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Acordei tarde. O calor me fez revirar horas na cama sem conseguir aprofundar o sono, mas a prostração não me deixava acordar. O limbo. Fiquei nesse estado intermediário por um tempo que não consigo definir. Quando acordei doeu, no sentido literal. Os músculos estavam fatigados e o pescoço parecia ter torcido. Também sentia uma dor aguda no fundo da cabeça.

Ainda com os olhos embaçados, peguei meus óculos e levantei com o propósito de lavar o rosto. Minha filha pequena estava postada em frente ao computador engajada num desses jogos multiplayer da internet.

– Que horas você acordou? – perguntei preocupado, ainda zonzo.

– Já acordei faz um tempão – respondeu sem nem olhar para mim.

– O que é isso aí? – perguntei esfregando os olhos para limpar a remela e aproximando o rosto da tela para ver o que estava acontecendo.

– Você não pode ligar e entrar nesses jogos sozinha, minha filha. Tudo bem? Da próxima vez acorda o papai. Está bom?

Ela não falou nada, balançou levemente a cabeça e simplesmente continuou ali jogando. Fiquei um pouco constrangido, depois, irritado. Coloquei os óculos e avaliei que o jogo não constituía uma preocupação imediata. Era aquele jogo com o gráfico todo pixelizado em que o jogador constrói e interage num mundo virtual pela montagem de blocos, criação de itens e ambientes. Fiquei na dúvida se deveria repreendê-la sobre a pergunta que fiz.

– Papai! Olha a casa que eu construí!! – falou com aquela empolgação ingênua das crianças perante qualquer realização.

– Que linda minha filha, muito linda. – falei caminhando para a porta – Vou lavar o rosto e já volta, tá bom?

– Tá bom!

Tudo é lindo aos olhos dos pais. Os pais são o mundo dos filhos na infância. A rejeição é decisiva para tornar a criança um adulto inseguro. A aprovação deve ser vista como incentivo, afinal, estamos lidando com crianças, seres descobrindo seus gostos e talentos.

Lavei o rosto e escovei meus dentes. Não ia tomar banho agora. Voltei ao quarto.

– Quer seu café da manhã? – apenas o som da música ambiente do jogo ressoava como resposta – Hei! Está me ouvindo? – falei com a voz mais um pouco volumosa, mas sem chegar a gritar.

– Não quero – respondeu baixinho, com os olhos vidrados na tela.

– Minha filha, você está há muito tempo nesse computador – tentei uma voz terna.

– Não estou, papai. Acabei de entrar – virou olhando para mim de maneira suplicante – Não tem nada para fazer – concluiu, com uma constatação irrefutável.

Emudeci. Não tinha como inventar atividades mirabolantes o tempo todo. Era necessário cumprir os compromissos da casa e fazer meu home office. Porém, permitir que ela ficasse tanto tempo no computador não era recomendável. Na verdade, não sabia bem o que fazer. Virei as costas e fui preparar o café da manhã. Preparei o meu e o dela. Passei um café. Aquele cheiro de café fresco no ambiente espantou parte da minha dor de cabeça. Fui até o quarto e levei o café da manhã dela primeiro.

– Toma, sua refeição…

– Obrigado, pai – pegou e comeu, como se não tivesse recusado antes – Estava com muita fome.

– Come! Manda ver! – olhei para ela e soltei um pequeno sorriso no canto do rosto.

Liguei a televisão, a primeira coisa que fazia todos os dias da quarentena. Passava o jornal: pandemia se espalhando rapidamente pelo país, provável subnotificação, os governos estavam testando pouco, o governo federal atuava contra as medidas sanitárias, o número de mortos só crescia… Olhei para o lado e minha filha tinha virado a cadeira e olhava para a televisão roendo as unhas.

– Desliga um pouco o PC e vem comer do lado do papai.

– Não! não gosto de jornal – falou voltando-se para o computador.

