mude tudo? E se ele passasse direto? Já pensou nisso? O que teria de absurdo nisso? Não dá pra saber, são apenas suposições! Tudo no mundo das ideias! A vibração do volante, o barulho do motor, o clarão da paisagem, a imensidão da rodovia e até os buracos da pista, aquilo era real! O resto? Talvez um novelo que se enrolasse mais e mais, desordenadamente, à medida que a roda rodava. O carro tem marcha ré! Amanhã, talvez, ele fosse de ônibus, ou à pé... Ou de bicicleta! Daqui a pouco ele morre mesmo…

Motor desligado, porta aberta, sorriso no rosto, ele chegará ao seu destino ou estava apenas recalculando a rota? Vai saber...


Por Reginaldo Gonçalves.

 
 
 

Atualizado: 30 de out. de 2023




Era de tarde, lá pelas dezesseis horas deu um quase final de fevereiro. Mormaço, calor, segunda-feira. Estava para o centro da cidade assim como o centro da cidade estava para mim. Um dia típico no Rio de Janeiro, que talvez somente os cariocas sabem o que é. Às dezesseis horas é quase o término do expediente da grande parte dos trabalhadores. Iniciava-se um burburinho de final de expediente, um aumento considerável do ruído citadino. O centro do Rio é um lugar de ninguém e, parece-me, que ninguém é deste lugar, exceto os “moradores de rua”. Pois é por conta de “um desses” que me coloco a escrever.

Após um dia de trabalho- aqui falo particularmente do meu próprio dia de trabalho-, fui ao centro do Rio comprar alguns livros. Atravessava a famigerada “poça”, o ritual de passagem de muitos trabalhadores e trabalhadoras que enfrentam o mais pesado e traiçoeiro cotidiano violento e simbólico. “As barcas”, assim são popularmente conhecidas, estava vazia; um contraponto de sentido, pois quem a toma como transporte no sentido oposto, a essa hora, pega a “hora do rush”. Aquela hora em que os corpos incongruentemente se tocam, os fluidos se afloram, as pessoas se entreolham com suas olheiras após um dia estafante de trabalho, duro em sua acepção mais furtiva. Ao sair da plataforma, fui pego por um sol penetrante, daqueles que sentimos cada raio em nossa pele; minhas pupilas, além de doerem, dilataram-se. Comprimiram-se e refestelam-se. Pus logo meus óculos escuros.

O sol no final do verão parece tão mais quente quanto aquele do início de dezembro. Sentia minha têmpora latejar. Atravessei a famosa e consagrada Praça XV e ao atravessá-la, ou melhor, enquanto atravessava, observava uma deterioração natural, no entanto com sua beleza comum para um centro de cidade. Pessoas aqui transitam num vai-e-vem frenético, paralítico, inebriante. Parecia um mar onde os peixes conscientemente assumem um sentido biológico em seus movimentos.

Apenas no meio da praça é que se percebia um sentido diferente na direção que se tomava; alguns rapazes andavam em seus skates, pareciam que aquela prática tornava aquele meandro ao mesmo tempo perigoso e jovem, dava uma tônica completamente fora do eixo para aquele centro da cidade. Passava ao redor daquela redoma jovem e rebelde, ouvindo o som metálico das rodas dos skates batendo e ralando no chão. Algumas vozes e expressões cacofonias do próprio dialeto do skate davam aquela tônica própria daquele instante. Não parei para observar a arte do surfe de concreto, mas percebi o quão desafiador aquilo representava. Não somente um desafio para aquele meandro, e também não somente para a física, mas para todas uma estética citadina; esta prática representava uma ruptura. Aquele som dava a sinfônica do momento e lugar. Eu passava à direita da Praça XV, bem próximo ao Paço Imperial e de um monumento histórico. Observava as coisas monumentais escritas nas paredes sujas, nos canteiros de obra e nos homens de terno e percebia que tudo compunha-se numa linguagem mais abrangente e somava-se ao sentido do som dos skates, da sujeira proposital, da estética das paredes sujas: toda uma representação da sujeira que tinha um significado seu.

Aquele centro particular dentro de outros centros, dentro de uma redoma ainda maior que denominam como centro da cidade. Num relance, tomei consciência de que mesmo aquela paisagem sendo familiar, pois não era a primeira vez que ali passava, meio que de repente, tomei consciência de minha consciência. A frase é de um efeito confuso, pois esta era a exata sensação de quem é tomado por sua própria consciência no meio de uma metrópole no meio da hora do vai-e-vem. Esta é a exata sensação: uma confusão sonora, um jazz ritmado e misterioso. Um lugar estranho que, aos poucos familiarizou-se em mim. Até aquele instante, a cidade era apenas um lugar de trânsito, coisas, pessoas e coisas, pessoas-coisa, um fervor perigos, mas lentamente o caos acostuma-se em nós

Depois de minha tomada de consciência, ou da consciência que me tomara, ainda mais distante, do meu lado direito, avistei o Arco do Teles: sujo, perdido, invisível ao mais atento olhar àquela hora de uma tarde de segunda-feira. Ando mais um pouco e uma genuína cobra de metal passa diante de mim: silenciosa, preste a dar o bote. Paro diante de seu movimento e por sua cor prateada e suas janelas, vejo o reflexo de um homem de trinta anos: era eu naquele lugar. Foi um efêmero instante onde diante do caos citadino eu via inteiramente minha imagem projetada. Via que o caos era a grande sinfonia do momento e do lugar. Como mais uma de minhas tomadas de consciência, mais um pensamento se fez em minha cabeça: “será que é assim o tempo todo, ou a cidade dorme?”. A gigantesca cobra prateada passou e esvaziou em mim esses pensamentos. Segui meu destino.Dei alguns passos e me vi novamente dentro de uma outra cidade, mas sabia que era a mesma- entre aspas. Alguns passos e tudo mudou. A arquitetura era outra, as pessoas também pareciam ser outras, vindas de outros lugares, mas nelas havia algo de comum.

Me desvinculei de meus pensamentos e tomei o rumo do meu pensamento original: livraria, siga em frente. Ao atravessar a Rua 1º de Março, entrei na Rua do Ouvir, o centro da cidade concentrado. Rua estreita, cheia de paralelepípedos e meio-fio, feitos sob medida para os carros e as motos que ali circulam. Nesse meio tempo, o tempo passou e não percebi. Andando em um rumo certo, no meio daquilo tudo, um homem grita. Agora ao descrever tal cena, que não consigo descrevê-la de forma tão detalhada, pois tal acontecimento se deu em minha dianteira, não consigo recordar aquilo que ali ouvi, mas foi um grito estrondoso. Todos que ali estavam olharam para os quatro cantos que os rodeavam para saber de onde vinha aquele grito. Eu mesmo fui um deles. Parei e comecei a olhar todos os possíveis lugares dos quais o grito poderia vir. O tal homem invisível novamente gritou e cada vez que ele gritava parecia ainda mais alto. Na medida que eu caminhava, aquele som me fazia perder o sentido de andar. Eu andava e ouvia novamente aquele berro. Agora, relembrando, foram quatro ou cinco berros bem altos, mas a exatidão dos fatos de nada vale aqui. O que vale nesta descrição é o efeito que isso em mim causou. Aqueles berros me fizeram parar. Parar em um lugar de fluxo intenso é como nadar contra a corrente.

Este ato repentino me fez enxergar a cidade que me rodeava, como um astrônomo observa as galáxias e, ao observá-las, vê a si mesmo. Naquele instante eu me vi naquele lugar, me vi transgressor, me vi humano, porque parei. Como num carro que anda, parece-me que a gente só vê as coisas quando algo irrompe; enquanto aceleramos, vemos a passagem, os borrões das coisas passando, vemos a estrada, mas não apreendemos nada. Naquele momento percebi que a cidade possui um pulso próprio. Pude ver que ali pessoas são pessoas, que o vendedor de cuscuz é uma pessoa, que o vendedor de balas é uma pessoa, que a moça cansada na lanchonete é uma pessoa, que eu era uma pessoa ali. Percebi também que as paredes de mármore dos prédios são tão bem limpas e lustrosas que conseguimos nos ver nela. Desta vez me vi parado em um reflexo estático e percebi o quão contraditório era aquela imagem no meio de uma cidade, onde todos são ninguéns e que as pessoas só se percebem nos espelhos dos banheiros dos escritórios, juntamente quando elas param; mesmo que elas se percebam diante dos reflexos do monitores, ainda assim não é uma percepção genuína. Naquele momento, a coisa pelo qual me levou aquele lugar já havia se desvanecido. Minha vontade era de ficar ali, parado naquela sociedade em miniatura, observando o ir e vir daqueles personagens de um jogo mental criado por quem, ao mesmo tempo que observa, alinha uma possibilidade ou outra para o fato que é ocular.