– Tudo bem…

Não era fácil processar tudo aquilo. Parecia que tudo estava desmoronando lá fora. O número de casos só aumentava e nos hospitais se escolhia quem vivia e quem morria.

– Cadê a mamãe?

– Está trabalhando – engoli seco, engasguei com o café. Tossi, tossi.

– Daqui a pouco ela volta – falei com uma voz rouca, cheia de pigarro.

Ela trabalhava em dois empregos: num hospital de passagem e num asilo para idosos. Ela é assistente social, não estava trabalhando na linha de frente do combate ao vírus, mas tinha que se expor na rua. Qualquer trabalhador da saúde corria sério risco. Perdi a fome. Olhei para minha filha. Ela já tinha esquecido. Estava ali, brincando, alheia a todas as consequências. Vivendo o agora.

Continuei assistindo o telejornal. O programa apresentava uma realidade tão dura que me fez um homem cansado sem ter feito qualquer esforço. Levantei, levei os talheres para a pia. Com a TV ligada, sentei no computador para fazer as atividades diárias. Abre um programa outro, um link, outro, login, senha, escreve, copia e cola, marca a caixa, aperta o botão. Numa dança incessante, frenética, mas completamente estática.

A coluna doía, doía muito. Levantei, me espreguicei. Que horas eram? Voltei para olhar a hora… era hora do almoço, mas havia uma montanha de louça para enfrentar antes. Louça lavada, almoço feito, levei nossos pratos com o almoço para o quarto.

– Toma, seu almoço.

– Não quero alface – falou com uma voz muito baixa, quase inaudível.

– Mas tem que comer tudo! Vamos lá, pra ficar forte e saudável!

– Papai, pra ficar forte contra o vírus?

– É claro!

Começou a comer folhas de alface. Fiquei impressionado como a pandemia marcaria a vida dela, uma criança, submetida ao medo da infecção, sob quarentena, com a mãe que trabalha em hospital e os avós idosos. Era uma consequência óbvia, mas não se para pra pensar sobre isso. Meu coração se encheu de tristeza. O noticiário continuava o mantra diário com número de mortos, hospitalizados, curados, pesquisas sobre o vírus, de onde vem o vírus e a OMS. Desliguei a TV. Novamente não consegui comer.

– Papai, comi tudo! Vou ficar forte contra o vírus – olhou para mim esperando um elogio.

– Parabéns! Muito bem, vou te dar uma deliciosa sobremesa.

– Que sobremesa?? – respondeu, incrédula.

– Vou ver o que tem lá, está bom?

Ela balançou a cabeça em positivo, confiante de que eu resolveria a questão. Enquanto isso, a dor de cabeça explodia em ondas nas laterais do crânio. Respirei fundo, peguei uma garrafa d’água e bebi até a metade. Procurei uma dipirona e tomei com mais a outra metade da metade da garrafa de dois litros de água. Fechei os olhos por um curto período de tempo.

– Papai, você está bem? – ainda estava com os olhos fechados quando ela perguntou.

– Estou bem sim… – respondi percebendo que ela havia vindo atrás de mim na cozinha.

– Não parece… que remédio é esse? – falou olhando para a caixa do medicamento – Você está com o vírus?

– Não filha, só estou com um pouco de dor de cabeça – falei, vacilante – E o que você quer aqui?

– A minha sobremesa.

– Ah, sim! Claro! Vamos ver essa sobremesa. Agora volta lá pro quarto que o papai vai mexer no fogo, está bem?

– Tá bem!

Fiz um brigadeiro com chocolate em pó, leite condensado, uma panela e fogo. Coloquei o doce num prato e levei o prato para o freezer. Peguei a colher de pau que mexe o doce e levei para ela no quarto.

– Toma, vai lambendo a colher enquanto o brigadeiro esfria na geladeira.

– Eba! – virou-se para pegar a colher. Ela desligou o computador e sentou ao meu lado na cabeceira da cama. Eu folheava um livro que estava lendo no momento, num rito de pré-leitura muito particular.

– Papai, por que você lê?