Por Roberto Brito

 
 
 
  • Foto do escritor: Dimas
    Dimas
  • 30 de ago. de 2021
  • 13 min de leitura

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O primeiro dia de serviço é um reconhecimento de terreno. O que fazer e como fazer dependem do espaço, disposição material, e um pouco de movimento. Organizei tudo num plano. De uma ponta a outra, entre portões e telhas, 40 metros de muro compacto. Cimento envergado para fazer divisas. O dono T. M. me disse que tinha tentado, e se cagado todo. Surpreso que o branco da cal respingou colorindo. Um homem naquela idade, bem nutrido, e com o cérebro em perfeito estado deveria supor que isso acontece. Mas a vida tem dessas. Logo ele se colocou a negociar valores, dias, serviços.

T. M - Como vai ser a diária?

Dimas - Para caiar? 100. Coisa rápida.

TM - Mas temos que ver isso aí. Tem que ser bom pra mim o valor. Eu tô pagando.

Dimas - Tem que ser bom para os dois. Sem pagar, sem serviço. Eu estou trabalhando.

Pensei que eram dois dias, pra fazer pegar bem no muro. Gosto de saborear as coisas. Fazer a cor surgir. Acho que a visão do feito é tão boa para quem faz do que para quem contrata. Há um alcance, uma conquista. Um tempo vivo. E por isso, dei garantia do trabalho. De uma ponta a outra, pequenos problemas para acertar. E entre muitas conversas, ouvia ele dizer sobre coisas que estavam fora do prumo. Acertos além do normal, coisas já diferentes a serem feitas. Mais do que o serviço seria. Não deixei faltar.

Vi aquilo tudo como um grande laboratório. Tudo era observável. Tudo era entendível. Tudo era diferente e ao mesmo tempo semelhante. Era um vizinho. Conhecia ele por fora, e agora estava dentro. Observava detalhes em coisas que antes eram borrões de memória. Sua casa, ascética. Parecia feita à uma espécie de ficção de cimento. Dois andares, planejada. Entrada para um jardim, duas passagens para o fundo. Chão de porcelana. Sem muitos efeitos vivos. Um silêncio. Cachorros presos. Tudo parecia estar em sentido. Posto às ordens do Tenente. À casa ele se referia como um “filé de badejo”. Ouvi essa expressão em sua conversa com o homem da imobiliária, que tinha chegado a sua casa pouco depois de mim, enquanto acertava alguns dos buracos na base do muro. Coisa comum.

Na rotina valorizei o bem da coisa. Trabalhei com cuidado. Cuidei para que o combinado fosse cumprido. Enquanto ele se gabava para o homem da imobiliária, massei nas partes. Vi uniforme e preparei outros movimentos. Ele percebia de longe os meus. Talvez já pensando de longe em me colocar para fazer outros serviços. Não entendia que tudo aquilo era parte de uma mesma coisa. Preparação de um antes para o depois. E logo me lançou a outros serviços. Vamos ver… vamos ver… de cá pra lá, surgiram telhas, frisos de porta, portões. Em um deles ele misturou gasolina com verniz. Tudo borrado, mal feito de quem não sabia. Ele com toda a postura de autor, não justificava, insistia. Vi tantas coisas, que de um dia para o outro tive que parar e caiar o muro.

No final do dia nenhum acerto. Só pagava na hora do almoço do dia seguinte. Parecia ter o costume. Não quis saber de fazer diferente. De manhã, em cada dia, era uma cena comum. A tinta acrílica que ele trouxe do fundo de casa não aderiu à madeira do portão. O esmalte branco com que ele estava pintado fez escorrer destoando o branco do fundo do branco novo. Sua insatisfação se fez presente sem rodeios. E ele, com a camisa do grupamento de infantaria paraquedista, vibrava em um tom de advertência. Como se algo fosse me acontecer já que não ficava no seu agrado.

T. M - Isso aqui, olha. Não pode. Eu que tô pagando, não posso te ensinar a fazer. Isso aqui tá uma merda, concorda comigo?