– Porque eu preciso ler, é meu trabalho.

– Só por isso?

– Não, eu também gosto de ler. Gosto das histórias… Você não gosta de histórias?

– Gosto.

– O que mais você gosta?

– De brigadeiro – riu marota, com a boca toda lambuzada de chocolate.

– Que levada!! Peraí que eu vou pegar mais para você!

Deu um grito, levantou e saiu correndo pelo corredor em direção a cozinha. Fui atrás dela andando devagar.

– Será que já está bom? – perguntei retoricamente.

– Sim! Sim!

– Ok, já está frio, mas cuidado com o meio – falei enquanto entregava para ela o prato.

– Posso comer tudo??

– Não né, mas vou deixar você levar o pote todo.

– Eeeeêhhhh! Obrigada papai – virou-se toda faceira com o seu prêmio, um “pote de mel”.

Nesse momento, percebi que tinha descoberto algo que julgava saber. Uma coisa que é tão fácil de entender, mas tão difícil de perceber. A felicidade não constitui um estado no qual atingimos e, finalmente, estamos felizes. Não existe um estado de felicidade. A felicidade está nos pequenos e raros momentos. E, mesmo que a doença tenha colocado a humanidade frente-a-frente com a morte, o fim não é uma novidade. Todos morreremos, sabemos de nosso destino trágico e manifesto.

Talvez, além de ceifar a vida de tantos, o que de pior fez a doença foi embotar nossa visão desses eventos de felicidade que brilham e se apagam em nossas vidas. A felicidade sempre estará ali, nem mesmo todas as mazelas sanitárias, políticas, sociais poderiam tirá-la de lá. E, naquele momento, ela se apresentava para mim, no olhar de uma criança… Meu coração se encheu de esperança e meus olhos de lágrimas, então, a abracei rapidamente para que não percebesse meu choro.

Horas depois recebemos a mamãe e, no momento daquele abraço triplo, apertado, caloroso, sincero, tive a certeza de que éramos as pessoas mais felizes do mundo.


Por Carlos Douglas Martins

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Pra quem não sabe, Barbacena é minha terra natal, lugar em que vivi até completar 12 anos. Lugar que vive em mim, inventado e reinventado entre loucos e rosas. Ali, as rosas voavam e os loucos criavam raízes. Explico: as rosas eram para exportação e os loucos eram importados, vindos de todo canto, vindos dos Gerais, geralmente pra sempre. A princípio vinham de trem, trem de doido. O Hospital é enorme, sempre foi, existia há tempos antes do meu existir, praticamente uma pequena cidade cravada na cidade, ocupando duas áreas relativamente distantes uma da outra. O manicômio era tão grande que até hoje ocupa parte de meu imaginário. Aos domingos a caminho da casa de minha vó, em São João Del Rey, costumávamos passar na frente do velho hospital que a gente simplesmente chamava de “colônia”. Me lembro daqueles homens sem nome, de cabeça raspada a caminhar com suas roupas rotas na beira da estrada. Era comum. Não me lembro se eram homens de fato ou se eram mulheres. Me lembro das cabeças raspadas, da beira da estrada, dos uniformes rotos. Me lembro dos rostos rotos na estrada uniforme. Sempre à beira, os loucos. Eram loucos? Não me lembro… 


De um ponto da estrada dava pra ver a torre distante.

Frio. Frio de maio, frio de julho, uniformes rotos. Na minha cabeça de criança aqueles homens viviam escondidos na torre em frente ao Parque de Exposição. Manicômio, enorme manicômio que vive na cabeça da gente. Torre pequena, quanta gente cabia ali?

Por Marcelo Valle @marcelovallefotografias

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Sou o Marlon, vim do Rio Vou contar uma estória de dar até calafrio!

Ela é nossa memória,

da nossa terra o brio… Ouve, guarda e devora.

Está história é de um trem chamado “descobrimento”: é quando os europeus chegaram de fortes ventos e pisaram na América

em ano mil-e-quinhentos.