Dimas - Isso acontece. É normal. Trabalhar com tinta tem dessas coisas. Vai pingar, mesmo com jornal no chão. Acontece. Mas é fácil diluir e limpar. Quanto às manchas, como eu te falei, a tinta que você me deu não serve.

T. M - Mas temos que usar o que tem. Não é isso? Eu quero vender a casa, não quero gastar dinheiro. Temos que inovar. É assim que se diz no quartel. Então é isso que você tem que fazer.

Dimas - Eu estou sendo sincero e honesto com você. Assim não vai ficar bom. Demanda mais tempo. Precisa lixar, usar outro tipo de tinta. Assim você só tem aparência.

T. M. - Vai fazer e depois a gente vê. E faz um rodapé cinza também. Nessa medida da primeira madeira do portão. Para esconder os buracos. Vai ter visita na quinta feira e no fim de semana. É bom que você esteja aí. Eles vão te ver trabalhando.

Dimas - Vou continuar o serviço. Quando terminar te chamo para você ver.

T. M. - Entendeu o que eu falei garotinho?

Dimas - Entendi.

Senti uma gastura com aquele ambiente. Mas colocava meus fones no ouvido e ignorava a presença dele. Tentava me comunicar com os cachorros, me aproximando, assobiando de longe, e em pouco tempo se acostumaram comigo. Latiam de longe. Abanavam o rabo. Quando conseguiram fugir, se aproximaram. Levei o trabalho com rigor. Enquanto o dia passava, olhava as nuvens no céu, sem grandes expectativas. O que elas traziam com o vento, suas formas na pintura, imaginava seus movimentos. Voltei a estar diante do muro, pronto para executar os finalmentes, o combinado de início. 40 metros adiante, cal diluído. Tudo pronto. Fiz tudo de que ia começar. A cal é um pó de base. Serve para proteger da umidade e evita o aparecimento de fungos. Diluído reflete o seu branco seco. Um composto químico, calcário esfarelado. Normal que na aplicação respingue em um canto ou outro. Coisa simples de resolver. Atento, carregava no bolso um pano para secar os excessos. Na paz, concentrei os movimentos com a respiração. Via os detalhes. Os rios que se cruzavam verticalmente. Carregando os primeiros traços de cor. Escorria, marcando seu percurso. Evitava os fins prolongados. Uma mão sobre a outra, até que tudo ficasse igual. De começo, molhado, depois caiado. Assim foi, do contorno do jardim, até chegar ao corredor.

No corredor, antes de começar, vi as fissuras. Antecipei o movimento, e segui o rumo. Descasquei toda a área. Encontrei as bolhas. Lixei tudo até ficar homogêneo. Emassei. Tudo conforme o necessário. Sem maiores problemas. Enquanto esperava secar, olhei para as telhas que cobriam o muro. E dei uma lixada para começar a pintura. Ali do alto da escada percebi o vento que vinha do leste. Era chuva forte. Fragatas bem lá no alto. Fugindo do litoral ou jogando suas asas para o interior. Avisei que com chuva que chegava não tinha como continuar. O risco era grande e não serviria. Poderia sujar o chão, ou estragar o que já se tinha feito. Expliquei para que entendesse. Sabia do que falava. Não por mim, mas pelos mestres pescadores da praia de Itaipu que me ensinaram. T. M. claro que duvidou.

T. M. - Faz isso que a gente vê depois. O que importa agora é continuar. Quero isso tudo pronto até quinta. Como eu disse, quero vender a casa. O que importa agora é que fique diferente do que está. Depois, quem comprar que dê um jeito. Se pintar vai ficar bom né?

Dimas - Depende do que você considera bom. Não vai ficar da melhor forma. Vai mudar de aparência. Eu lixei, a tinta vai pegar. Mas com chuva pode estragar tudo. Se quiser posso começar a cal no murinho dos fundos. Como é a primeira mão não vai ser problema.

T. M. - É, faz isso. Adianta isso pra mim. Com esse vento pode secar mais rápido também. Você não acha? Antes de chover o vento secar? O que importa agora é isso feito, direitinho. Não quero ficar falando. Tendo que te ensinar o seu serviço. É com capricho? Tem que ser no capricho. É como fazemos na caserna.

Dimas - Beleza. Vou adiantar aqui. Depois te chamo.

T.M - Me lembra de te mostrar as janelas que eu passei verniz. Vou acertar com você pra fazer pra mim também.

Ali da sacada, de onde ele estava, eu já via os borrões. Borrões escuros, que denunciaram o desperdício. Enquanto gritava para os cachorros, quis fazer um assunto. Contar uma história. O ouvi de costas enquanto continuei a caiar o murinho dos fundos. Observava os cantos, delimita os campos de agir, preenchia lacunas. O movimento não se encerrava, sem que a cal fosse revirada no fundo do balde. Movimento contínuo, 10 metros na distância para a esquerda. Enquanto ele contava:

T.M. - Um dia eu estava na frente de casa. Na sacada também. Avistei mais ou menos nessa distância, em que está eu e você, uma pessoa agachada. Assim mesmo. Isso perto do meu muro. Balançando o mato. Ficou ali uns 30 minutos. Comecei a desconfiar. Tô eu aqui, avisando para sair. A pessoa não responde. Passou 1 hora. Já tinha bebido os meus aqui. Peguei minha pistola e mandei o primeiro. A pessoa apareceu, me olhou e saiu correndo pro final da rua. Depois fui saber quem era.

Dimas - Quem era?

T. M. - Era uma moça que mora ali na curva. Filha daquele rapaz que morreu. Aquela que carrega um monte de lixo pra dentro de casa. Acho que é maluca.

Dimas - Sei quem é. Família antiga aqui. Ela é esquizofrênica.

T. M - Dou graças a Deus que não acertei. Imagina o remorso que eu ia ficar. Ainda bem que eu errei. Se eu mato ela nunca ia me perdoar. Mas, depois me lembra de falar com você onde eu quero passar verniz.

Ouvi lá de dentro que tinha outra pessoa na casa. Uma mulher. Apareceu já passando. Desapareceu por entre os cômodos. Não sei se fingindo se esconder, ou evitando de encontrar ele diretamente. Ele a chamou, escutei ele dizer.

T. M.- Olha o vidro da janela. Aquilo está limpo?

A mulher respondeu se esquivando, já antecipando aos finalmentes. Largou a vassoura com pano molhado que passava pela casa num canto. Catou um pano, borrifou um líquido sobre ele. E tratou de ilustrar toda a vidraçaria.

Foi nesse ínterim que ele saiu de casa e foi até mim para acertar o serviço. Já era o fim do dia, 17 horas. De minha parte, considerava finalizado o dia. Tudo nos conformes. Material guardado. Acertaria os detalhes para o fim, no dia seguinte. Ele veio caminhando pelo corredor. Braços para trás. Inspecionando meus fazeres. Tinha percebido o bom andamento. Parede lisa e caiada. Muro caiado. Os fundos da casa também. Pegou no dinheiro e me olhou. Perguntou (na dúvida?) quanto era minha diária. Tentando acertar para uma meia no dia seguinte. Apontando já para outros pontos na parede, onde queria uma pintura de tinta normal. Numa delas, ele se queixava da mancha de óleo queimado na parede. De sua autoria.

Dimas - Minha diária aqui é 100. Para caiar. Qualquer outro serviço vamos ter que negociar os termos. Dependendo do que você quer podemos fazer em meia diária.

Com um sorriso no canto da boca ele começou a falar

T. M. - Mas aí você chega às 8 horas? Sai que horas?

Dimas - Meia diária, significa meia diária. Metade do valor é a metade do dia.

T. M - Você acha que dá para fazer? Preciso disso pronto. Amanhã vão visitar a casa. Se precisar de você por mais tempo, dependendo do serviço, como vai ser?

Dimas - Não depende do serviço. Dependo do tempo para fazer as coisas bem feitas, de acordo como elas devem ser feitas. E para isso eu cobro o equivalente. É o preço.

T. M. - Tá bom, vamos ver garotinho. Vamos ver isso aí. Olha só, vi aqui a base do murinho, está com uma mancha verde.

Ele pegou uma enxada no canto e começou a raspar sobre a superfície do muro. Esperando resolver o problema. Em vão, não conseguia. E eu já me permitia rir dessas investidas. Percebi o quão ridículo ele se prestava com aquele personagem.

T. M - Viu, é por isso que eu fico puto. Essas sobras aqui. Esse esverdeado. Não pode. Eu tô te pagando pra resolver isso pra mim. Preciso pegar uma enxada pra te mostrar como faz. Tá vendo? Concorda comigo?