Buscavam seus mil alentos em terras desconhecidas, buscavam alguns temperos e outras coisas parecidas para longe assim vender muitas coisas diferidas.

Nessa busca infinita

por temperos e dinheiros eles conheciam povos, mapeando mares inteiros! Mais e mais e mais trocavam, navegavam seus janeiros…

Porém, essa terra aqui, de América chamada

não tinha um nome ainda, só depois foi batizada… Mesma coisa o Brasil:

não era Brasil nem nada…

“Nem nada” é exagero, pois onde hoje é Brasil era terra habitada

por mil gentes… povos mil! Ai deles! Os europeus os trataram a punho vil…

Alguns povos se amigaram com os montões aqui chegados porém a tragédia veio:

milhões morreram gripados! Ô, tristeza acontecida… Poeiras desses passados…

Os povos que aqui viviam, milênios no chão daqui,

tinham nomes: eram muitos! Como os Tupi-Guarani,

que eram povos tão guerreiros, tinham xamãs – karaí…

Sempre os Tupi-Guarani se espalharam nessas terras buscando a Terra Sem Mal com suas lanças de guerra. Hoje já são muitos povos, povos de inúmeras serras…

Um certo André Vallias

pensando o Brasil dormente reuniu muitos nomes deles pra gente guardar na mente e pra lembrar que esses povos são outros nomes da gente.

“Yanomami, Asurini

Cinta Larga, Kayapó

Waimiri, Atroari,

Tariana, Pataxó

Siriano, Pipipã

Rikbatsá, Karopotó”…

Os brancos, os europeus, no outro lado da história viam coisas muito novas que não tinham na memória! Se espantavam com os Tupi: “Até gente eles devoram?!”

Chamavam estes de “índios” por serem bem diferentes, como outros conhecidos

que os brancos tinham em mente, porém era nome errado,

um nome que em muito mente!

Pois essa palavra “índio”

vinha de um outro recanto e botava num só saco

muitos povos, seres tantos… Erro de ignorância

que provocou muito pranto…

É que os brancos queriam que todos fossem cristãos, só que os povos eram brabos: nem todos eram irmãos.

Os brancos e suas cruzes receberam muitos nãos…

Os que sim davam a eles perdiam logo a cultura:

o que os avós ensinavam os brancos davam rasura, e a lembrança que era fresca virara esquecência dura.

No que os povos daqui,

entre a cruz e a espada

ou matavam ou morriam,

ou fugiam à disparada,

pois o que os brancos davam era pouco ou era nada.

É que os tais loucos brancos, “portugueses” nominados, tinham sua própria história, suas guerras, seus tratados. E por nada os “índios” eram inimigos declarados…

Baita desencontro doido… Mas, e o “descobrimento”? Será que os povos daqui não tinham seu pensamento? Eles de si mesmos já

não tinham conhecimento?

Aí que mora um causo, quase-quase um segredo: aqueles povos nem não foram descobertos: engano-lêdo! Foram sim foi conquistados de modo até bem azedo!

Essas terras, até então só os nomes Tupi tinham, tinham nomes de outros povos também, que aqui viviam, mas perderam esses nomes pelos que os brancos traziam!

E assim passaram anos de entradas e bandeiras: a terra era imensa

faltavam a elas beiras!

Sertão foi o nome dado às terras interioreiras!

Termino esta grande saga sem início e sem fim

que o brasileiro conhece muito pouco, mas enfim: nunca é tarde pra pensar em coisa importante assim.

Só resta além de tudo,

dar valor ao nosso povo: ele é também mil povos, muito velho e muito novo – Galo velho já crescido,

pintinho dentro do ovo.

Terminado em 31/05/2016 – Revisado e alterado em março de 2021 especialmente para esta publicação

Métrica de cordel

usada: sextilha, também

conhecida como obra de

seis pés. É a estrofe de seis

versos, com rimas em formato

ABABAB ou ABCBDB ou

ABBCCB, etc.

Por Marlon Andaluz @marloneiro

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