Dimas - Eu passei a escova de aço. O esverdeado ainda vai aparecer durante um tempo. A cal vai puxar. Isso demora um tempo. Amanhã você vai conseguir ver.

T. M. - Tá certo. Vamos ver amanhã. Você chega às 8 horas, não é?

Dimas- 8 horas estarei no seu portão.

T. M - Toma seu dinheiro. Acho que esse vento vai secar essa cal que você passou antes da chuva chegar. Não acha? Não tem problema se chover também. Tem que mudar a aparência para amanhã. Com você pintando e o material espalhado, a pessoa que vai vir amanhã ver a casa não vai reparar tanto assim. Pode ir, até amanhã.

Dimas - Até amanhã.

No caminho pra casa, fui caminhando. Refletindo sobre muita coisa. Passados recentes. Tempos de faculdade, coisas que aprendi. Tudo fazia mais sentido agora. As coisas não tinham acaso, ou eram fruto de um mal entendido. Como tudo aconteceu em ordem, não me lancei fora do tempo. Me pus a analisar naquela noite as atitudes do Tenente. Via antes de tudo uma necessidade de afirmação da autoridade, um poder da força. Uma dignidade travestida pela coerção, pelo enfraquecimento do outro. Fazia mais sentido ainda, quando me lembrei de algo que ele deixou escapar sobre o seu passado. Vinha do Sul. Era herdeiro de terras, de um grande fazendeiro, que tinha seu mando exercido sobre uma pequena cidade próxima a Caxias do Sul. Gabou-se satisfeito deste trisavô. Feliz pelas conquistas de sua vida. De quem nunca trabalhou para si, antes que os outros se vissem obrigados a fazer.

Me afastei dessas ideias, enquanto caia a noite. Decidi correr. Fiz um longo percurso. Com força, mantive o ritmo por um longo período. A respiração no prumo. Afastando as ideias de limite. Me impulsionei intensamente. Subia ladeiras como se fossem descidas. Dava saltos entre as calçadas. As ruas se cruzavam sob os meus pés. Os transeuntes não me viam. Eu era o silêncio da noite. A chuva caiu como de esperado. E não me incomodei com ela. Tirei a blusa e deixei correr pela pele como uma benção. O vento frio me aqueceu, e levou todos os meus medos embora. Avistei de longe um ponto alto. Mirei nele com o espírito. Aumentei o ritmo. Evolui. A mente firmou o corpo, e o corpo já se guiava. Sem fraquezas.

Na manhã do dia seguinte ainda senti essa força presente em mim. Cada passo era firme. A postura reta. O olhar, penetrante. Renovador. Determinado. Preparei o meu café como de costume. Um copo de limão com água. Bananas, granola e mel. Minutos depois uma sensação de desconforto. Suspeitas de que o dia estava torto. Coloquei meu macacão e fui. Bati na porta do Tenente às 8 horas. Como combinado. Ele a abriu. Não olhou em meus olhos. E fez com o braço para que eu entrasse.

T. M. - Bom dia!

Dimas - Bom dia! Vamos ver o serviço de hoje?

T. M - Sim, vamos lá atrás.

Dimas - Viu se a chuva chegou antes ou depois da cal secar?

T. M. - Vamos ver agora. Olha perto do murinho. Ontem eu tive que ficar limpando isso tudo aqui. Respingou em tudo. Ficou uma merda. Vai ter que fazer outra vez. E a parede também que eu te pedi. Respingou em tudo.

Dimas - Eu falei a você sobre a chuva, que iria escorrer.

Já me respondeu sem disfarçar, revirou o corpo apontando para as partes do muro já elevando o tom de voz.

T. M. - Isso é serviço de preto!

Olhei para o relógio e pensei: “8:10”.

Dimas - Vamos parar por aqui. Acabou o serviço agora. Isso que você falou eu não posso admitir. Vou finalizar o que já tinha combinado. Pela minha palavra. Mas não aceito receber seu dinheiro. Não trabalho para um racista.

T. M. - Que? Como assim? O que eu quis dizer não foi isso. Tá tudo sujo, era isso. E eu não falei serviço de preto. Falei serviço preto. É diferente. E se você olhar, tá respingado nas folhas. Tá ou não tá? Eu fiquei limpando, passando a vassoura. Não pode assim, porra! Olha você, concorda comigo?

Dimas - Não! Eu te avisei sobre a chuva. Que iria acontecer. Depois eu resolveria. Agora, como eu disse, não posso admitir mais nada. Acabou o serviço. Fiz um juramento e não quebro a minha palavra. Sou um professor de História. Sei onde você quer chegar.

T. M. – E daí? Minha irmã também é professora. Você quer ver hierarquia mesmo? Olha lá, olha para as plantas. Está tudo branco. Serviço preto.

Dimas - Isso nem tem lógica. Você me ofendeu. E ofende amigos meus. Não tem conversa. Minha palavra não tem preço. E você não vai me comprar, nem me convencer do contrário. Farei o combinado de antes, pela minha palavra. Depois vou embora.

Vi que ele não se sentia nada bem com as palavras que escolhia. Minha reação foi espantosa para ele. Devia estar acostumado a ter esse tipo de atitude. A não ser repreendido. A ter essa suposta força, uma autoridade torpe, que esperava minha cumplicidade. Jamais deixei baixar minha cabeça. Nem com seu pedido de desculpas que veio no desespero, um último recurso. Um pequeno passo. Mas nada que me fizesse voltar atrás.

Dimas - Posso até aceitar seu pedido, mas será apenas para que essa discussão acabe. Não vou esconder o que eu sinto. O que eu senti com as suas palavras. Isso não posso fazer. Não é da minha índole. Está feito. Eu sou preto. E não temo as suas palavras. Elas não me atingem. Se você soubesse fazer, teria feito. Mas depende de alguém que faça isso pra você. E eu não estou nada disposto a trabalhar para um racista.

Depois disso ele apareceu ainda mais ridículo. Cheio de palavras, me chamando de amigo, forçando relações. Me oferecendo coisas. Andando ao meu lado enquanto terminava o prometido. Ele elogiou o meu trabalho no portão. Fingindo contato, querendo apaziguar, estabelecer uma trégua. Me firmei, recusava. Pedi distância para terminar. Já estava ridículo. Ele veio lá de dentro. Altivo, com um pote de ovos de codorna nas mãos, me ofereceu com os olhos de lado. Um deles no garfo. Pedindo clemência. Ali era a hora, a minha vez. Não pedi licença, fui embora. Deixei tudo onde estava. Olhei para ele nos olhos. Firme. E percebi que ele já não acompanhava o meu ritmo. O que dei foi a resposta, ao mesmo tempo que retirava o chão dos seus pés. Saboreei sua queda, sem nenhuma pressa de vê-lo se esborrachar.

Dimas - Tudo muito fácil pra você. Suas palavras, suas posturas. Desde quando eu cheguei tenho percebido. Não há respeito. Quer se sentir forte sobre os outros. E você espera que aconteça comigo. Você quer me cobrar o silêncio. Abaixar minha cabeça. Curvar o meu corpo. Ter minha força nas suas mãos, fazer dela o que quiser. Mas não me conhece. Não faz ideia de quem eu sou. E do que me move. É contra isso que eu luto. Pessoas como você eu vejo a fraqueza de longe. Há tempos. A mesma fraqueza de antes. Depende da cor para se valer. Mas meus valores são outros. Meus ancestrais são minha força. E nela você não pode tocar. Aqui você não me alcança. É pequeno. E o que diz é vazio como a sua alma.

Vou embora. Não quero o seu dinheiro. Racista!

Deixei o Tenente falando sozinho nos fundos da casa à venda. Saí pela porta da frente. Cabeça levantada, olhos fixos no horizonte. Aos poucos recuperava alguns sentidos. Percebi o som dos fones atingindo meu ouvido. Tocava Exu do Blues. Enquanto caminhava pela rua, volta pra casa, a voz de fundo dizia:

“O que é ser um Bluesman?

É ser o inverso do que os outros pensam

É ser contra a corrente

Ser a própria força, a sua própria raiz

É saber que nunca fomos uma reprodução automática

Da imagem submissa que foi criada por eles

Foda-se a imagem que vocês criaram

Não sou legível, não sou entendível

Sou meu próprio Deus, meu próprio santo

Meu próprio poeta…

Se você não se enquadra ao que esperam

Você é um Bluesman”


Por Ademas Pereira

 
 
 
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Todos os Direitos Reservados | Revista Menó | ISSN 2764-5649 

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